CRÔNICA

 

 

Por Marco Dacosta

 

 

Não deve existir no mundo lugar mais quente que uma tarde quente de verão na avenida presidente Vargas. Pelo menos foi assim que Iracema descrevia os dias em que precisava entregar suas costuras em algumas lojas no centro da cidade. Em um daqueles dias depois do carnaval decidiu levar sua pequena neta Arlete a um fotógrafo para fazer uma foto – algo que há muito desejava – um registro especial, quase secreto. Iracema queria presentear Arlete para que no futuro soubesse que foi amada e muito desejada pela família – e sua primeira neta, criada ainda sobre suspeitas de que era uma criança com problemas de aprendizado. Dislexia na época era tratada como doença mental. A fotografia das duas sozinhas seria também a prova de que Iracema selaria uma eterna aliança de cuidado e carinho.

O arranjo com o fotógrafo era simples. Iracema era exímia costureira e faria o vestido para sua filha em troca da sessão de fotos. Secretamente partiram de bonde, saindo de Cascadura e com baldeações até a avenida Presidente Vargas. Arlete estava inquieta e estava vestida também por ela, graças a um corte de cetim comprado na semana anterior na rua da alfândega. Fazia um calor tremendo e quase todas mulheres usavam leques imensos, como se fosse uma sinfonia de abanos, com uma orquestra de track-track abre e fecha, esbaforidas, respirando fundo.

O leque era uma preciosidade. O adereço elegante era guardado em uma caixinha de marfim e ocasionalmente, nos dias quentes, retirado para revelar suas abas adornadas com seda chinesa. Dona Iracema era extremamente vaidosa e trazia os hábitos de sua infância burguesa no sul de Minas Gerais, onde seu pai fazendeiro passava os dias enrolando folhas de fumo para produzir charutos. As caixas de madeiras que simulavam o fumo cubano eram distribuídas em São Paulo e tinham grande aceitação. Foi criada para ser uma dona de casa exemplar, chegou a casar com homem mais velho e ser dona da primeira sorveteria de Juiz de Fora – mas já madura aos 50 se apaixonou por jovem soldado e deixou tudo para trás, recomeçando sua vida do nada – ou quase nada porque era orgulhosa de sua máquina Singer, que pedalava até altas horas da noite, remendando vestidos e reformando termos. Logo faria riqueza novamente e dessa vez por mérito próprio, acumulando casas e notas de câmbio, sobrevivendo a tuberculose e ao preconceito de muitos que não aceitavam aquela relação com um homem muito mais jovem – assanhada, despudorada, diziam muitos aos cochichos. A fuga para o Rio foi crucial para fugir das línguas mineiras. Na capital do Brasil, enorme e caótica, desapareceu e pode se reerguer. A fotografia com a neta, vestindo-se elegante, também era uma prova da sobrevivência e superação.

Iracema dos lábios de mel – sussurrava seu jovem amor naquelas noites. Sua família de origem francesa lhe deu um nome indígena brasileiro para agradecer as terras e incentivos recebidos aos brancos europeus até chegavam. A loira com nome nativo encantava a todos por onde passava, mas tinha uma personalidade forte, era decidida e muito independente para os padrões da época, o que lhe rendeu muitos conflitos.

Mas a foto ….

Iracema se posicionou e autorizou os cliques. Uma nuvem de pólvora subia fascinando a pequena Arlete. Uma das fotos mostra esse olhar, atônito, como procurando por estrelas no céu. A imagem registrou pra sempre aqueles segundos no verão de 1942. Iracema guardou a foto por décadas até entregá-lo ao também primeiro filho de Arlete.

Sou filho da pequena menina do retrato, herdeiro de todo carrinho e dedicação de Iracema. Por anos guardei aquela foto como o mais importante registro da família. É a minha linha de sucessão. Olho para ele como um príncipe vê seus antepassados nas paredes de um palácio.

Carreguei comigo por muitos anos essa lembrança como a mais valiosa relíquia. Não herdei nada dos meus avós e pais – as lembranças e histórias deles , no entanto, enchem meus dias de recordação e reconhecimento pelo esforço que tiveram para me fazer quem sou. No último dia das mães de Arlete, os 81 anos e quase sem memória em uma cama de hospital foi a fotografia de 1942 que levei até seu leito para que ela se lembrasse de fragmentos do passado. Ela sorriu e me pediu sorvete. Deve ter se lembrado daquela tarde de verão e de Iracema, do cheiro do bonde e do zunido dos leques das senhoras na avenida presidente Vargas.

O dia das mães sempre terá essa lembrança da menina da fotografia, sempre o sabor de uma fruta boa no quintal, no som do acordeom de Iracema nas tardes de verão, sabor a groselha gelada e ao amor das mulheres da minha vida.