CRÔNICA

 

 

Por Marco Dacosta

 

 

O calor estava tão intenso que era possível fritar ovos no chão da avenida Presidente Vargas – pelo menos assim bufava uma senhora no bonde. Euclides respondia com um sorriso e ar pensativo. Estava em uma missão muito nobre: comprar um pato para o almoço de domingo. Havia saído de Cascadura naquele dia para garantir a ceia de Natal. Sua mulher Iracema o esperava ansiosa – ela, uma senhora vinte anos mais velha ganhava a vida na costura, atracada a uma máquina Singer. Seus pés delicados não paravam de pedalar para que a agulha entrasse e saísse costurando pijamas e vestidos. A ceia, um momento de sair da rotina dos tecidos e entrar nos sabores das carnes e ensopados.

Euclides era um jovem soldado, vindo da roça, sem muito conhecimento no Rio, mas comprar um pato não haveria de ter ciência. Precisava apenas seguir as instruções de sua patroa. Literalmente patroa, que aproveitava a diferença de idade para agir de forma maternal “me traga esse pato – vivo”. A preocupação de Iracema: o casal não tinha geladeira e o bicho não manteria o sabor se não fosse cozido, digamos “fresco” após o abate.

No quintal, o pomar e o cercadinho, havia galinhas – três. Um galo manco, um porco magro e alguns pintinhos que lutavam para sobreviver ao calor do Rio de Janeiro. Espere. Faltou dizer: estávamos em 1939, no primeiro verão do casal na cidade maravilhosa, onde haviam chegado meses antes, fugindo do frio e das línguas afiadas de Pouso Alegre, no sul de Minas, onde contestavam aquela relação com tamanha diferença de idade.

Voltando ao pato – era necessário que a ave fosse abatida na manhã de domingo, para a ceia de Natal. A ordem – ou melhor “pedido” de Iracema: Euclides teria que ir a uma granja que ficava em Vila Isabel, de onde saíam os melhores patos e frangos. O lugar chamava-se “Ponto do Pinto” e havia filas para adquirir as aves, a maioria vivas. Na época, era prática comum abater em casa e comer depois, já que a maioria das casas, principalmente dos mais pobres, não estavam equipadas com refrigeradores. Fundamental – repetia Iracema – que o pato fosse levado a Cascadura naquela tarde de sábado e chegasse vivo e em boas condições.

Euclides havia explicado sua dificuldade em reconhecer um pato – é como uma galinha mais encorpada? É um ganso – desses que flutuam no Campo de Santana? Não sei! Na verdade tinha medo de trazer uma ave diferente já que a viagem era longa. Vai que vem um peru, um ganso. Um trem, dois bondes, anotou em um papel de pão: uma parada no Méier; depois outro até a Tijuca e finalmente um que passava em Vila Isabel. Pronto, pelo menos o trajeto ele sabia.

Iracema colocou os 20 mil Reis no bolso dele e disse que fosse logo. O espaço para o pato no pomar estava reservado. Planejava acordar cedo no domingo e ir calmamente até o lugar, torcer o pescoço do bicho e prepará-lo com batatas: seus dois filhos do primeiro casamento viriam só para a ceia. A primeira e tão especial. O Rio de Janeiro naquele tempo parecia uma babel de sons estrangeiros, de cheiro de incenso. O amolador de faca chega às sextas, na esquina de sua casa. Era tudo que precisava para começar a montar a ceia, mas naquele sábado ela só queria descansar. Enquanto Euclides se aventurava até o Morro dos Macacos, ela se preparava para dormir cedo e descansar, antes que o sol anunciasse o longo domingo. Amêndoas, castanhas, uvas. Só faltava o grito de morte do pato.

Euclides cumpriu a missão – em parte. Chegou no local até que mais cedo do que pensava. Entrou na fila, comprou o pato. Escolheu um gordinho bem volumoso, imaginando a fartura que seria no dia seguinte. Na volta, aguardou o bonde e embarcou com o bicho envolto em uma folha de jornal, com as patinhas amarradas. O dono da granja disse “carregue o bicho de cabeça pra baixo”.

Assim que entrou no bonde sentou-se ao lado de duas senhoras – que calor, uma disse. Que cheiro insuportável, reclamou a outra. Aí veio a tal história de fritar ovo na avenida de novo. Cariocas adoram o calor e reclamar dele! Euclides se manteve atento as instruções da patroa, mas o pato parecia querer lutar pela vida e começou a emitir sons altíssimos. Disputava com o ranger dos trilhos, chacoalhava a cabeça, enquanto Euclides se mantinha imóvel, apenas apertando cada vez mais o pescoço do bicho. E o pato resistia, gritava, cada vez mais sufocado. Todo o bonde já parecia solidário – solta esse bicho!, gritou alguém. Euclides não piscava, respirava pausadamente. Pensou no seu treinamento militar. O pato seria um inimigo de guerra, um troféu da batalha.

Um pouco depois de passar pelo Méier, o pato não resistiu e caiu morto nos braços de seu algoz. Euclides até que tentou ressuscitá-lo, jogando um pouco da cachaça que trazia em uma garrafinha. Tinha aquela promessa de não voltar a beber, mas carregava um compartimento reserva de emergência, secreto. Será que alguém viu? Será que vão perceber o cheiro forte da caninha?

O pato chegou a Cascadura, mortíssimo. Iracema teve que levantar da cama e cozinhá-lo até as três da manhã. Patos tem carne dura – demoram – dizia, olhando Euclides, com decepção. No dia seguinte a ceia estava belíssima e todos ficaram bem felizes com a fartura. Uma renda branca cobria a grande mesa, crianças corriam em volta. Era a primeira ceia da família na cidade. Euclides não conseguiu comer o pato – “achei doce demais” – revelou nas conversas a noite.

Iracema nunca mais pediu para ele comprar animais vivos e com a chegada da geladeira anos depois, a família aprendeu a comer sem pressa. Porcos, galinhas, vários foram sucessores do pato na mesa dos Natais, mas ela jamais esqueceu aquela noite que virou cozinhando a ceia porque Euclides não conseguiu manter vivo seu prisioneiro de guerra.

No ano seguinte Euclides foi enviado a Natal, no Rio Grande do Norte, como preparativo para embarque de guerra. Iracema escreveu uma carta de despedida e o lembrou que lutasse com a mesma força e intensidade que usou para matar aquele pato. Riram e choraram até que para sua desilusão, não foi destacado para a força expedicionária que lutaria na Itália. Deve ser a vingança daquele maldito pato – disse em oura carta. A história percorreu décadas, virou lenda familiar, história de contar antes das ceias.

Um dia Euclides foi me buscar na escola – fui seu bisneto favorito. Quando chegamos a casa, Iracema havia partido. Eu ainda não entendia a morte e o desaparecimento e ele, para me consolar, contou a história de como era divertido viver ao lado dela e como foram maravilhosos aqueles anos.

O pato enforcado naquele Natal para ele sempre foi uma metáfora de todas as coisas que ela havia ensinado e ele não entendido. De todas as lições que a diferença de idade nos deixa: “Iracema me ensinou tudo que sei “, disse, com o coração apertado. Aquela noite toda cozinhando – lembrou – não era sobre pato, ceia ou família – era sobre o nosso amor.