Por Aneta Kavadia/ Semanário grego La Época

 

–Como muitos países, a Colômbia se encontra afetada pela COVID-19. Neste momento da pandemia, como o senhor descreveria a situação político-econômica do país?

–A Colômbia é um país que tem seguido, de maneira bastante disciplinada e obediente, todas as fórmulas do modelo neoliberal e, por isso, o impacto da pandemia, tanto do ponto de vista sanitário, como do social e econômico tem sido muito negativo. Com um sistema hospitalar, clínico, um sistema de saúde privatizado e, portanto, enfraquecido, o custo, em matéria de vidas e de pessoas doentes por causa do vírus, tem sido elevado; atualmente, ultrapassamos a cifra de um milhão e meio de pessoas contagiadas e mais de 40 mil mortos pelo impacto da pandemia. De igual forma, esse impacto tem tido um custo especialmente alto nos setores vulneráveis, nos setores da população mais empobrecidos, nos setores rurais que têm tido imensas dificuldades para poder enfrentar a pandemia. E, por outro lado, com um grande custo econômico. Há uma recessão evidente da economia que produz, como resultado, uma das taxas mais altas de desemprego na América Latina, uma pobreza que, segundo estudos, passará a ser de 50% nas zonas urbanas e que aumentará em mais de 70% em muitas zonas marginalizadas e rurais, afetando, inclusive, populações que estarão próximo dos 80% da linha de pobreza absoluta. Ou seja, que o efeito da pandemia tem sido sumamente destrutivo e tem tido como resposta por parte do governo de extrema direita – o governo do presidente Iván Duque–, a tentativa de aprofundar o mesmo modelo neoliberal, uma ajuda e assistência fundamentalmente para as grandes empresas, para o setor financeiro, para as forças militares e policiais, e verbas que são, sobretudo, ajuda assistencial de caráter extremamente miserável aos grandes setores que, como eu dizia antes, estão padecendo os piores efeitos da pandemia.

Tudo isso também é agravado com um endividamento que se consolida. Foram feitos empréstimos que já chegam a mais de 20 milhões de dólares e que terão que ser pagos através de uma reforma tributária que, obviamente, terá como principais destinatários os setores de classe média e os setores mais empobrecidos. Dessa maneira, para resumir, a COVID-19, efetivamente, tem alastrado a morte, a recessão econômica e também a pobreza, em um tempo relativamente curto.

–Depois de um trabalho persistente de muitos anos para alcançar a paz, finalmente, ela foi assinada em novembro de 2016, ou seja, faz quatro anos, depois de diálogos mantidos entre o governo colombiano e a guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, o Exército do Povo FARC-EP. Considerando a sua participação como facilitador nesse processo, o senhor poderia nos dizer onde se encontra, nesse momento, a implementação do acordo e se ele respondeu às expectativas que havia gerado?

–Em termos políticos, eu diria que há dois grandes fenômenos que deveríamos enfatizar aqui. Em primeiro lugar, como consequência dessa crise sanitária, como em muitas partes do mundo, produziu-se o endurecimento do caráter autoritário e antidemocrático do poder político. Essa circunstância se refletiu no fato de que o poder tem se centralizado no Executivo. O presidente tem feito uso do Estado de Emergência, o que se chama na Constituição da Colômbia o “Estado de Emergência social e econômico”, para emitir uma grande quantidade de normas, decretos-lei, que compreendem não somente aqueles instrumentos que seriam necessários para responder à crise, mas também, logicamente, todo tipo de contrarreformas trabalhistas, financeiras e que atentam contra os direitos coletivos e sociais da população. O Congresso da República foi limitado, com a justificativa de ter que se reunir em sessões não presenciais e, igualmente, atacou-se o poder judiciário. Assim, nesse processo, temos assistido a uma espiral de recorte das liberdades democráticas e dos direitos políticos com a desculpa da pandemia.

Apesar de haver sofrido múltiplos ataques, cujos objetivos são minar seus fundamentos e que têm impedido a implementação dos aspectos essenciais do próprio acordo, temos que dizer que o processo de paz tem sobrevivido a esses ataques, que incluíram o assassinato de muitos que firmaram a paz – mais de 240 pessoas – e também os ataques à Jurisdição Especial para a Paz (JEP), como também têm sido o tema central de discussão política durante este governo, inclusive, apesar da própria pandemia. E isso, a meu ver, obedece ao fato de que o processo de paz tem tido efeitos políticos de caráter democrático que são inegáveis, tem significado a fratura do tradicional estado monolítico da coalizão de elites, e também tem sido o contexto favorável para a mobilização social e cidadã.

Eu acredito que o processo de paz esteja ligado, sem dúvidas, ao auge dessa mobilização e aos resultados favoráveis que a esquerda e os setores alternativos obtiveram nos últimos processos, pelo menos, nos dois últimos processos eleitorais e na consulta popular contra a corrupção. Então, é verdade que há uma ofensiva muito grande contra o processo, que tem sido enfraquecido, isso é inquestionável, mas não sou o tipo de pessoa que pensa que o processo foi derrotado ou destroçado. Não compartilho com essa visão. Algo semelhante pode se dizer da JEP, que completa seu terceiro ano de trabalho em meio a grandes dificuldades, como o fato de que seu mandato inicial – pactuado em Havana e que está contido no acordo – tenha sido desconhecido, sendo sua ação e responsabilidade praticamente limitada aos combatentes ou ex-combatentes, excluindo as figuras políticas e os chamados terceiros, assim como agentes do Estado que têm grande responsabilidade nos crimes de lesa-humanidade e nos crimes de guerra cometidos, e, igualmente, com ataques muito perversos contra a honra dos seus magistrados e contra a legitimidade do seu trabalho. Entretanto, é necessário dizer que a JEP é, atualmente, uma instituição, algo que, para haver transcorrido em apenas três anos, já é uma grande conquista, que está diretamente relacionada com os direitos de centenas de milhares de vítimas na Colômbia, com a solução ou o esclarecimento de, pelo menos, sete grandes casos que reúnem aspectos substanciais dos processos de violência que foram cometidos na Colômbia e com fatos emblemáticos que, sem sombra de dúvidas, têm uma grande relevância nesse processo de verdade, justiça e reparação.

Assim, eu diria que, embora o “uribismo” e a extrema direita tenham se esforçado bastante para que não se abra esse caminho de justiça transicional, já que, bem ou mal, aí está com um imenso apoio da comunidade internacional e navegando por um caminho totalmente novo. Jamais se deva perder de vista que a JEP é o primeiro tribunal no planeta que tenta levar a cabo o modelo de justiça restaurativa, transicional, ou como você prefira chamá-la.

Foto Deutsche Welle, captura de vídeo

–Novamente, vemos o senhor estabelecendo um papel fundamental de facilitador nos diálogos com membros da guerrilha em que se tornou o Exército de Libertação Nacional (ELN), que começaram em Havana, Cuba. O senhor poderia nos dizer em que ponto a negociação se encontra nesses diálogos?

–No governo passado, avançou-se como nunca no processo de paz com a outra guerrilha histórica da Colômbia, o ELN. Pela primeira vez, logrou-se sucesso em uma agenda que tinha, como no caso da negociação com as FARC, seis pontos que estavam começando a se desenvolver na mesa de negociações que também estava funcionando em Havana. Com a chegada do governo Duque, produziu-se a ruptura desses diálogos, logo também de que ocorrera uma ação terrorista que deixou cerca de vinte jovens policiais mortos em uma tropa em Bogotá. E, logo depois disso, houve uma escalada na confrontação entre o Estado e o ELN, a ponto de que essa escalada também tenha significado o fato de que, em muitos territórios, o conflito armado regressasse de uma maneira muito intensa e que o ELN ampliasse sua presença a outros territórios onde antes estavam as FARC.

Essa circunstância também estava acompanhada do fato de que a política internacional do governo Duque tenha sido uma política de ataque contra o país facilitador e garantidor desses diálogos, que é Cuba. O governo da Colômbia promoveu ativamente a entrada ou a reentrada de Cuba à lista de países – a lista do governo dos Estados Unidos – que, supostamente, promovem o terrorismo. E isso devido a que o próprio governo colombiano desconheceu um protocolo mediante o qual a delegação que estava negociando por parte do ELN podia voltar ao país, fato que, além disso, o governo usou como pretexto para realizar essa campanha contra Cuba. Então, neste momento, o processo de paz com o ELN chegou a uma circunstância de ponto morto e uma exigência do movimento pela paz na Colômbia é que, precisamente, reativem-se esses diálogos, essa mesa de conversação e que também possam ser alcançados acordos de caráter humanitário em muitos territórios do país nos quais a confrontação entre o Exército regular e a polícia de um lado, e o ELN do outro, está causando também efeitos muito nocivos em matéria humanitária e de insegurança para as comunidades.

–Conhecendo as dificuldades e características do processo em “primeira mão”, o senhor é otimista? Acredita no futuro da paz na Colômbia? Eu lhe pergunto isso porque, no seu país, as fontes de violência são muitas e muito numerosas: grupos paramilitares e as máfias atuam de maneira incontrolável, e o caminho para conseguir a paz passa, inevitavelmente, por elas. Então, a pergunta seria: existe a possibilidade de um diálogo com essas forças?

–O problema da paz é o problema central da vida política colombiana e, sem dúvidas, até que não se consiga resolver esta circunstância, que tem marcado a vida do país no último meio século, não poderemos desenvolver, na Colômbia, uma sociedade democrática na qual a justiça social e o desenvolvimento econômico tenham como princípio a igualdade social e a justiça social. Assim que, obviamente, aqui, esse é o problema central de qualquer agenda política e, a partir dessa perspectiva, há experiências acumuladas ao longo de muitos processos de paz, de processos de submissão à justiça para os grupos que não são insurgentes, mas que pertencem ao mundo do narcotráfico, ou que são expressões do paramilitarismo, assim que existe a experiência acumulada para desenvolver o que eu chamo de um processo de paz total. Ou seja: um processo no qual, de maneira simultânea e global, seja possível chegar a um acordo para pôr um ponto final em todas as formas de violência. Agora, isso requer, evidentemente, que haja vontade política de intervir nos territórios do país com um modelo radicalmente distinto ao modelo que imperou até agora, o modelo da militarização dos territórios, o modelo de aplicar a todo conflito social uma saída militar ou policial, o fato de procurar um enfoque diferente ao problema do narcotráfico já não como um problema da polícia e de caráter penal somente, mas como um problema que requer uma solução social. Então, a partir desta perspectiva, acredito que agenda de um governo progressista e democrático, como o que eu espero que triunfe em 2022, deve ser a paz total.

–É fato que, na Colômbia, a corrupção atinge os estratos mais altos da política. O senhor é a pessoa que, substancialmente, tem colaborado para levar aos tribunais o ex-presidente do país, Álvaro Uribe Vélez, que tem sido acusado de suborno, compra de testemunhas e relações de “favoritismo” com organizações paramilitares. Ele foi detido em prisão domiciliar e as investigações sobre ele continuam. O senhor considera que essas investigações produzirão algum resultado?

–Acredito que o processo judicial de Álvaro Uribe, ou contra Álvaro Uribe, seja um fato de grande relevância no plano jurídico e político, e eu diria até no campo da ética. É a primeira vez que um responsável, um responsável máximo por muitos fatos graves que ocorreram no país, é chamado a comparecer perante a Justiça. E não para por aí. Ele será levado a uma instância que não se havia conseguido nesse campo, como é uma medida de garantia que inclui uma prisão domiciliar e que tem impacto político: sua saída do Congresso, um notório comprometimento da sua imagem pública e do seu prestígio político, que, evidentemente, não significam o final do seu poder, nem da sua carreira política, mas que sim representam um novo nível das lutas que vítimas, organizações de direitos humanos e, diria também, a própria justiça e uma tradição democrática que há no poder judiciário colombiano, pois consegue marcar nesse contexto.

Espero que haja uma condenação judicial, já que Uribe é responsável pelo delito de suborno em processo judicial e fraude processual. Se o processo for conduzido nos trâmites legais, assim deveria acontecer. Agora, como eu digo na resposta à segunda pergunta, também tem umas consequências políticas.

–E a esquerda na Colômbia? Pela primeira vez na história do país, a esquerda chegou ao segundo turno nas eleições presidenciais de 2018. Finalmente, o candidato Gustavo Petro não conseguiu, mas chegou a obter 41,8%, o que representa oito milhões de votos. As contradições e a divisão no âmago da esquerda continuam. Qual seria a bandeira, se não a bandeira da paz, aquela que poderia ajudar a estimular e a unificar as forças da esquerda? O senhor considera possível uma perspectiva nesse sentido?

–Eu considero que, na Colômbia, as condições têm evoluído para que, segundo ocorreu em outros países da América Latina, triunfe um governo e, principalmente, uma proposta, um programa político de caráter progressista e democrático. O assunto da paz é inevitável, é um tema central, porém há outros que podem estar nesse acordo sobre o fundamental. Por exemplo, a mudança da matriz energética para a produtividade econômica, em conformidade com o que as mudanças climáticas demandam hoje como realidade, seus efeitos; o assunto de procurar a preservação da riqueza natural e a biodiversidade do país; da necessidade urgente de uma reforma rural integral como a que o acordo de paz propõe; a necessidade também de uma reforma política democrática, que nos converta, realmente, em uma democracia e não em uma democracia formal e militarizada, como é que impera hoje na Colômbia; o fato de gerar relações no continente que tenham, ao mesmo tempo, como condição, a soberania – ou o respeito da nossa soberania – e a construção de instituições e procedimentos de integração latino-americanos. Também o assunto de que imperem os direitos humanos e a igualdade social como princípios básicos na Colômbia, que poderia ser resultado desse processo de transformação. Assim que existem estratégias mínimas para que, não somente a esquerda ou as esquerdas, mas também todos os setores democráticos, possamos construir uma alternativa de poder.

Eu acredito que a Colômbia vem buscando ultrapassar essa fase de ser o laboratório da guerra e das políticas autoritárias e militaristas, para se firmar como um país que constrói a paz e que está a favor da integração, assim que esse é, claramente, um grande desafio para uma transformação política na Colômbia que pode ter impactos muito favoráveis, ou consequências muito favoráveis em toda a região. É necessário recordar que, na Colômbia, já foram experimentadas a quase totalidade das estratégias do conflito armado, as políticas contrainsurgentes que foram aplicadas na América Central, mas também as políticas e os métodos de violação de direitos humanos atrelados às políticas de segurança nacional, que trouxeram a tortura, o desaparecimento forçado, as execuções praticadas pela força pública contra a população indefesa. Assim, tudo isso é, precisamente, parte do que deve ser um projeto de transformação na Colômbia que implique, ou que proponha, uma política internacional rumo à integração, à democracia, à paz regional e ao respeito dos direitos humanos.

Foto de Defendamos La Paz


Entrevista para o semanário EPOHI, de Aneta Kavadia, jornalista, membro do Comitê Central de Syriza, ex-senadora pelo mesmo partido.

 

Traduzido do espanhol por Graça Pinheiro /Revisado por José Luiz Corrêa.

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