LITERATURA

Por Sabine Mendes Moura

 

Entrevistamos a poetisa e arqueóloga mineira Lara de Paula e o quadrinista paulistano Will Rez para saber mais sobre o “mundo Abaixo” em “Por Um Fio”.

 

Eles estão exilados no fundo do mar. Há décadas. São dissidentes da norma, que exige ausência de pigmentação na pele. Assim, somos apresentados ao “mundo Abaixo” em Por Um Fio, HQ lançada este mês pela Kitembo Edições Literárias do Futuro. Acontece que os “pigmentados” vão ter de se defender de mais um ataque do “mundo Acima”, “o mais perigoso das últimas ondas”.

Para isso, Alima, a personagem principal, e seus colegas cientistas terão de buscar algumas respostas. Seu principal recurso é a Incorporágua, um processo de comunicação com seus ancestrais. Intrigados com esse enredo, fomos em busca de respostas também, entrevistando os criadores da obra: Lara de Paula, poetisa e arqueóloga mineira, e Will Rez, quadrinista paulistano.

De cara, descobrimos que Por Um Fio começou como um texto em prosa arquepoética e encontrou seu formato para quadrinhos na potente parceria entre a escritora do conto, Lara, e o roteirista e ilustrador, Will, responsável por seu projeto visual.

Lara de Paula

PRESSENZA: Lara, o que te trouxe inspiração para falar de exílio?

LARA: Eu escrevi Por Um Fio na segunda metade de 2020. O isolamento pandêmico ainda era mais intenso e, nesse contexto, refletia sobre racismo como uma forma de segregação social muito potente, com diferentes níveis de impacto dependendo de onde você está, mas, de certa forma, podemos dizer que esse exílio já ocorre. Então, comecei a pensar um universo de não interação. Sou uma pessoa negra que frequenta e vive em espaços muito embranquecidos, por conta do doutorado e da socialização em minhas esferas de trabalho, ainda majoritariamente ocupadas por pessoas brancas. Já tive de passar por diversas situações em que senti, nitidamente, que o ideal, para algumas pessoas, seria que eu não estivesse naquele espaço, que “servisse sem ser vista”. Me inspirei bastante na observação das estruturas de racismo institucional e recreativo que demonstram a predileção (ou devaneio) das elites racistas por usufruírem dos frutos de trabalho de pessoas não brancas sem precisar ter contato com elas. Me lembrei de quem trabalha no sistema de limpeza pública, das camareiras, das empregadas. Esse mito do negro que “serve, mas não é visto” inspirou a trama principal do livro: a cisão completa entre o universo dos “sem cor” e o universo das “pessoas pigmentadas”, dissidentes da “norma da ausência de pigmentação”.

PRESSENZA: E por que o fundo do mar?

LARA: Eu fiz referência a uma obra que me tocou muito, da Tabita Rezaire, uma artista afrofuturista guianesa. Ela tem um vídeo que se chama Deep Down Tidal, sobre as rotas marítimas formadas por cabos de transmissão de internet. O sinal de internet wireless só é possível porque há um gigantesco sistema de cabeamento intercontinental submerso que permite que essas informações circulem pelo espaço global. No entanto, Tabita sobrepôs o percurso desse cabeamento às antigas rotas seguidas por navios negreiros para o tráfico de escravizados e descobriu que são muito semelhantes. O trabalho dela é uma tentativa de mostrar como a colonização não acabou de verdade. Foi apenas redefinida, repaginada, reconfigurada para outros suportes e dinâmicas, mas é preciso observar o quanto a tecnologia segue estando a serviço dessa lógica colonial. Durante esse vídeo-ensaio, Tabita também reflete sobre o impacto dessa carga emocional e dos dados transmitidos nos oceanos, considerando que essas águas guardam a memória ancestral de toda movimentação humana desde o início da espécie: das viagens, dos sepultamentos de pessoas jogadas ao mar, das imigrações, das disputas territoriais, das guerras, dos refugiados… Isso me impactou tanto que comecei a criar o universo de Por Um Fio. Além disso, sou praticante de religião de matriz africana, filha de Oxum, uma Iabá, orixá feminino, cuja energia regente é responsável, entre muitas outras coisas, pela água. Sempre tive um contato muito próximo com esse elemento, mas a forma de pensá-lo em relação a essa violência se expande a partir de outras simbologias: a água enquanto memória, enquanto cura, enquanto ventre. Essas personagens estão exiladas embaixo d’água, mas a primeira casa que a gente tem, o útero da nossa mãe, é uma casa líquida, né? Então, é uma violência que eles sofrem, mas que, ao mesmo tempo, faz emergir a percepção de resiliência de um povo que tem um histórico de sobrevivência. Ali, temos descendentes de diversos povos que tratam a questão da sobrevivência de forma ancestral e conseguem êxito nessa empreitada muito porque sabem se relacionar com o elemento da água.

PRESSENZA: E, Will, conta para a gente como você se somou à Por Um Fio?

WILL: Acho que a minha parte foi dar autenticidade visual para o projeto. A Lara tinha referências visuais para o que queria e o Israel Neto, editor da Kitembo, também ajudou com elementos nerd, que eu também adoro! E fui misturando isso tudo. É uma característica minha: misturar referências e seguir influências dos mangás, de comics, da cultura negra etc. Em Por Um Fio, a mistura ajudou, de um jeito natural, a criar essa concepção de autenticidade.

PRESSENZA: E o que mais te chamou atenção no projeto?

WILL: A premissa de vidas forçadas a sobreviverem no fundo do mar! Nosso povo negro tem esse histórico de resiliência. Sobrevivemos em ambientes onde somos obrigados a ficar e, como sempre, apesar dos pesares, nós conseguimos!

PRESSENZA: Lara, o que você poderia nos dizer sobre a Incorporágua?

LARA: A Incorporágua ou Incorporaguação surgiu a partir de minha ligação com o candomblé. No candomblé, a incorporação executa a transmissão de conhecimentos ancestrais a partir desse estado alterado de consciência, promovendo a conexão com o sagrado. Além da sabedoria de compartilhar conhecimento por meio dos mais velhos e da oralidade, há também essa carga de energia muito potente: conseguimos nos conectar com nossas divindades através do nosso próprio corpo. Esse movimento foi o que mais me aproximou da espiritualidade por ser uma perspectiva afrodescendente, diaspórica, muito diferente das noções de religiosidade e espiritualidade que eu conhecia anteriormente nas religiões de matriz cristã, em que há um distanciamento completo entre o indivíduo e essa potência divina. A minha ideia, com a Incorporágua, era mostrar que, a partir da observação dos elementos e dos conhecimentos impressos em nós, podemos criar conexões não óbvias, que não são, necessariamente, parte do plano cotidiano. Assim como a água, carregamos memórias registradas em nosso componente molecular, que nos permitem conexões divinas, sobrenaturais, mas relacionadas aos universos em que vivemos. Por isso, “incorporaguação”. Fiquei imaginando uma tentativa de criar equilíbrio, uma homeostase entre esse ambiente interno do nosso corpo, que é mais de 70% líquido, e esse universo aquático externo.

PRESSENZA: Então, você a vê, também, como metáfora ou inspiração para um recontato com nossas raízes ancestrais?

LARA: Sim, é uma metáfora direta, porque o processo de incorporaguação é atingido a partir de um ritual específico. Colocam-se vários objetos ao redor da personagem principal, todos fazendo referência à ontologia específica em que ela e aqueles que a acompanham vivem. Como o exílio levou para baixo d’água todas as pessoas “pigmentadas”, há diversas culturas e povos distintos, de lugares distintos no “mundo Abaixo”. A Incorporaguação foi a forma que eu encontrei de estabelecer contato com raízes ancestrais diversas: como as pessoas se reconectariam com suas divindades em um espaço onde todos os recursos necessários para isso eram limitados? E como criar um processo, em tese semelhante para todos, que alcançasse caminhos distintos? Quando a pessoa está em estado de Incorporágua, acessa, de início, um espaço onde encontra Modibo, um mensageiro ou recepcionista, que a direciona à entidade ou espaço com o qual se deseja conectar, segundo o sistema de crenças de cada uma. Uma pessoa de tradição indígena, por exemplo, não será direcionada ao mesmo lugar que a Alima. A Incorporaguação é esse estado de transe que dá acesso a esse mensageiro. É um processo diretamente relacionado com o autoconhecimento e a noção de comunidade, que depende da movimentação da água e foi diretamente inspirado no xirê.

PRESSENZA: Will, quais foram seus maiores desafios na hora de conceber toda essa riqueza visualmente?

WILL: Bom, eu adaptei o conto inicial para os quadrinhos sem roteiro, partindo apenas das cenas e situações que havia ali. E um conto escrito por uma poeta tem muito elementos abstratos, muitos sentimentos difíceis de transpor para o visual. Então, meu maior desafio foi tentar me aproximar desse universo e passar esses sentimentos e emoções que o conto da Lara nos proporciona. Em alguns momentos, por exemplo, há muita dor e, no semblante da Alima, a gente vai percebendo isso. Seguindo a cronologia da história, a gente percebe que ela é mais sorridente, mais alegre no começo e, com o desenrolar da trama, vai adquirindo um olhar mais sério, mais duro, devido a todo sofrimento por que passou.

PRESSENZA: E quais foram as suas inspirações para ir compondo esse mundo imagético?

WILL: [RISOS] Eu me obriguei a assistir filmes da Disney como A Pequena Sereia e Atlantis, mas também o Aquaman, da Warner, e outras coisas antigas, como Waterworld. Tudo para entrar naquele universo. Hoje mesmo, conversando com a Lara, soube que ela usou uma referência de um artista de que nós gostamos muito para compor uma das cenas. Quando fui ver a cena que eu tinha criado na HQ, reparei que era algo muito parecido com o que esse artista criou, mesmo sem ter visto a referência antes! Mas não foi uma tarefa fácil fazer algo parecido que não fosse cópia.

PRESSENZA: Agora, bateu a curiosidade: que artista era esse?

WILL: [RISOS] É o Shiko!

PRESSENZA: Lara, além do que você já comentou, como você acha que a ciência aparece na trama de Por Um Fio?

LARA: Ah, eu encaro a informação sobre o cabeamento e essa percepção da justaposição dos mapas coloniais como observação do âmbito das Ciências Sociais, do impacto da História – e da ausência da História – nas reflexões científicas, o que, às vezes, causa a impressão de que a ciência é neutra. Pesquisei um pouco sobre nanotecnologias, mas gosto de pensar que a ciência também está presente na história na forma como as personagens principais veem o mundo, por exemplo. A Incorporaguação é uma busca por referências. Em qualquer processo de pesquisa científica, observa-se uma situação, fenômeno e identifica-se um problema ou questão. Por um Fio começa com a identificação desse problema. São formuladas hipóteses quando a Alima vai à estação de observação Iracubu. Como ela não tem referências nem tecnologia suficientes, vai atrás das próprias referências ancestrais. Entra em contato com o meio espiritual para adquirir o conhecimento a partir do qual poderá realizar uma escolha de ação. E essa ação é experimental: ninguém sabe qual será o resultado de subir ao “mundo Acima”. Mas a decisão é tomada com base em metodologia própria e, quando Alima retorna da Incorporaguação, surge um elemento imprevisto, ou seja, mesmo essa primeira etapa de coleta de dados gera uma reação inesperada, que faz com que eles precisem uma vez mais aprofundar o conhecimento da situação atual indo no Oráculo dos Vivos e realizando uma nova coleta de referências, uma nova pesquisa bibliográfica, digamos assim. Então, o processo científico está presente no texto para além dos referenciais envolvendo tecnologias, sejam tecnologias tradicionais ancestrais sejam aquela mais diretamente relacionadas ao universo cibernético e virtual.

PRESSENZA: Como você vê a influência a poesia e da arqueologia na escrita de Por Um Fio?

LARA: Para mim, poesia e arqueologia são jeitos de contar histórias. Em Por Um Fio, poesia é escolha narrativa, como o Will já disse. Gosto de pensar que tudo o que eu escrevo está permeado por uma observação poética. Já a arqueologia conta histórias sobre o passado, as relações que o passado estabelece com “os presentes” e as perspectivas que isso apresenta em relação ao futuro. No conto, enfatiza-se essa necessidade de observar o passado para construir possibilidades distintas de futuro a partir de escolhas de ações no presente. O que a Alima e os demais personagens fazem está diretamente ligado à importância do mundo material e a arqueologia trabalha, principalmente, com quatro coisas: Humanidade, elementos relacionados à vida e ação humana; Espaço, que inclui a paisagem e os locais onde as coisas acontecem; Contexto, que traz a questão das temporalidades, o “quando” as coisas acontecem; e a Materialidade, o mundo material, envolvendo os outros três aspectos. Foi essa visão arqueológica que me levou a construir uma história centrada em um universo cultural, sem ignorar a existência de outros universos. Daí, vem o desmembramento da Incorporágua para permitir o acesso a várias ontologias. Tendemos a nos esquecer de que existem pessoas muito diferentes da gente, com necessidades e visões de mundo diferentes. Efetivamente, vivendo em mundos outros. Além disso, dentro da minha pesquisa acadêmica, proponho o conceito de arqueopoesia: a utilização do recurso poético como uma forma efetiva de se produzir e disseminar conhecimento, para além do efeito estético, pensando no trabalho dos griôs, que detinham o conhecimento tradicional das histórias de um povo e, portanto, tinham a obrigação de repassá-lo, compartilhando-o com a comunidade através da oralidade. Minha poesia se consolidou em espaços de declamação, o que tem um impacto muito grande na minha forma de escrever, em termos de cadência, ritmo e rimas. Por Um Fio é uma contação de histórias também, em formato de quadrinho.

Will Rez

PRESSENZA: E, Will, como você acha que sua experiência anterior como quadrinista se compara ou complementa o trabalho realizado em Por Um Fio?

WILL: Por Um Fio foi um trabalho que eu aceitei fazer sem nem pensar duas vezes! Apesar de ter um traço mais irreverente, uma pegada cômica, eu estava afim de fazer um projeto mais sério, mais denso. O tema afrofuturista me pareceu muito interessante naquele momento, apesar de ter iniciado pouco tempo antes uma espécie de Afrotokusatu, que está lá guardadinho por enquanto. E além disso tudo é o trabalho que fiz mais páginas (a HQ tem mais de 70 páginas) em menor tempo. Me orgulho muito desse projeto, da confiança do Israel (da Kitembo), ao me oferecer essa proposta e me dar espaço para que eu mostrasse meu trabalho, e da Lara, por me deixar dar uma nova cara, uma nova roupagem para sua obra.

PRESSENZA: Lara, palavras finais: o que você gostaria que as pessoas levassem consigo depois de lerem Por um Fio?

LARA: Gosto de pensar que quem ler Por Um Fio vai terminar refletindo sobre o significado de nós, seres humanos, estarmos nos matando, nos violentando, nos exilando de tal maneira que o convívio esteja se tornando impossível. Ao mesmo tempo, que vão observar a potência da união, da compreensão da unidade na diversidade. O processo final do texto foi muito catártico. Fiquei me perguntando como eu terminaria a história: é uma distopia, uma coisa terrível e como você sobrevive depois de coisas terríveis? Foi a observação histórica e arqueológica que me fez perceber: as pessoas sobrevivem, mas, geralmente, isso se deve à noção de comunidade, à compreensão da necessidade de se exercer a sociabilidade de forma justa. As resistências indígenas têm trabalhado isso constantemente: povos muito diferentes, unidos em prol de um ideal que leve ao bem viver de todos.

PRESSENZA: E você, Will? O que teria a dizer a possíveis leitores?

WILL: Ah, espero que se emocionem e procurem os easter eggs escondidos ali nas páginas! Agradeço aos amigos que me apoiaram, que me apoiam desde sempre, a todos que já leram, e, para quem se interessar, é só procurar em nossos perfis, porque já está à venda!

PRESSENZA: Obrigada, pessoal! E muito sucesso.

Quem tiver interesse adquirir seu exemplar de Por Um Fio, basta visitar a loja da Kitembo Edições Literárias do Futuro. E aproveite para seguir o Instagram da Lara de Paula [@arqueoposia], do Will Rez [@willrez] e da Kitembo [@kitembo_literatura]