Diante dos processos de globalização contemporâneos, os quais poderíamos classificar como “sufocantes” se consideramos as pressões e/ou imposições que buscam gerar uma “unificação” com vistas à satisfação dos interesses mercadológicos, têm surgido formas de resistência cultural que questionam essa tentativa de homogeneização. É nessa perspectiva que quero apresentar uma reflexão sobre o porquê de a sociedade brasileira comemorar o Halloween em detrimento do Dia do Saci.

Dar vazão às diferenças tem sido um dos principais objetivos das lutas identitárias, na busca por contemplar o autorreconhecimento, o rompimento com práticas, comportamentos ou discursos que negam a importância e mesmo a própria existência de “outros/outras” e suas cosmovisões. Dessa forma, as lutas desencadeadas no âmbito das identidades precisam ser vistas não como contrapontos às necessárias transformações nas estruturas sociais, econômicas e políticas, mas, a partir de um olhar humianzante.

Aldeia global ou etnocentrismo?

Cada vez mais envoltas/envoltos nessas tranformações abruptas e complexas trazidas sobretudo pela globalização – a maioria delas facilitadas pelas tecnologias de comunicação e informação –, necessitamos nos focar naquilo que está mais próximo de nós, sob pena de nos perdermos nessa “teia compatibilizadora” que tenta, a todo momento, diluir as nossas identidades culturais e impor a falsa ideia de uma “aldeia global” que unifica o mundo.

Acreditar em uma “aldeia global” é assimilar um falso universalismo que, a nosso ver, coloca em evidência a chamada “lei do mais forte”, que nos conduz ao esquecimento das peculiaridades, das particularidades, das diferenças, das diversidades, das riquezas próprias de cada cultura, as quais são capazes de nos auxiliar na construção da nossa visão de mundo. Essa ilusória “aldeia global” está muito mais próxima a uma visão etnocêntrica do mundo do que propriamente a uma concepção de encontro.

Por isso, em nosso país tem sido cada vez mais ampliada a comemoração do Halloween, que se iniciou com as escolas de inglês, mas que tem sido atodada em muitos outros âmbitos, incluindo boates, casas de shows, bares e casas particulares, impulsionada pela classe média. Os eventos, com direito a decoração a caráter, movem um mercado de produtos específicos, como lojas de fantasia, por exemplo. Além disso, fazem mover também o mercado publicitário, pois o comércio, em geral, cria promoções temáticas alusivas a esta comemoração.

Referências brancas e judaico-cristãs da burguesia nacional

Somente para se ter uma ideia da adesão brasileira ao Halloween, em 2019 – antes da pandemia do novo coronavirus –, as comemorações chegaram ao Distrito Federal com uma vasta programação que durou três dias (de quinta-feira a sábado), recheada de eventos realizados em diversos espaços (parques, estádios, shoppings, choperias, entre outros), horários diversificados e com entradas francas e pagas.

Em São Paulo, que já realizava há vários anos as comemorações, uma cadeia de hoteis promoveu Happy Hour de Halloween, festa à fantasia com direito a DJ e todos os adereços relacionados ao evento, inclusive com seus bares e restaurantes oferecendo cardápios alusivos a esse festejo anglo-saxão.

Essa reverência a elementos da cultura estrangeira, em detrimento da cultura popular nacional, pode ser explicada, entre outras questões, pelo fato de o Brasil ter sido formado a partir de uma base escravocrata, que criou uma burguesia constituída, majoritariamente, por homens brancos, exaltadores de sua descendência europeia e judaico-cristã, os quais têm forjado, historicamente, a ideia de que esses atributos constituem o “parâmetro perfeito” para tudo o que se refere ao ideal de civilidade, de beleza, de cultura em nosso país. Dessa forma, tudo aquilo – e todo sujeito e grupo – que não se encaixa nesse arquétipo acaba sendo objeto de desprezo, de discriminação, de rachaço, de marginalização, como tudo o que diz respeito à cultura negra, por exemplo.

Resistência ao sistema ideológico

O geógrafo Milton Santos nos alertou em sua obra “Por uma outra Globalização: do pensamento único à consciência universal” acerca das estratégias dos Estados e do próprio capital no sentido de instaurar a ideia de inevitabilidade desse processo globalizante. Em contrapartida, o teórico sugere algumas formas de resistência que devemos adotar, incluindo-se, entre elas, uma mudança no sistema ideológico. Santos ressalta, entre outras questões, que os países do Sul possuem potencial para a transformação (metamorfose), por meio da cultura popular.

E é neste sentido que a comemoração do Dia do Saci se encaixa. Trata-se de uma forma de resistência, posto que a figura do Saci Pererê foi construída assentada em características que, a partir da cosmovisão da burguesiai eurocêntrica, tendem a reforçar vários dos muitos estereótipos aplicados ao corpo negro masculino, como, por exemplo, a “maldade”, a “perversidade” e a “malandragem”. Em geral, é assim que esse personagem do folclore brasileiro é visto.

Diferentemente de uma visão que pode ser justamente contrária, ou seja, o Saci como um ser inteligente, sagaz, astuto. No entanto, o racismo prevalece, o que faz com que seja impossível, a partir dessa visão preconceituosa e desumanizadora, enxergá-lo de maneira positiva.

É por isso que devemos comemorar o Dia do Saci e não o Helloween. Porque esse personagem negro representa a antítese do ideal de cultura apregoado e cultuado pela burgusia brasileira. Porque o Saci representa o povo, sobretudo os setores mais vulnerabilizados que criam formas de resistência às suas existências atreladas às péssimas condição de trabalho, de renda, de moradia, de saúde, de educação, etc. Por isso que hoje devemos comemorar o Dia do Saci. Viva a diferença!