OPINIÃO

 

 

Por Luciane Silva, Tiago Abud, Eliza Rosa (Pesquisadores do Núcleo Cidade Cultura e Conflito da UENF) 

 

 

Como pesquisadores e pesquisadoras do Núcleo de Pesquisa Cidade, Cultura e Conflito (NUC) da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), a morte de Henry Borel, criança de 4 anos, tem sido objeto de nossa reflexão. Para este artigo vamos aplicar a Análise de Conteúdo (AC), uma técnica que possibilita o estudo de sentidos, posicionamentos e ideologias a partir de elementos dispersos. A AC pode ser realizada com base em cartas de soldados em guerra, colunas de um jornal, ocorrências policiais ou letras de música. A proposta é pensar que esses materiais formam um conjunto capaz de fornecer uma compreensão sobre determinado grupo particular, sobre sentimentos de uma categoria profissional ou mesmo sobre uma sociedade em determinada conjuntura. Nesse exercício reflexivo, a partir das manchetes, canais de vídeo e sites de discussão, o objetivo é compreender a avaliação dos moradores fluminenses (especialmente cariocas) sobre o caso e como essa compreensão pode ser útil para problematizar questões sobre moral, democracia e segurança pública.

 

O caso

Em 8 de março o menino Henry Borel, residente à Barra da Tijuca dá entrada em um hospital. Posteriormente é divulgada a notícia de que a criança já estaria morta naquele momento. A alegação de queda da cama feita pela mãe e padrasto são contraditórias com as lesões (posteriormente foram  apontadas 23) no corpo de Henry.

Os acusados

A alegação de que a morte teria sido causada por um acidente doméstico (a queda da cama) foi descartada pela necropsia. O vereador Jairo Souza Santos Júnior (Dr. Jairinho), o padrasto com formação em medicina, e Monique Medeiros, mãe de Henry, foram presos por suspeita de atrapalhar a investigação.

A ação policial

Uma força-tarefa foi montada pelo delegado Henrique Damasceno, titular da 16º DP (Barra da Tijuca). Perícias, depoimentos, uso de tecnologia de ponta e reprodução simulada foram recursos utilizados em uma investigação de excelência da Polícia Civil do Rio de Janeiro. A conclusão do inquérito deve ocorrer antes do final do mês de abril. No desdobramento do caso, os dois acusados, Dr. Jairinho e Monique Medeiros devem ser indiciados por homicídio duplamente qualificado, por emprego de tortura e sem possibilidade de defesa da vítima.

A cobertura midiática

Todas as grandes redes de televisão e rádio têm noticiado o caso diariamente. E uma infinidade de canais de análise comportamental, sensacionalistas, investigativos e jurídicos tem tomado o caso como objeto de suas pautas. É nas redes sociais e canais como YouTube que podemos acompanhar a cobertura ao vivo e sua repercussão sobre a opinião pública.

Análise do conteúdo das redes e YouTube

Desde o início do caso temos analisado o conteúdo das manifestações em canais, blogs, jornais e outros veículos de mídia. Algumas delas merecem destaque para compreendermos a reação ao ato lesivo e o que estas manifestações indicam.

Em primeiro lugar, a mãe aparece como cruel, fútil e não raras vezes é responsabilizada pela morte de Henry. Ou seja, a figura materna como responsável pelo bem-estar da família ganha centralidade em um crime no qual um dos acusados apresenta um histórico de agressão a mulheres e crianças, com uso de tortura. Em declarações recentes, Monique apresenta uma carta com riqueza de detalhes sobre o modus operandi de Jairinho. É absolutamente crível a declaração feita por ela: ciúmes, perseguição, manipulação, uso de remédios, ameaças, violência física cotidiana, opressão. Neste ponto vemos os perigos da formação de uma opinião pública a partir de imagens da mãe indo ao salão ou bem vestida no dia da morte do filho. Nenhum destes elementos (vaidade, futilidade, frieza) suplanta a prova: Jairinho é um homem extremamente violento, manipulador e acima de tudo, poderoso. Julgar Monique desconhecendo o poder da milícia é um equívoco. Quem o enfrentaria ?

Em segundo lugar, a tese de psicopatia individualiza o caso como resultado da ação de pessoas más. Aceitar essa tese é desconhecer a regularidade e intensidade dos maus tratos às crianças e aos adolescentes no Brasil. E desconhecer que a violência doméstica exercida sobre uma criança frequentemente se estende aos outros membros da família. Mesmo que seja mais reconfortante expressar o ódio ao casal, o assassinato de Henry revela que a infância em nosso país é vulnerável. Essa revelação não pode ser combatida com teses sobre psicopatia, pois, para reduzirmos danos dessa natureza, é preciso política pública de assistência e proteção social. Não estamos tratando de pessoas com comprometimento de nenhuma faculdade mental. Estamos tratando de práticas sociais conhecidas por toda opinião pública.

Em terceiro lugar, a cobertura do caso Henry e a investigação explicitam a seletividade da ação do Estado quanto ao perfil das vítimas. Neste 23 de abril de 2021, completamos 4 meses sem saber o paradeiro de Fernando Henrique de 11 anos, Alexandre da Silva de 10 anos e Lucas Matheus de oito. Os três meninos brincavam na rua na comunidade de Castelar, em Belford Roxo, quando foram vistos pela última vez. Segundo os familiares as investigações deveriam ter início imediatamente. O que não aconteceu. Este desaparecimento não tem lugar na mídia.

O que falta explicitar e qual seria o significado de tornar explícito?

Por último, cabe destacar o elemento mais interessante desse caso. Dos sites e material analisado podemos acompanhar a comoção social na expressão do ato bárbaro em relação à uma criança de 4 anos. As acusações a Monique Medeiros também são frequentes. Quando são endereçadas separadamente ao vereador Jairinho, vêm acompanhadas de crítica ao sistema político como corrupto. RAROS SÃO OS COMENTÁRIOS SOBRE O FATO DO VEREADOR SER APONTADO COMO MILICIANO. Jairo Santos, filho de Coronel Jairo, já foi acusado pela tortura de jornalistas do jornal O Dia na favela do Batan.

Por que esse é um fato tão importante no caso Henry?

Porque o Rio de Janeiro trava, há muitas décadas, uma guerra às drogas. Uma guerra que tem custado milhares de vidas anualmente de civis e agentes do Estado. Porque a cognição dos moradores do Rio e do Brasil associa todo mal existente na periferia a ação do tráfico. Porque o governador Wilson Witzel se elegeu com esse discurso e deu tiros com um helicóptero, além de comandar ações oficiais desastrosas em favelas, causando a morte de crianças inocentes e sem qualquer efeito prático sobre o mercado de drogas. Quando assumiu o cargo, o governador já sabia que o mapa da cidade e do Estado já não mostrava mais o tráfico como o grande problema da segurança pública.

Chama a atenção que Dr. Jairinho tenha ligado para o governador em exercício Cláudio Castro no dia do ocorrido. Chama a atenção que tenha tentado uma resolução rápida no hospital (tenha imaginado que isso seria possível). O pesquisador José Cláudio Souza Alves, em entrevista à Publica de 28 de janeiro de 2019, afirmara: “no Rio de Janeiro a milícia não é um poder paralelo. É o Estado”. O pesquisador tem demonstrado em livros e entrevistas, os tentáculos da milícia avançando para dentro do Estado. Em gabinetes parlamentares, na ocupação de cargos fundamentais como deputados e na estratégia de intimidação e ampliação dos espaços por dentro das instituições. Chegando aos mais “altos poderes” da República.

É terrível pensar que após cometer tantos crimes, foi preciso o homicídio de uma criança para que Jairinho fosse preso. É terrível pensar que, em seu início, a milícia em Rio das Pedras foi saudada pelo prefeito Eduardo Paes. É terrível pensar que moradores na região norte da cidade já defenderam a Liga da Justiça, de qual o coronel Jairo é apontado como liderança. Não estamos falando de um fato isolado, mas de uma prática comum a este grupo. Uma banalização do mal repetida anteriormente e amparada no medo das vítimas. Amparo que possibilitou a Jairinho seguir torturando crianças nos últimos anos.

É terrível pensar que ainda não sabemos quem mandou matar Marielle.

Todos esses crimes convergem para um mesmo fenômeno. E ele precisa ser nomeado por cada leitor e leitora quando tratar do caso Henry. As milícias avançam sobre o Estado sem recuo e construindo laços no Legislativo, Executivo e Judiciário.

Essa é a questão central pouco explicitada nos grandes jornais.

Agradecemos a Rafael Barros Vieira pela leitura e sugestões.

O artigo original pode ser visto aquí