Ou o cara pega ou não pega. Não tem meio termo. Ou você pega ou não pega. Na Polícia ou você é honesto ou não é. Não existe o meio honesto ou o meio corrupto. Na verdade, o que se vê é que o honesto é respeitado, mas acaba se fodendo – literalmente – no final,

Assim foi o caso de Asdrubal. Que entrou por um ideal de integrar a sociedade a uma justiça total. Imaginava uma sociedade completamente ligada por um laço que a torna una, independente de interesses contrários, isso num país dividido em classes sociais com um abismo entre elas.

Negou todos os arregos possíveis; todos os dinheiros imagináveis; exatamente por isso, fora exonerado por IPM – sem ao menos ser comunicado do porquê ao certo estava sendo desligado. Semanas depois foi encontrado morto na Floresta da Tijuca.

Eu queria pegar o Frescão na rodoviária, nunca tinha tirado férias na Políca (minhas férias eram sempre vendidas pelo P1 ao preço de no mínimo cinquenta reais). Pensei que poderia ter tempo com minha família e amar minha mulher. À espera do ônibus, aparece na minha frente Ezequiel Pirado, conseguira esse apelido por dirigir como um possuído seu táxi pirata, matara uma senhora do coração por estar a 150 km/h e um passageiro dos seus quarenta anos por, após cobrar o preço que achava o certo (independente de taxímetro – “o que é isso?” – respondia sempre que perguntado sobre a ausência desse instrumento em seu veículo), simplesmente resolveu assaltar a mão armada o passageiro e matá-lo. Ezequiel achava que taxistas devem ser regiamente remunerados, pois exercem uma profissão essencial para a sociedade, portanto, deveriam receber o salário de um presidente da República (o salário extra, obviamente não o oficial).

Ezequiel Pirado começou sua carreira dirigindo a alta velocidade o carro do pai em plena Avenida Brasil às quatro horas da madrugada. Bateu em dois caminhões de transporte de Coca-Cola e de Brahma, respectivamente. Após atropelar uma senhora de idade, foi abordado por policiais, que apontaram suas armas para a cara do meliante. Os policiais, depois me contaram, não sabiam que se tratava de um menor, concentraram-se na senhora com fratura exposta e desacordada. O Pirado tinha 12 anos naquela época. Ao sair do carro, estava todo mijado.

Quando eu estava no Batalhão Turístico, num dos aeroportos da cidade, prendi o Pirado três vezes. Isso tinha acontecido após eu ter comunicado haver vinte carros roubados na área de apoio, onde ficam as cargas que serão embarcadas nos aviões. Nunca entendi muito bem o fato desses carros roubados estarem numa área restrita a funcionários autorizados do aeroporto; outra coisa que nunca entendi bem foi o porquê de a Polícia Federal não tomar atitude alguma, afinal para as cargas entrarem naquele local passavam até por Raio-X…

Dúvidas são uma constante no trabalho da polícia.

Respostas são como diamante rosa 18ct, nunca vi e nunca verei.

Após comunicar a frota de carros roubados, fui tomar café, foi quando pela primeira vez vi o Pirado. Chamou minha atenção seu ar de perdido, de desorientado, a despeito de seus passos serem rápidos e firmes, como se praticasse Cooper vinte e quatro horas por dia; exalava cheiro de suor agridoce, olhos esgazeados e enevoados: olhos de corça tomados pela catarata. Sobraçava um pacote de proporções imensas, um embrulho que lhe cobria todo o torso e obrigava seu braço direito a abrir-se como uma asa em pleno vôo.

Ele perseguia uma turista espanhola e ficava assediando a mulher aos gritos, dizia: ‘usted es uma menina de ouro! Se derreter usted dá até o anel!” – que poeta…

A obcecação do Pirado encima da espanhola foi suficiente para eu abordá-lo. Primeiro me interpus entre o louco e ela; esta intensificou os passos olhando para trás assegurando-se de que não estava mais sendo perseguida.

– “Puta madre de Dios! Nunca volveré a este país de mierda outra vez!”

Vendo minha aproximação, tomou um ar de contenção, coçando os olhos para esconder os fragmentos de vidro que lhe davam o aspecto de quem cheirou mais prilimpimpim do que o Peter Pan.

Era uma daquelas tardes saarianas do Rio, minha farda empapada de suor e o colete com o peso multiplicado pelo líquido que meu corpo suava. Arrependi-me de ter comprado por meus próprios meios aquela merda de capa de colete, mas uma semana antes sumiram pistolas Pt100 calibre 40, assim como as munições; isso por que o cofre de reserva de armas era um modelo 1932 que vivia aberto, uma vez que tinham esquecido as suas senhas.

Ou o suor de lágrimas de novela das oito ou peito estourado por uma bala daquelas relíquias furtadas.

Voltando ao Ezequeil Pirado e meu primeiro contato com ele: quando me viu tentou compor-se para parecer com um sujeito normal, mas percebendo que não conseguia disfarçar o enorme pacote sob seu braço direito; apontou para cima parecendo querer me alertar sobre o iminente ataque de algum inimigo extraterreno, depois disparou a correr feito um avestruz enfurecido. Com o braço esquerdo estendido abria cominhos ao estilo de jogador de futebol americano; derrubou transeuntes e só parou quando deu de encontro com uma montanha à sua frente: ninguém passava por cima de Jacinto, um negro de dois metros de altura e forte como a reserva de Ouro da Inglaterra, era o faxineiro do aeroporto.

Caiu desmaiado no chão gritando “mamãe! Não vi o trem!”

Sobracei o suspeito e o levei para a Delegacia do aeroporto. Lá chegando percebi que o Pirado já estava desperto, mas se fingindo de desacordado.

Algemei suas mãos na cadeira de alumínio carcomida da DP; somente a minha presença seguraria o suspeito lá, pois a cadeira se partiria com um sopro de fada.

Atado à cadeira abriu os olhos e começou a encenação de louco. Cantava o clássico Ilariê da Xuxa (típico atentado à cultura popular dos anos oitenta)

– “Sou amigo da Xuxa! Ninguém mexe comigo! Muito menos vocês smurfs da Polícia. Vocês vão tudo pro olho da rua depois da Copa do Mundo!” – assim tive de suportar aquela ladainha elétrica de mordomo da Xuxa; e continuou: – “Tenho status de diplomata por ser um servo da rainha”.

– O que tem nesse pacote, ganso? – perguntei incisivo sem lhe dar tempo para tergiversar.

– “Meu salário de mordomo da Xuxa”.

Com isso, pude finalmente ter o álibi que precisava para esgarçar aquela merda de pacote; qual foi a minha surpresa ao ver notas de dólar americano, muitas, uma enormidade de dinheiro: ali deveria ter por volta de um milhão de dólares.

– “Me diz a procedência disso, vagabundo! E para de se fazer de 851 (maluco) que eu sei que você é mais esperto do que aparenta ser”.

– Foi Marlene quem me pagou o ordenado desse mês.

– Que Marlene?

– Marlene Matos.

Puxei a Capivara dele; simplesmente já tinha sido preso por quase todos os tipos criminais prescritos no Código Penal e adjacências; era um Al Capone de Irajá e tinha por últimas ocorrências a manutenção de uma empresa de táxi pirata; usava jóqueis (aqueles que chamam os clientes que estão saindo do aeroporto para embarcarem no pirata) os mais inusitados possíveis: um de seus jóqueis tinha sido condenado por estupro seguido de morte, mas conseguira anular o processo alegando confissão inquisitorial, ou seja, assumiu o crime na base da porrada levada na DP.

Depois disso, Ezequiel começou a mandar beijos para mim; olhei para ele com a expressão mais sombria que consigo fazer; surtiu efeito; o Pirado baixou a cabeça e começou a urinar nas calças exatamente como tinha feito quando garoto e fora apreendido por policiais na Avenida Brasil.

– O dinheiro; quero saber a origem! – Mantive minha expressão soturna, pois vi que surtia efeito no inquirido; o cheiro de urina começou a se evolar pelo ambiente; tive de conter meu asco para não perder o ritmo que imprimi no rosto para amedrontar Ezequiel.

– Não me olha assim, não! Está me lembrando minha ex-mulher Andreza, era a melhor travesti da Glória, mas de um gênio insuportável! – falava chorando como uma criancinha, agora era o momento do bote; eu obteria a informação a qualquer custo.

– Desembucha, safado ! – Gritei com a voz embargada ao estilo Dirt Harry, meu cenho tão vincado como a Pedra do Arpoador.

– Para! Estou com medo! – agora ria de tal forma que comecei a suspeitar que ele era 851 mesmo!

Vendo aquilo pensei em uma forma sutil de torturar maluco; peguei o bonequinho do Snoopy que estava em cima de um armário à direita da entrada da sala de interrogatório; comecei a surrar o brinquedo, enforcar, torcer o pescoço, quando Ezequiel estupefato gritou que eu parasse e que iria falar tudo.

O dinheiro era de transações de câmbio clandestino que reunia carregadores de malas do aeroporto e taxistas piratas. – Se quiser eu te arrego uma merenda de cinquenta mil dólares.

– Tá tudo gravado, 851! Você está preso e é melhor ir xisnoveando os teus comparsas.

Daí ele deu o papo de todos os envolvidos.

Essa foi a primeira vez que prendi Ezequiel Pirado.

Alguns anos depois, voltei a prendê-lo: desta vez foi por agressão física a um travesti; que descobri ser Andreza, seu grande amor da Glória. Ele cafetinizava-a para executivos alemães da Merckyl; eles adoravam se lambuzar no ventre viscoso de maresia da mulher de Ezequiel.

Andreza estava malocando uma porcentagem cada vez maior do que cabia ao Pirado; esquecendo-se do amor e suas nuances, encheu a cara dela de pancada, por que, como nos diz os Salmos de Madame Satã: a foda é boa, mas o dinheiro é mais!

Tempos depois encontrei-o fumando maconha no estacionamento; eu estava buscando mais carros roubados nas áreas do aeroporto, quando me deparei com o cretino de novo. Sempre o calor asfixiante do Afeganistão; a minha roupa colando no corpo e a porra do colete pesado como uma mortalha de concreto: vi-o por entre as gotas de suor que lubrificavam meus olhos.

Estava lá todo pimpão sobre um Jaguar preto estilo James Bond, cujo brilho cegava. Com a camisa aberta e óculos escuros vem-cá-meu-puto, pendia de seu peito um medalhão de São Jorge tão grande que, por si só, já deveria ter matado uns quarenta dragões. Sutilmente me aproximei e abotoei o canalha.

– Escuta Ezequiel você não tem lugar melhor pra dar tapa na pantera, não? Some daqui com isso, seu pústula.

– Xará, fumar maconha agora não é mais crime, sou usurário de canaubis e daí? Vai fazer o quê? É meu direito de livre expressão!

Fechei meu rosto naquela expressão que impressionara Ezequiel no passado, meus olhos enegrecidos pela torpeza inexprimível da condição humana num mundo hediondo de maldades.

Vendo minha velha expressão sombria estilo Clint Eastwood; Ezequiel pulou do capô do Jaguar; prestou continência, jogou longe o cigarro de maconha, sorriu para mim e foi embora.

Aparentemente fora embora para sempre, mas antes ele tentou de novo arrego comigo – ofereceu dez mil dólares (só transacionava com dólar) para deixá-lo montar sua boca de fumo no estacionamento -, arreganhei os dentes num ríctus mórbido e disse para ele:

– Eu não sou mão de macaco! Você está preso!