“Os economistas do século XVII, por exemplo, partem sempre do todo vivo: a população, a nação, o Estado, vários Estados, etc.; no entanto, acabam sempre por descobrir, mediante a análise, um certo número de relações gerais abstratas determinantes, tais como a divisão do trabalho, o dinheiro, o valor, etc.”

Quando Karl Marx faz essa afirmação no texto sobre o método da economia política, no século XIX, indicava a importância e a necessidade do conhecimento. Trata-se de um texto de grande circulação nos meios acadêmicos, mas, ainda assim, com escassa realização social e metodológica do caminho que nele está indicado como necessidade histórica e teórica para a leitura de mudo que temos. A concepção que está contida aí refere-se à necessidade de partir do conhecimento disponível e acumulado em nossa história para conhecer o mundo e atuar nele. Sabemos que as portas para o conhecimento, na sociedade brasileira, estão entreabertas e as lutas sociais têm expressão nas lutas travadas no interior do conhecimento. Por isso, a “disputa de narrativas” precisa ser olhada com cuidado e mais de perto, pois uma narrativa pode ser uma justa expressão de um conteúdo de conhecimento, mas, também, pode ser uma mera retórica ideológica e, muitas vezes, falseada. Não à toa falamos, hoje, em fakenews, para opor o que é “verdade” daquilo que não é. Sendo assim, há duas dimensões em questão: a primeira é a existência do território dos conhecimentos, que se expressam em narrativas conceituais, em sistemas conceituais; a segunda é a existência do território dos não-conhecimentos, daquilo que está no campo das visões sociais de mundo e que se expressam em narrativas diversas, algumas intencionalmente falsas, mas outras não intencionalmente falsas. Dito de outro modo, Marx está nos dando uma importante contribuição ao distinguir o conhecimento dos não-conhecimentos. Essa é uma posição que ele assume, uma posição importante que nos leva a distinguir o que pode ser compreendido como conhecimento daquilo que não pode. Significa dizer que há algo a mais no campo da disputa de narrativas do que apenas narrativas, ou seja, que há narrativas que expressam conhecimento objetivo a respeito das coisas e outras que expressam desconhecimento a respeito das coisas. E ele quer dizer que essa distinção não é redutível à posição política. Dito de outra maneira, o conhecimento tem uma história que não é uma mera expressão da ideologia e do posicionamento político que temos no mundo, é mais do que isso, é sobretudo um trabalho de produção de conhecimento e de aproximação com a verdade sobre as coisas e o mundo. As verdades do conhecimento não são absolutas, mas são verdades, ainda que parciais, históricas, contextuais e relativas. São aproximações possíveis em relação ao real e que só são possíveis com o trabalho que produz, de fato, conhecimento. E olha só, Marx estava, ali, falando do conhecimento da economia política, que ele está superando, criticando, mas que ele não deixa de considerar como conhecimento em oposição à mera propaganda ideológica. O reconhecimento de que a economia burguesa é conhecimento, ainda que limitado, faz Marx separar o que é narrativa puramente retórica, propagandista, falseada e interessada daquilo que é um trabalho de conhecimento, mesmo que seja, ainda, burguês e criticável. Sendo assim, as verdades produzidas pelo trabalho de conhecer o mundo do qual fazemos parte não são somente discursos, não são somente narrativas, pois possuem um conteúdo que é a verdade relativa, o que chamamos de objetos do conhecimento. A narrativa é a forma para expressar um conteúdo, o conhecimento. Por isso Marx diz, nesse mesmo texto, que o caminho de expor o conhecimento (de falar e escrever sobre ele) não é o mesmo caminho de produzi-lo. São caminhos diferentes.

O caminho que produz o conhecimento a gente costuma chamar de pesquisa: ela pode acontecer na universidade, onde estão as condições materiais para essa produção, mas também pode acontecer fora da academia. Porém, a academia possui os recursos materiais, laboratoriais, etc., que podemos chamar de meios para produzir o conhecimento. Como esses meios para produzir o conhecimento estão nas academias, estatais ou privadas, já sabemos que o conhecimento hegemônico produzido ali tem relação com os interesses de quem os financia. E, mesmo ali, as disputas estão colocadas, pois, mesmo ali, no campo da produção de conhecimento, os conhecimentos expressam, também, objetivos que não são somente do conhecimento e de sua busca pela aproximação da verdade objetiva, mas da história social da qual fazem parte. Não à toa alguns temas são aceitos e outros não. Não à toa há um cânone que decide o que pode ser produzido e o que não pode.

Marx, assim, está nos dizendo que é necessário fazer a crítica e a superação do conhecimento burguês, um caminho necessário que nos leva a produzir um conhecimento novo, crítico ao anterior, mas que não pode prescindir dele para ser produzido, ou seja, é necessário partir do conhecimento já existente para superá-lo. Não poderemos superar um conhecimento apenas negando esse conhecimento e colocando uma outra narrativa em seu lugar: isso seria substituir o conhecimento por mera retórica, pela negação, mas não pela crítica. E Marx está nos dizendo, também, que aprender progressivamente e ter acesso ao conhecimento disponível é uma necessidade.

Tomando esse caminho como referência, podemos dizer que estudar e aprender sobre os conhecimentos e a partir deles é importante para a construção da crítica e da intelligentsia necessária e coletiva em favor da vida, que precisa se fortalecer para superar o capitalismo. Pois o objetivo de acessar os conhecimentos não é apenas para conhecer o mundo a nossa volta, mas para atuar nele e transformá-lo a nosso favor e não contra nós.

A teoria de Marx, aqui, está voltada para a mudança prática no mundo, para uma melhor compreensão do que fazer na vida para que as pessoas possam viver plenamente e não apenas sobreviver. Estamos sobrevivendo em um mundo capitalista em todos os países, chamados de estado-nação, sem que se tenha exceção. A grande questão está em conhecer as formações sociais e, a partir desse conhecimento, pensar objetivamente em quais são as possibilidades de transformação das coisas para que a vida seja possível plenamente, a vida das pessoas que formam, em sua maioria, as trabalhadoras e os trabalhadores desse mundo, esse grupo social existente que é o maior no mundo todo e que não conseguiu, até os tempos atuais, encontrar os núcleos de unidade para que seja o principal grupo político. Esse é um grande desafio. Por isso o acesso ao conhecimento é fundamental: compreender a diferença entre o que é trabalho, emprego, salário, renda e lucro e o por que, nessa lógica, a maior parte das pessoas no mundo estão em condições de subalternidade, de precarização, de fome e de morte antecipada.

Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Marx diz o seguinte:

“Se a quantidade de oferta excede a procura, então uma das partes constitutivas do preço – lucro, renda da terra, salário – é paga abaixo do preço, portanto uma parte desses rendimentos (Leistungen) subtrai-se dessa aplicação e o preço de mercado gravita para o preço natural como ponto central. Mas, 1) se para o trabalhador, mediante uma grande divisão do trabalho, é dificílimo dar ao seu trabalho uma outra direção, 2) cabe-lhe, na sua relação subalterna com o capitalista, antes de mais nada o prejuízo. Com a gravitação do preço de mercado para o preço natural, o trabalhador perde, portanto, ao máximo e incondicionalmente. E é precisamente a capacidade do capitalista em dar outra direção ao seu capital que: ou submete o trabalhador – restringido a uma determinada esfera do trabalho – à fome, ou o obriga a sujeitar-se a todas as exigências desse capitalista.| |II| As oscilações acidentais e súbitas do preço de mercado atingem menos a renda da terra do que a parte do preço decomposta em lucro e salário, mas [atingem] menos o lucro do que o salário (Arbeitslohn)[6].”

Os donos do capital é a parcela que mais possui instrumentos para se assegurar, mesmo nas crises. Esses instrumentos só se ampliam na organização que a minoria social de burgueses consegue realizar com uma maioria política de capitalistas. Os burgueses, apenas com seus votos, no que é chamado de democracia moderna, elegem muitos capitalistas para organizar o poder que exercem na sociedade, possuem maioria em governos, congressos, parlamentos e no mundo em geral. Por isso, em tempos de crise, conseguem administrar bem a manutenção da existência dos seus lucros. Na pandemia da covid-19, administrada por esses políticos, os mais ricos ficaram mais ricos e o peso da crise precarizou, empobreceu e matou as pessoas que sofrem o maior peso das desigualdades no mundo. E, por isso, repetimos que é necessário alterar essa lógica, ou seja, que a dependência da sobrevivência das pessoas não seja exclusiva à lógica mercantil, da relação entre emprego, salário e lucro. Em outras palavras, que a sobrevivência das pessoas e de suas condições para viver não seja determinada exclusivamente pela lógica da relação direta entre capital e trabalho, pois nessa lógica sabemos quem sairá sempre ganhando e quem seguirá perdendo, empobrecendo e morrendo. E para que as pessoas tenham condições para viver de modo independente da lógica mercantil, é necessário garantir a Renda Básica Incondicional e Universal para todas as pessoas e, também, garantir que os espaços de poder sejam ocupados por quem representa essa população gigante de quem está desse lado da balança.

Desta forma, apresentamos duas medidas fundamentais: 1) a criação da Renda Básica Incondicional e Universal como uma política de Estado; 2) a eleição de mais pessoas do grupo social não burguês e que não seja comprometida com o capitalismo, seja de qual for a organização política ou da sociedade civil de que façam parte. Esse é um desafio que temos, em especial no contexto de eleições no Brasil. Essas duas medidas podem ser um primeiro passo fundamental para alterar a vida no tempo atual e para acumular forças para que se possa superar de vez o capitalismo. Superar o capitalismo é uma necessidade histórica, mas não será realizada somente por governos e parlamentos, só poderá ser realizada pelo conjunto das pessoas que sofrem o peso das desigualdades no mundo. Mas, para isso, elas precisam ter acesso a determinadas condições para compreender o mundo e atuar organizadamente nele e precisam, também, ter condições de viver, de morar, de obter o seu pão, a sua mobilidade e a sua saúde de um modo que não dependam exclusivamente da lógica do mercado, do emprego, do salário e das condições a que estão submetidos e ameaçados nessa lógica. A renda básica incondicional e universal para todas as pessoas é a condição que pode alterar a dependência da vida à lógica mercantil e, com isso, garantir a vida incondicionalmente.

Quanto melhor for a vida das pessoas também maior e mais qualificadas poderão ser as ações coletivas de acolhimento, de estudos e de organização para ações que fortaleçam a construção coletiva do Bem Viver. Podemos crer, que, longe ainda do ideal, o Bom não é inimigo do ótimo a ser construído e conquistado neste mundo.