Em dezembro do ano passado, disse isso aqui em Pressenza, e repito: Hamilton mostrou ao mundo, por sete vezes, que nós, negros não somos bons apenas em esportes nos quais a força física é determinante, como nos quiseram (e ainda querem) nos fazer crer. No entanto, o racismo, esse câncer que nos corrói de diversas maneiras, volta e meia gera ataques de ira, de inveja e de ódio contra esse campeão não somente nas pistas, mas na vida, como infelizmente o fez Nelson Piquet, brasileiro e ex-corredor de F1.

É lastimável que em pleno século 21 ainda não tenhamos conseguido eliminar do nosso mundo mazelas tão corrosivas como o racismo. Ultimamente, e apesar de toda a luta que historicamente vem sendo empreendida pelos povos racializados, em especial o povo negro, são cada vez mais potentes as demonstrações de que essa chaga ainda permanecerá entre nós, numa tentativa constante de nos desumanizar.

Ideário burguês

Apesar de lamentável, o racismo é compreesível numa sociedade mundial majoritariamente constituída pela ideologia burguesa, assentada em principios que têm como referências homens brancos, de origem judaico-cristã e de orientação heterossexual. Dessa forma, historicamente, todos e todas que não se encaixem nesse “arquétipo perfeito” passam a sofrer tentativas constantes de desumanização. E a população negra é um desses grupos.

A racialização passa a ser uma das formas de opressão mais contundentes das sociedades burguesas, que a todo momento, e de variadas maneiras, busca definir os lugares e os não-lugares para todas aquelas pessoas que não expressam os ideais burgueses, ou seja, não se encaixam naquele “arquétipo perfeito”. E no Brasil, lamentavelmente, isso se dá de forma bastante contundente, porque desde os primórdios da construção da identidade nacional deste país, o ideário da burguesia foi o de embranquecer sua população, como meta do “processo civilizatório”.

Nesse sentido, os corpos negros são vistos como antagônicos à ordem instituída, isto é, aquela estabelecida pela hegemonia eurocêntrica e cristã, o que significa afirmar que esses corpos, demarcados por sua “raça”, são estigmatizados de modo a receber, por parte da concepção racista, adjetivos “dejenerativos”, “desqualificantes”, de “inferioridade”.

Por esses e outros motivos parte expressiva da população não racializada brasileira tende a rechaçar indivíduos e/ou grupos que não se encaixam no “ideário civilizatório nacional”. E, por isso, membros dessa burguesia como o ex-piloto de F1 Nelson Piquet (ou não burgueses que se identificam com a ideologia burguesa) odeiam e se recusam a aceitar que uma pessoa negra possa ascender ao mais alto escalão de qualquer dimensão da vida, seja ela social, política, cultural – ou esportiva, como é o caso de Lewis Hamilton.

Fortalecimento da luta

O desprezo, o ressentimento, o ódio são tão grandes que os portadores desses sentimentos se recusam, inclusive, a pronunciar o nome dessa pessoa negra que conquistou o “seu lugar ao sol”, como aconteceu com o ex-piloto brasileiro que chamou o piloto britânico de “o neguinho”, ao se referir a uma manobra que Hamilton havia realizado no Grande Prêmio de Silverstone, Inglaterra, em 2021.

Além disso, o ressentimento do brasileiro se dá em outra frente. A ele custa admitir que “o neguinho” o supere, uma vez que Hamilton conquistou sete campeonatos mundiais de F1, quando ele, Piquet, com todos os privilégios que sempre possuiu na vida (a começar por ser um homem branco e de origem socioeconômica vantajosas), conseguiu apenas três. Ademais, em seu histórico como piloto da categoria, Lewis Hamilton conseguiu uma série de conquistas que nunhum outro piloto logrou até então, inclusive o também heptacampeão Michael Schumacher. Por exemplo, quantidade de pole positions, de poles positions convertidas em vitórias, de pódios e de pontos. Nada mal para um “neguinho” que nasceu pobre e que sofreu inúmeras violências racistas (inclusive esta de Piquet).

Em sua trajetória até fazer parte da F1, Hamilton contou especialmente com a dedicação de seu pai, à quem chama de seu herói. Anthony Hamilton, um trabalhador pobre que acreditou no talento do filho e lutou para inclui-lo nesse esporte, exclusividade de homens brancos desde que começou, em 1950, até a chegada de Lewis, em 2007. Já na primeira temporada, “o neginho” mostrou seu talento, conseguindo o vice-campeonato. E desde então, tem deixado sua marca nesse esporte. Diferentemente do que aconteceu com o ex-piloto racista, cujo pai – médico, ex-ministro da Saúde e filiado ao antigo partido de direita, Arena –, não apoiou sua carreira.

Apesar de repugnante, considero não surpreendente a atitude do ex-piloto brasileiro, que fez questão de dirigir o carro presidencial na cerimônia de posse do atual presidente da República, cuja história de vida mostra o quanto “flerta” com o fascismo. Piquet foi também o homem que, em 1988, demonstrou sua homofobia ao se referir de forma pejorativa ao também piloto da F1 brasileiro, Ayrton Senna, chamando-o de  homossexual (por inveja), porque Senna estava consquistando o coração do povo brasileiro e também seu primeiro campeonato mundial naquele ano.

Apesar de repugante, e lamentável, essa atitude de Piquet não abala as qualidades de Lewis Hamilton como esportista; e muito menos como ser humano. Certamente, operará de modo contrário, fortalecendo sua disposição de lutar contra o racismo e outras formas de opressão, como tem feito nos últimos anos, utilizando a sua imagem pública para fazer reverberar e fortalecer ainda mais as vozes que clamam pela não violência.