MÚSICA

Por Paolo D’Aprile

 

Escrevi na hora em que soube, sentei e escrevi direto, sem pensar, sem corrigir. E foi pouco. Poderia ter escrito mais e melhor, poderia ter falado de sua música e seus discos fundamentais. Não consegui. Ao invés disso lembrei de mim. Do assombro, do espanto, da fenomenal alegria, da Fiesta que foi tudo aquilo. Lembrei da minha moto vermelha e de como, dançando nela, cantava a melodia da Rumba do Armando. Lembrei de tudo, dos discos “Now he sings…” e “Three Quartes”, que comprei em uma pequena loja de Trastevere, em Roma. Lembrei do concerto com Herbie Hancock, quando os dois gigantes, mergulhados nas entranhas da música, usavam os respectivos pianos como instrumento de percussão. Lembrei do meu amigo Natalio, tentando desesperadamente me explicar o segredo do ritmo entendido como função harmônica em cada modulação do virtuosismo de Got a Match. Lembrei de mim, jovem, sem dores nas costas, sem óculos, sem remédios pra tomar, um montão de cabelo e tantas minhocas na cabeça, a música a transcender o tempo. Soube da terrível notícia. Sentei e escrevi. E hoje, que a cabeleira se foi e as minhocas ficaram, continuo lembrando.

 

Ganhei o ingresso de um amigo. Fui. E estou lá até hoje. Daquela sala de concerto nunca mais saí. Minhas perguntas continuaram sem resposta, como nota aguda suspensa no infinito, como acorde dissonante sem resolução harmônica. No palco, o piano de cauda. Duas mãos imensas a desvendar mundos, abriam trilhas na selva sonora dos ouvidos daquele garoto que eu era. Chick Corea apresentava à minha ingenuidade toda a complexidade da música contemporânea, desde os inovadores eruditos do começo do século XX, até o jazz, passando pelos ritmos latinos para chegar à criatividade extemporânea da música aleatória, improvisada na hora.
Novos mundos ao meu dispor. E nunca mais sai.
O concerto de Chick Corea terminou com silêncios interrompidos pela maravilhosa incredulidade de quem vê o nunca visto, de quem ouve o impossível. Saiu do palco se arrastando sem mais força de se sustentar, apoiado ao ombro de um assistente, as luzes acesas da enorme sala lotada não afastaram o público. O palco vazio tremia debaixo da saraivada de aplausos da multidão. Porque parou, parou porque. Cinco, dez minutos, talvez mais. E Chick Corea reaparece. De roupão e chinelo. Senta em frente ao piano e recomeça a tocar. Para mim e a multidão.

Depois de 41 anos, hoje, leio na tela do celular a notícia que nunca queria ter lido. Chick Corea morreu. Morreu Chick Corea, um dos maiores pianistas e músicos de todos os tempos. Tinha 79 anos.
Tocou com todos, criou música, arte. Escreveu harmonias, melodias e ritmos, gravou discos fundamentais, tocou com os melhores. Mestre e ponto de referência. Eletrificou teclados infernais, acariciou pianos clássicos, ritmos latinos, jazz de vanguarda, e as melodias mais lindas brotaram como luas, flores, marés. Discos memoráveis, solos sem fim, páginas de história escritas para o mundo e tocadas para mim, garoto de dezessete anos, naquela sala de concerto de onde nunca mais saí.
Chick Corea, música em toda parte.