CRÔNICA

 

 

Por Guilherme Maia e Paolo D’Aprile

 

 

Ao examinar o cadáver encontrado de bruços na suíte de Pannonica de Koenigswater, amiga de todos artistas, sem conseguir determinar a causa mortis, o médico anotou em seu relatório que se tratava de um homem acima do peso de 55 anos.

O maior e mais importante músico de jazz de todos os tempos sucumbira à sua fragilidade humana feitas de excesso e incompreensão, feita de sensações epidérmicas sustentadas pelas complexas e infinitas nuances das relações interpessoais, transformadas por ele em harmonias, ritmos e escalas vertiginosas, desde garoto, quando em total solidão praticava ensaiando e experimentando intervalos harmônicos e modulações inéditas.

A melodia que nasce e se desenvolve baseando-se no suporte de uma dada sequência de acordes não bastava mais, não era mais suficiente para aplacar a urgência, para satisfazer às perguntas irrequietas da nova música que estava surgindo. A própria estrutura intrínseca do acorde do acompanhamento melódico se viu obrigada a mudar sua ordem interna, sua própria estrutura, como se para construir uma casa, a partir de hoje, fosse necessário começar, não mais pelas fundações, mas pelas janelas, passando pelo teto, as maçanetas, as portas e deixando as fundações flutuarem no quintal.

Com a melodia e a harmonia reformuladas, a concepção rítmica também mudou, ou melhor, acelerou, obrigando os solistas a inventar novas cadências pelas quais os acentos rítmicos nunca cairiam no tempo e no compasso certos, mas chegariam defasados, antes ou depois da batida do metrônomo, transformado a música em uma espécie de corrida maluca desencontrada, um soluço de bêbado dirigindo na banguela um caminhão sem freios.

Os jovens músicos daquela época, e da nossa, não tiveram, e não têm, dúvidas, abraçaram a incerteza do futuro deixando definitivamente o conforto dos cânones vigentes. A nova forma de compor e tocar, definida carinhosamente como Bebop, viera para bagunçar o coreto das certezas do já estabelecido, do já dito, do já ouvido, do aconchego familiar da bunda na poltrona e do chinelo no pé; a nova forma de compor e tocar viera para estabelecer novos padrões e patamares técnicos, e principalmente artísticos, um espelho de Alice no qual entrar, renegar a realidade insuportável para construir outra: um mundo inexplorado, inventado em cada modulação, em cada acorde, em cada nota, uma nova arca de Noé, morada de bichos que nunca existiram.

Na nova zoologia fantástica do Bebop, entre os agudos de arabescos sem vibrados, sempre encontraremos o registro grave do Blues primordial, das longas pausas que, feito meditação budista, inventam o Aleph da existência. Como se os solos lancinantes fossem gravações instantâneas da eternidade de um universo psíquico em constante mutação, a própria sede de toda a contradição do ser: o novelo do inconsciente individual entrelaçado em si mesmo, o grito espasmódico do Eu, ciente de sua infinita solidão. E assim foi. E graças ao Bebop, assim é até hoje.

O médico que o encontrou, escreveu em seu relatório que o cadáver no chão era de um homem acima do peso, com a idade aparente de 55 anos, mas se enganou. Aquele homem deitado no chão, morto de pneumonia, que deixara a vida sem a permissão da História, tinha 34 anos. Seu nome? Charlie Parker.

 

 

Quando perguntaram para o Miles Davis sobre a época em que ele tocou com Charlie Parker e gravou Star Eyes o que ele achava de tocar com o BIRD, a resposta foi: “toda hora me dava vontade de desistir de tocar, de abandonar a vida de músico!”.

O Jazz é um mundo onde seus deuses ascendem e decaem vertiginosamente. Há uma intensidade de voos que impressiona o quem mais padece de alexitimia. Nessa realidade está um dos maiores, o deus Charlie Parker.

O crítico Joe Goldberg (autor de Jazz Masters os the Fifities, publicado em 1995 pela Da Capo) entende Charlie Parker como o músico de maior influência na improvisação de todos os tempos após Louis Armstrong. Satchmo é um ícone, mas o Parker ultrapassa as singularidades no espaço-tempo.

Confesso que eu me enrolo quando abordo alguns desses ícones na hagiografia do Jazz. Miles Davis quase me fez desistir e a Billie Holiday parece que, para conseguir finalizar a resenha sobre ela na semana passada, baixou uma entidade enquanto eu escrevia. O mesmo se dá com o Charlie Parker, porque ele é muito, ele é total!

Por isso, já apresento de antemão nosso plano de voo aqui: rápida pincelada no nascer do gênio; uma obra a ser analisada (no caso, Charlie Parker With Stings: The Master Traks, da Verve); e os paralelos entre a personalidade do gênio, sua psicologia e como encaramos os dias atuais em que vivemos.

Meu amigo e parceiro nessa coluna, Paolo D’Aprile – o italiano mais brasileiro do mundo – solfejou Ornithology para me apresentar uma pista sobre quem falaríamos neste Cadernos de Cultura. Gelei… Como eu posso falar sobre o BIRD (depois explicarei a origem desse tragicômico apelido dele)? Mas compromisso é compromisso e, por isso, mãos à obra!

Charlie Paker é o pai do Bebop ao lado de Dizzy Gillespie, Bud Powel. Estilo revolucionário que põe o músico e a Jam (improvisação) como um ponto forte de libertação sobre o que quer que seja musical anteriormente. Charlie começou a tocar na idade de 11 anos, quem lhe ensinou os rudimentos de improvisação foi um trombonista chamado Robert Simpson, já que seu pai, apesar de ser pianista, vivia na estrada a trabalho.

Agora vem algo de muito especial: em uma entrevista que fez para o Paul Desmond (aquele que divide com Dave Brubeck o Take Five, além e outros tantos clássicos do jazz), Parker afirmou que passava 15 hortas praticando o instrumento continuamente.

Foi tocando com bandas do Kansas City, Missouri, – ele nasceu por lá em março de 1920 – eu desabrochou como músico. Aquela cena clássica do BIRD (filme de Clint Eastwood) aconteceu de verdade: em 1936, Charlie Parker foi tocar numa Jam Session no the Reno Club em Kansas City, lá estava Jo Jones, baterista da Big Band do Count Basie; Jo tinha o costume de jogar um dos pratos da bateria no chão quando algum neófito tentava sobressair como virtuose. Charlie, flutuando em suas ideias, errou em uma das alterações de acordes e o prato de Jo Jones veio ao chão retirando do palco o futuro deus do Jazz.

Outro detalhe importante é a dependência química de Parker, que se iniciou após um acidente automobilístico terrível que vitimou Charlie no caminho do Kansas para Ozarks, Missouri, onde ia abrir num night club. Nesse acidente quebrou costelas, além de fraturar a própria coluna vertebral: aí começa o seu drama com drogas. Justamente para aliviar as tremendas dores, Parker começa a fazer uso de opióides, o que o torna um viciado em drogas pesadas pelo resto de sua vida.

Iniciou sua carreira profissional e até sua primeira gravação com a banda errante de Jay McShann. Daí chegou a Nova York e em 1942 iniciou trabalho na banda de Earl Hines, onde tocava Dizzy Gillespie e Thelonious Monk: daí veio o salto – já acompanhado do standard “Cherokee” desde 1939 – por que surge o Bebop!

Charlie quebrou paradigmas dos limites de solistas no Jazz.

Aí o resto faz parte da História da Música!

BIRD era o segundo nome de Charlie Parker, porque Yardbird quer dizer pássaro de quintal, que faz alusão a presidiário, pois este não pode sair do limite territorial que é imposto e Charlie fora preso algumas vezes por porte de drogas.

Charlie and Strings

Norman Granz é um grande cara! Destemido no enfrentamento ao racismo, foi um grande produtor de Jazz e o pai do selo antológico da Verve, inaugurado em 1956. A Verve atravessou os 50 e 60 como um bastião da grande Arte e acabou por incorporar a Mercury (outro selo lendário).

Charlie Parker With Strings foi gravado em 1950, nos estúdios da Mercury, Nova York, que, depois foi absorvida pela Verve.

Pois bem: Charlie Parker With Stings é da Mercury, mas, após a junção com a verve, esta apensou todas as fitas das gravações de Parker de 1950, outra de 1952 (Stella by Starlight) e outra de 1947 (ao vivo no Carnegie Hall), formando o Charlie Parker With Strings: The Master Takes.

Destaque para os acompanhantes de BIRD: Ray Brown (o mestre do contrabaixo) e Buddy Rich na bateria. Além desses dois gigantes, há um naipe de cordas (violinos e cello) e, peculiaridades: no oboé está Mitch Miler, o homem que pôs o Sinatra para cantar com um cachorro em Mamma Will Bark (um clássico da tristeza no currículo do original “The Voice”).

Então, utilizou-se de Gershwing, Vernon Duke, Johnny Mercer, Cole Porter, Rodgers e Hart, todos os compositores que – sabe-se lá como – criam Standards em escala industrial; estão presentes lá: Summertime, April in Paris, Laura, I Didin’t Know What Time It Was, They Can’t Take That Away from Me, Easy to Love e tantas pérolas do cancioneiro estadunidense clássico permeiam essa obra prima de BIRD.

Por que BIRD quis gravar com cordas?

Sempre foi uma vontade dos grandes músicos de jazz a utilização de cordas. Desde o princípio, o que se convencionou chamar de “Música Clássica” foi uma referência para todos. Scott Joplin escreveu operetas e John Lewis, do Modern Quartet Jazz, chegou a conduzir a Sifônica de Stutgart. Até mesmo Ornette Coleman, em Third Man, gravou com cordas numa fusão Jazz/Clássico (falo de Ornette, porque ele foi o grande responsável pela conversão de Paolo D’Aprile ao Jazz – soube disso de fontes fidedignas, ou seja, do próprio Paolo).

E a Billie Holiday? Não foi ela a primeira do mundo do Jazz a registrar seu miado de gata celeste com cordas no LP Lady in Satin?

Apesar de algumas acusações puristas de que o Jazz com cordas foi uma heresia e tentativa de comercialização para as massas, a ideia das cordas não partiu de Norman Granz ou de outro produtor, mas, no caso em tela, do próprio BIRD – que sonhava com isso!

Interessante que tudo nessas gravações gira em torno do virtuosismo de Charlie Parker através de seu sax alto. Não há espaços para Jam, a não ser pontualmente no piano no papel de acompanhante. Toda a “coloratura” é produzida pelo BIRD. Não pôde ele contar com alguma frase inusitada de Dizzy Gillespie para se soltar e ir além ou mesmo de um Miles Davis para servir de trampolim para grandes voos: tudo para o Jazz ter de germinar entre as cordas veio exclusivamente do saxofone mágico do pássaro encantado da liberdade sonante: tudo veio de Bird!

Fora as cordas, minha música predileta de Charlie Parker é Star Eyes. Eu simplesmente amo! É como oxigenar o cérebro quando o músico entra abruptamente com o seu alto após a introdução sincopada do piano de Walter Bishop Jr, o baixo de Teddy Kotick e a bateria xamânica de Max Roach, e, claro, do trompete de Miles Davis. Graças também à gravadora Verve – aliás, Clef Records, também de Norman Granz, depois fundida à Verve, – que registrou essa preciosidade em 1955.

Como é bom ouvir Star Eyes com o BIRD!

Charlie Parker é estratosférico e em seu fraseado ilimitado está uma esperança para a Humanidade. Por que se o ser humano pode tecer aquelas harmonias e ritmos – assim como Gaudí conseguiu projetar o Templo Expiatório da Sagrada Família como um símbolo da arquitetura modernista catalã – somos destinados à grandeza e não à perdição da mediocridade e da boçalidade!