Cresce, entre economistas não submissos aos mercados, a ideia de que a inovação deve ser dirigida pelas sociedades – não pelas corporações. Stiglitz propõe parâmetros para que as tecnologias não afetem empregos, nem os direitos sociais

Seriam as descobertas científicas e tecnológicas resultado de uma tendência natural da humanidade à inovação e ao desenvolvimento das forças produtivas? Deveríamos, em consequência, aceitar como inevitáveis certos “avanços” que desorganizam o mundo do trabalho e dão às corporações cada vez mais poder sobre os assalariados? Estes mitos, que há muito sustentam o projeto neoliberal (e às vezes fascinam certa tradição marxista), estão sendo intensamente questionados, no debate econômico principal. Em resposta ao fantasma do desemprego em massa, cresce a ideia de reconhecer que a tecnologia não é neutra, e precisa ser, portanto, regulada por meios democráticos. Vale acompanhar o debate, diretamente relacionado às contrarreformas trabalhistas no Brasil e à possibilidade de revertê-las.

Daron Acemoglu, pesquisador do MIT, e um dos economistas mais citados no debate teórico nos EUA, é um dos protagonistas da polêmica. Em 2019, ele publicou, em parceria com seu colega Pascoal Restrepo, estudo segundo o qual a tecnologia é responsável por, ao menos, 50% do aumento da desigualdade, nas últimas décadas – somando-se à globalização e ao enfraquecimento dos sindicatos (há um bom resumo aqui). Mas Daron não é um ludista.

Ouvido pelo New York Times, ele frisa que a tecnologia pode tanto substituir o trabalho humano quanto ampliar sua potência. E lembra que em diversos períodos da história recente – entre o pós-II Guerra e os anos 1980, por exemplo – a segunda tendência prevaleceu. Houve vasto aumento da produtividade combinado com elevação dos salários reais e dos direitos laborais. Já no período neoliberal, a onda se inverte, num curioso jogo de perde-perde. A técnica volta-se para eliminar postos de trabalho e pressionar os salários para baixo. Mas o aumento produtividade arrefece, assim como o crescimento geral da economia (veja o gráfico abaixo). Só ganhou a “classe do 0,1%” – que, no entanto, teve meios para apresentar o movimento como sinal de “modernização”.

Relação entre o aumento do PIB e o número de horas trabalhadas, nas principais economias capitalistas, entre 1971 e 2015

 

O texto do New York Times cita outro economista – Paul Romer, Prêmio Nobel de 2018 – que defende políticas públicas robustas (em especial tributação) para conter o desenvolvimento tecnológico predatório. Sua trajetória é ainda mais notável. Por muitos anos, Romer foi uma celebridade entre as grandes empresas do Vale do Silício. Estudo em Chicago, o grande reduto dos neoliberais. Professor em Berkeley, teve como colegas e amigos alguns dos hoje bilionários das grandes corporações de TI. Ao trabalhar no Banco Mundial, sustentou a ideia de que os Estados deveriam deixar o desenvolvimento urbano a cargo dos mercados – limitando-se a oferecer infraestrutura como grandes avenidas.

Mas nos últimos anos foi, também, sensível à degradação social em seu país – aumento explosivo dos suicídios e das mortes por overdose de drogas legais, falta de perspectivas para a juventude e concentração obscena de renda. Do ponto de vista teórico, Romer bate-se contra a ideia de que os rumos do desenvolvimento tecnológico são naturalmente definidos “pelos mercados” e de que “nada é possível fazer” diante deles. É precisamente esta ideia que está solapando a concorrência e estabelecendo o poder dos monopólios, diz ele.

Mas talvez a contribuição mais avançada sobre como lidar ativamente com as novas tecnologias venha de outro Nobel da Economia – Joseph Stiglitz. Num breve ensaio em coautoria com Anton Korinek (“Steering Technological Progress”, ou “Dirigindo o Progresso Tecnológico” em tradução literal), ele vai além da crítica. Propõe critérios e parâmetros para que novas políticas públicas favoreçam o desenvolvimento tecnológico que contribui para o trabalho e a igualdade – e inibam o que tem sentido oposto.

Na introdução de seu paper, Stiglitz e Korinek frisam: “Nossa perspectiva é a de que o progresso tecnológico não ocorre por si mesmo, mas é dirigido por decisões humanas sobre o que, onde e como inovar. Não é adequado enxergar nosso destino como predeterminado por forças tecnológicas cegas, ou forças de mercado além de nosso controle, conforme argumentam alguns tecno-fatalistas”. Especialmente preocupados com os rumos da Inteligência Artificial, os autores frisam que ela jamais é neutra. Tanto pode apoiar o trabalho humano (como fazem as planilhas de cálculo ou mapas digitalizados, por exemplo) quanto eliminá-lo (a introdução de caminhões e táxis autônomos, que ameaça desempregar milhões de motoristas).

Stiglitz e Korinek lembram que os Estados têm múltiplos meios para influir nesta disputa – inclusive porque a maior parte da própria pesquisa que amplia a desigualdade conta, hoje, com financiamento público… O ensaio recorre, inclusive, a uma sucessão de fórmulas econométricas que não cabem neste texto. O essencial é compreender a possibilidade de mudança de paradigmas. Desenvolvimento tecnológico pode combinar com mais ocupações, mais direitos e mais igualdade. Esta ideia será essencial no debate sobre o futuro do Brasil, que travaremos nos próximos meses.

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