Por Edson Diniz*

No primeiro debate entre candidatos à presidência da República no segundo turno das eleições deste ano, o representante da extrema direita chamou de “criminosos e bandidos” os moradores de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. Isso porque eles foram ao comício do candidato da esquerda na favela em questão.

Ora, essa fala expressa todo o preconceito e o racismo incorporado e praticado pelas forças políticas de extrema direita que flertam abertamente com a ideologia fascista em franca ascensão no Brasil de hoje. Evidentemente, a ideia da favela como o lugar do crime não é um fenômeno novo, pelo contrário, desde o surgimento desses territórios na cidade do Rio de Janeiro, elas sempre foram consideradas como apartadas da cidade, vistas como seu avesso e habitadas pelas “classes perigosas”. Um ex-governador do Rio de Janeiro – preso por inúmeros crimes – chegou a dizer de uma determinada favela que ela era “uma fábrica de bandidos”. A favela, dentro de tal visão, sempre foi retratada como uma espécie de lugar sem regras e sem moral, onde as pessoas são indolentes, não querem trabalhar e alimentam a criminalidade.

Tal caracterização pode ser reconhecida também nas crônicas jornalísticas e nos primeiros estudos sobre as favelas ainda no começo do século XX, quando elas efetivamente se colocam na cidade. Porém, o que impressiona é que mais de cem anos depois, um candidato à presidência da República reproduza os mesmos estereótipos e preconceitos raciais. Muito embora, ele tenha feito uma tentativa de consertar seu discurso, sobretudo pelo medo de perder votos, o que fica desse episódio é o quanto os moradores de favelas ainda são estigmatizados pelas elites brasileiras.

A visão da favela como lugar de bandidos precisa ser questionada, pois ela é injusta, perversa e continua a alimentar, por exemplo, as ações policiais violentas que ceifam a vida de centenas de jovens pobres e negros todos os anos. É preciso afirmar que a vida nas favelas e periferias, em que pesem as dificuldades decorrentes das desigualdades socioeconômicas, não se resume à violência de grupos criminosos.

Por óbvio que não se pode deixar de considerar essa e outras questões. Mas, em primeiro lugar, precisamos reconhecer que a presença de grupos criminosos armados que dominam territórios favelados é prova cabal do descaso do Estado Brasileiro e de nossas elites para com os moradores mais pobres desses espaços. Assinalado esse fato, precisamos fazer um movimento para olhar de outra perspectiva as favelas como território de muita criatividade, trabalho, geração de renda e solidariedade.

Segundo estudos do instituto Datafavela¹, por exemplo, as favelas sozinhas geram uma renda anual de mais de 119 bilhões de reais por ano no Brasil, a partir de suas atividades econômicas e culturais. Seus moradores movimentam as cidades e produzem riqueza diariamente enfrentando, para tanto, toda a sorte de dificuldades, a começar pelos transportes caros e precários.

Desse modo, a imagem de um lugar sombrio, dominado pelo medo e infeliz não corresponde à realidade, pois quem percorre as ruas e vielas das favelas percebe a vida acontecendo a partir de um forte sentido de solidariedade e ajuda comunitária, difícil de ser encontrado em outros espaços da cidade. Por isso, os estereótipos e preconceitos reproduzidos pelo candidato da extrema direita não podem ser considerados como simples deslizes em um debate político. Ele reflete uma posição negativa compartilhada pelas elites políticas e econômicas brasileiras sobre os territórios favelados, o que só prejudica esses mesmos territórios.

Os moradores das favelas não podem ser tratados como se fossem cidadãos de segunda classe, procurados apenas nas épocas de eleições para garantir, com seu voto, a manutenção das mesmas elites políticas que os discriminam. Enquanto não desconstruirmos tal concepção e incorporarmos a favela com suas questões e potencialidades na agenda da cidade, reconhecendo-as como parte fundamental da Urbe, continuaremos a ser uma democracia frágil, incapaz de garantir uma vida digna para o povo trabalhador.


¹ Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-01/moradores-de-favelas-movimentam-r-1198-bilhoes-por-ano. Acessado em 19/10/22.

* Morador da Favela da Maré por 40 anos, é graduado em história pela UERJ, mestre em Educação Brasileira e doutor em Sociologia da Educação pela PUC-Rio. Cofundador da Redes de Desenvolvimento da Maré, criador do Núcleo de Memória e Identidade dos Moradores da Maré (NUMIM), por onde publicou 2 livros sobre a história da Maré. Atualmente, desenvolve pesquisas nas áreas de sociologia da educação, segurança pública, história das favelas, direitos humanos, arte e cultura nas favelas.