CRÔNICA

 

 

Por Guilherme Maia

 

 

“Naquela noite fria, a humidade penetrava o mundo preenchendo o tempo parado, imóvel, um tempo suspenso no tempo de espera. O homem magro fechou o portão do prédio antigo, e, cabeça baixa, se encaminhou pela cidade deserta. O garoto, viu tudo: o homem saindo, sua cabeça encaixada nos ombros, viu aquela malinha diferente que suas mãos seguravam contra o peito para espantar o frio. Tremendo de emoção, seguiu seus passos. Ao descer a escadaria um pequeno luminoso avisava: “jazz clube”. O homem magro entrou, o garoto também. Entre a nevoa da fumaça de cigarros e quem sabe mais o quê, o frio desapareceu. Com seu rosto de pedra esculpida a machadadas, o homem magro sorriu, abriu a pequena mala… My funny Valentine you make me smile with my heart… 

A noite foi longa…

Bologna, Itália 1981

Aquele garoto conta hoje essa história para os amigos brasileiros que não conhecem o frio, mas que como eu amam Chet Baker”.

(Paolo D’Aprile, Pressenza!)

 

Chet era belo, elegante, inteligente e talentoso. Por que então sucumbiu à heroína de forma tão intensa?

Sempre será difícil para nós a emancipação da moral pequeno burguesa que nos enxertaram, principalmente no que diz respeito ao comportamento heterodoxo que o outro toma em sua vida. De fato, como dizia Sartre “não importa o que fazemos de nós, mas o que fazemos do que fizeram de nós”. Faço essa consideração por que pretendo a compreensão do fenômeno da heroína sem cair em chavões ou lugares comuns, até mesmo pelo motivo de Chet não ter sido o herói que conseguiu largar as drogas e dar a volta por cima – tão apreciado pela audiência de novelas da Globo e filmes enlatados.

O buraco é mais embaixo e, penso, há uma tensão existencial assim como idiossincrasias psicológicas que estão inscritas no próprio existir.

Mas, primeiro, vamos apresentar esse deus do jazz.

Desde o início de seu desabrochar ao lado do grande Charlie Parker em 1951 foi um virtuose econômico. Explico: o pai de Chet era um guitarrista de Jazz e sempre o influenciou e já tinha iniciado sua carreira na Vido Musso’s Band e conhecera Stan Getz muito antes de Line for Lions; no entanto, mesmo envolto na biosfera do Bebop, já tinha sua persona própria e se pode perceber o aveludado de seu toque mesmo ao lado do trator do saxofone de Bird.

Manteve sua idiossincrasia musical adensada em notas longas embaladas por rica harmonia e melodia, com o vibrato sussurrado de uma nota deliciosa que aparenta até mesmos ser de propriedade exclusiva de Chet desde sua chegada ao universo do Jazz, o que foi sendo burilado com o tempo e com o sentimento.

Sentimento este que explode em 1957 com a gravação de My Funny Valentine ao lado de Stan Getz. Aí vem o canto de Chet com a voz inconfundível sussurrada e que soa como um prolongamento das notas do trompete: uma simbiose homem/instrumento nunca vista antes e depois.

Seria Chet a influência de João Gilberto? 

Afora o canto, a sintonia que há entre o virtuosismo e a economicidade na execução do trompete forma uma sonoridade sem par na História da música. 

Agora vem a questão das drogas e de um anjo enviado para o socorro de uma alma tortuosa, o que podemos sintetizar pela música Diane, de seu LP gravado em 1985 com o piano plangente de Paul Bley. Sua entrega à heroína chegou a cunhar um nicho no Jazz: afinal, o Cool Jazz vem do arrepio inicial da picada, algo que gela e insere no mundo desse psicotrópico. Esse nome e essa sensação permeiam a junção música/drogas na biografia de Chet e não acaba por aí, Diane é a mulher amada que se entregou a ele, à época muito mais velho, e que preencheu todo o cuidado necessário – mas nunca foi suficiente.

Voltou a gravar por intermédio de Diane, voltou a amar por meio dela também. Então, voltamos ao intuito inicial: por quê?

Chet perdeu dentes por ser espancado devido à dívida de drogas; quase morreu de overdose no Macksoud Plaza em São Paulo após sua apresentação no Free Jazz e terminou por “cair” da janela do Hotel Prins Hendrik em Amsterdã aos 58 anos em 1988.

No meio disso há uma catarse: as sessões de gravação em Roma ao lado de Rique Pantoja pelo selo Musiquim, da WEA.

Tantas dores e amarguras em contraste à beleza e ao talento de um deus do Jazz. Tantas chances para parar. 

Penso em Chet como a Humanidade, como estamos aqui e por diversas vezes queremos estar fora daqui. Quantas vezes cegamos a visão do milagre da vida diminuindo nossas potencialidades e belezas que carregamos como virtudes dadas apenas a nós e a mais ninguém? 

Assim como a vida coletiva em que quase sempre prevalecem as justificativas de regimes totalitários ou aspirantes a isso e a desordem climática ecológica que devasta o planeta, Chet parece ter encarnado a contradição de toda a Humanidade: somos feitos para a liberdade e a beleza, mas permitimos sermos dominados e subjugados.

Será essa contradição em que todos nós como Humanidade nos deixamos enredar a que acorrentou Chet Baker? Não sei, mas sei que ele é uma explosão dolorosamente sutil no Jazz e na Música.