CRÔNICA

 

 

Por Guilherme Maia

 

 

In other words I am three”. Em outras palavras eu sou três.

Poderia falar aqui do poder das placas tectônicas nas entranhas da terra, do peso incomensurável de uma montanha no silêncio sideral, do insuportável barulho das britadeiras, das marteladas, das lágrimas e do ranger dos dentes nos guetos urbanos. Poderia falar de música e coerência. De expressão, arte e política.

Dizem quem se debruçava nos poemas sinfônicos de Richard Strauss para desvendar o segredo das mudanças de andamento rítmico. Dizem que estudava à exaustão as construções harmônicas de Arnold Schoenberg para aprender a se livrar do conceito que define a melodia como uma sucessão horizontal de notas, e assim criar um sistema sonoro onde não houvesse hierarquia entre os sons, mas total igualdade numa espécie de “melodia dos timbres”, capaz de livrar cada instrumento da sua função tradicional e lançá-lo rumo ao desconhecido.

Eu sou três, assim começa sua autobiografia, segue uma pequena explicação do surpreendente incipit, um parágrafo, ou pouco mais. E nas páginas sucessivas podemos mergulhar em orgias, bebedeiras e brigas de bar, um livro onde a música se faz literatura: Bukowsky, Kerouak : “Nunca tinha me dado conta que havia tantos lugares onde ir e que, contudo, em poucos deles podia me sentir à vontade”.

Eu sou três. Não é verdade, ele é um só, ele é a superfície das mil facetas, como olho de mosca, ele é a coerência cromática do camaleão, o dente cariado do tubarão, a delicadeza do rinoceronte na loja de cristais. E, por falar em bichos, ele é um camelo na sala de visita, tente dizer-lhe para se comportar e ficar quietinho que daqui a pouco vem gente em casa, tente dizer para não babar, para não mugir que não é lá muito elegante. Sim ele é um camelo na sala. Enquanto seu olho tudo vê, sua superfície muda de cor, os dente dilaceram suas carnes, seu tamanho destroça a delicadeza burguesa do bom tom, ele – mosca, camaleão, tubarão, rinoceronte – continua babando, camelo na sala, no sapato novo das visitas. Ele é o incomodar do mundo, é pão, é pedra, fim e início de todo caminho, o derradeiro primeiro homem, o Pithecanthtopus Erectus do inconsciente coletivo, seu nome é Charlie Mingus.

Paolo D’Aprile

 

Que o ser como tal provoque o ódio, isto não está excluído (…) um ódio sólido, ele se dirige ao ser” (Lacan, !982: 134).

Explosões, erupções vulcânicas, tiroteio… eis as sensações que assaltam o ouvinte que é apresentado ao mundo de Charles Mingus. A primeira impressão é a que fica dizem: por isso, se ocorrer de você conhecer este deus do Jazz por meio do álbum The Clown e, mais especificamente, ouvir a primeira faixa “Hatian Fight Song”, a imagem será sempre a de uma personalidade ríspida.

E de fato era assim. Seus músicos acompanhantes relatam um temperamento irascível. Jimmy Knepper, seu trombonista e homem de confiança, um amigo, conta que lá para os inícios dos anos 50, por uma simples discussão sobre arranjos, MIngus partiu para cima e quase lhe arranca o incisivo central. Resultado, o amigo trombonista ficou meses “de castigo”, afastado das execuções em night clubs.

Depois, voltou cheio de amores para seu companheiro de viagem sonora. Assim como todo indivíduo dotado do espírito siciliano (mesmo um homem nascido em 1922 no Arizona, fronteira com o México, pode ter isso no sangue – parece que a Sicília é um estado de espírito e não uma faixa territorial).

Essa violência que irrompia de Mingus era apaziguada pelo senso estético tão sublime quanto sutil. Uma balança de ódio surdo, como se diz daquele tipo de ódio que não é endereçado gratuitamente para o outro – que seria a inveja, – mas o que está ontologicamente em si.

Mingus é um gênio e sua música é a própria sublimação de um caráter conflituoso em seu interior. Ouçamos o crescendo de Haitian Fight Song, Tonight At Noon ou Passion Of A Man: todas estas composições tempestuosas vão revelar a luta de um artista com suas profundas contradições.

O resultado é a força empregada no seu contrabaixo e, eventualmente, no piano.

Uma boa demonstração desses socos desferidos no ar está em Moanin’. Música esta onde está a força bruta (os gritos abafados são um recurso de quebra com a deusa Euterpe, usado em Haitian e outras obras). Contudo o impulso é contido por uma densa camada de textura urdida pelo trombone e, principalmente, o saxofone tenor de Booker Ervin executando o riff parcimonioso no meio de uma selvageria palpitante.

Um grito rasga o ar em Wednesday Night Prayer Meeting. Com esse título e com a marcação sincopadamente marcial das palmas junto com a cobriolagem do saxofone tenor (Booker Ervin), pode-se concluir que essa reunião para oração deve ter sido da pá-virada.

Isso chama muito a atenção do universo musical construído pelo Mingus: retrata um culto neopentecostalíssimo à noite como sua visão de tudo. Sempre observando a tensão humana, ele retrata uma sessão gospel exatamente com aquele sentimento quase neurastênico de busca de uma saída da realidade por meio de um arrebatamento sensorial. Exatamente é o que perfaz a Ecclusiastics, na mesma temática. Mingus é um iconoclasta, um anarcojazzman, um libertário. Aliás, um violentíssimo libertário.

Considerado por muitos críticos gabaritados de Jazz como o compositor mais versátil pós-Duke Ellington. Fazendo ainda um triunvirato com o Thelonious Monk (como é o caso do que diz o renomado Neil Tesser, autor do Playboy Guide To Jazz), este revolucionário contrabaixista faz caricatura e retrato do fator humano (é sempre discutível haver uma “condição” humana). Junta aspirações e ilusões a Exotismos tribais africanos ou latinidades, como no impensável Wham Bam Thank You Ma’am.

Legado para toda a Humanidade, a obra de Charles Mingus contém a força criativa proposta pela violência ontológica. Nela está a projeção da realidade do ódio, aquele inconsciente, o qual independe da figura da “invasão” do outro (este é o ódio da inveja), mas o ódio obscuro voltado contra o verdadeiramente real que nos cerca e se impõe desde nosso nascimento até os estertores.

Divagações à parte: MIngus é um totem, uma força animista sai do seu contrabaixo e simboliza o impulso de realização construtiva do humano. Não viemos ao mundo para usufruir de um paraíso dado, viemos para construir e esta é a fonte da ira de Mingus, a vontade incontrolável de mudar aquilo que nos é dado. Nada é eterno, tudo deve ser construído. Mingus entendeu as forças reacionárias de conservação e canalizou sua arte pela raiva do ser que quer construir sua própria vida.

Guilherme Maia