SEGUNDA-ENCRUZA

 

 

Por Daniel Vila-Nova

 

 

“Batidas na porta da frente… é o tempo. Eu bebo um pouquinho pra ter argumento. Mas fico sem jeito, calado. E ele ri. Ele zomba do quanto eu chorei. Porque sabe passar, e eu não sei.” (…) Respondo que ele aprisiona. Eu liberto. Que ele adormece as paixões. Eu desperto. E o tempo se rói com inveja de mim. Me vigia querendo aprender como eu morro de amor pra tentar reviver. No fundo é uma eterna criança que não soube amadurecer. Eu posso e ele não vai poder me esquecer…” (Aldir Blanc, Resposta ao Tempo).

Como se fora um “tiro ao Álvaro”, esse petardo do saudoso Aldir me acordou. Que letra… Mais uma vida que o Coronavírus levou. Era maio de 2020.

A Coluna de Hoje é dedicada às crianças e aos adolescentes, vítimas indefesas da violência de bombas, do descaso e de fuzil, sejam elas da Palestina ou do Brasil.

Na República do Genocídio, não se morre apenas de COVID-19 (ou seria, agora, COVID-21?).

No último 17 de maio de 2020, fez 1 ano que um adolescente de 14 anos levou um tiro de fuzil pelas costas. O laudo cadavérico, de um inquérito — que ainda segue sem qualquer horizonte de desfecho —, aponta que o tiro entrou no corpo pela região dorsal direita (isto é, nas costas, logo abaixo da axila).

João Pedro foi fuzilado, no Complexo do Salgueiro, durante uma operação conjunta das Polícias Civil e Federal há, exatamente, 1 ano e 1 semana.

O adolescente brincava com outros cinco jovens no quintal da casa dos próprios tios no momento em que a ação começou. Segundo os amigos de João Pedro e testemunhas do crime, o grupo correu para dentro da casa quando policiais arrombaram o portão e invadiram a casa atirando.

Sem mandado judicial, sem licença para matar. A tragédia de João Pedro não pode ser esquecida.

Executado, aos quatorze, num país em que “só” existe pena de morte com “guerra declarada”. Alto lá! Se isso não for uma guerra, qual o nome humilhante que precisaremos invocar?

Lembrei, ainda, Querida Leitora, Querido Leitor e Queride que lê, do dia 21 de setembro de 2019. Era final de inverno. E a menina Ágatha, de 8 aninhos, na flor da infância, também foi aniquilada por nosso Estado policial.

Nessa linda Charge de Nando Motta (que ilustra a coluna de Hoje), tomei a liberdade de descolorir a ilustração. O momento segue de luto declarado. E de luta manifesta.

Duas vidas de valor inestimável jogadas na sarjeta por agentes oficiais do Estado, que se diz “democrático” e se diz “de direito”… Antes? Teve Amarildo e, também, Marielle… Depois, em pleno maio de 2021? Ainda teve a Chacina do Jacarezinho…

Mesmo com a “saturação” de cores desativada, dá pra perceber qual é a cor dessas duas crianças… Essas vidas importam, ou vamos fingir que não?

É fácil apelar para despedidas românticas nesses momentos. Seriam Ágatha e João anjos ou heróis? Cada um e cada uma que possa meditar a respeito disso.

Para mim, são exemplos de luta que continuam vivos. Não dá para tolerar esse descalabro. Criança nasceu pra brilhar.

Não pra tomar tiro de fuzil.

Nesta Segunda Encruza, 24 de maio de 2021, em meio a este pandemônio pandêmico que não parece ter fim, muitas despedidas ocorreram — e seguem a ocorrer. No momento, já são quase 450 mil vidas brasileiras que correram por entre os nossos dedos…

No último Dia 22, o chamado “Dia do Abraço”, chegamos à marca de 1 milhão de despedidas só na América Latina… Quase metade disso (45%), só no Brasil…

Sinta como cada vida importa. Quantos abraços imaginários se desfazem?

Nessa vida, há o que se vive e o que se lembra ou se esquece. De tudo o que ouvi e vivi durante esses 14 meses e 13 dias de quarentena, nada foi tão penetrante e imunizante quanto a poesia de Blanc.

Não tenho medo de “Lockdown”. Meu receio é da “louquidão” que esses tempos provocam. A sensação é a de que as pessoas já estavam trancafiadas dentro de si. Só demos uma escala social a toda essa aparência de conectividade.

Nunca estivemos tão isolados. O baile de máscaras é o deleite contagiante de um vírus anticarnavalesco. A exatos 7 meses da véspera de Natal, o “tô me guardando pra quando o Carnaval chegar” virou o #TôMeCuidandoPraQuandoAVacinaChegar. Será que chega?

Enquanto o desfile macabro continua, ouça as batidas na porta da frente: “toc, toc”. Tire a sua máscara diante do espelho. Tenha muito contato social com o seu próprio tempo.

Quando muitos já se antecipam para traçar cenários pós-Covid ou até mesmo lançar a tábua de mandamentos do natimorto “Novo Normal”, talvez, ainda valha a pena ter com o tempo, que nos transpassa.

Será que vamos “naturalizar” isso? Até quando vamos nos isentar desse sangue que corre nas mãos de todos os cidadãos adultos do país?

Até quando vamos nos pintar de “cordiais” e assumir, de uma vez por todas, a nossa responsabilidade cívica pelos rituais macabros de nosso cotidiano trágico?

Até quando?

Até quando, Brasil, até quando?