OLHARES

 

 

Por Clementino Jr.

 

 

“Às vezes, me sinto como se estivéssemos todos presos num filme. Sabemos nossas falas, onde caminhar, como atuar, só que não há uma câmera. No entanto, não conseguimos sair do filme. E é um filme ruim.”
Charles Bukowski

No início do cinema, o material usado para a película cinematográfica era o nitrato de celulose, um dos primeiros materiais plásticos utilizados em meados do século XIX, que era altamente inflamávelQueimar já faz parte do processo de registro de imagens em matrizes fotográfica e cinematográfica, em função da sensibilidade da luz e da relação positivo/negativo de tons da imagem em seu registro. Falar sobre isso me traz a linda memória do filme “Bastardos Inglórios”, de Quentin Tarantino, onde se planeja a execução — na ficção — de um dos maiores genocidas e racistas da história em um cinema, a partir da queima de vários rolos de nitrato de celulose, que é, em parte, extraído da polpa da madeira. Queimar o filme para acabar com o nazismo seria um sonho lindo. E quantos rolos fossem necessários para findar inúmeros outros preconceitos seriam justos, mas estamos falando, aqui, de matar a memória em troca da vida de alguém, ou de várias pessoas, e, de certa forma, penso que o que escrevo a seguir se confronta com essa ideia.

Queimar o filme de alguém, literalmente, seria destruir um patrimônio material e memorial, destruir a imagem pertencente a alguém. Tem a ver com posse, arte e identidade. Vira uma gíria em algum momento, significando causar constrangimento a alguém em público.

O cinema, hoje ressignificado no guarda-chuva “audiovisual”, se consolidou como o espetáculo do campo das artes capaz de firmar a imagem e a memória e como ela seria contada para outras pessoas, em outras línguas, a partir de uma perspectiva padrão. Pensando a imagem hegemônica dos países que tanto competiram para criá-lo, é natural que a criação de uma imagem siga esses parâmetros, antes de virar um simples registro queimado em nuances numa película.

Vira o século, a memória física de película e papel migra para os pixels e para memórias em Discos Rígidos e Nuvens, mas o filme continua sendo chamado de filme, mesmo que agora seja informação transmitida em dados por redes diversas.

Ao mesmo tempo, a imagem de um líder ou de um país pode ser fomentada, ou queimada, a partir das memórias contidas nestes filmes diários e como estes são contados para um público que ou não domina a língua, ou não entende de linguagem. E é importante nunca esquecer que as posses e identidades existem principalmente fora dos registros audiovisuais. A representação destas imagens são ilustrações, tem opinião de quem retrata, se tornam ficção por mais reais que sejam. Mas há fatos que transcendem a ficção que se tenta contar a partir de imagem em movimento.

Pensando em queimar filmes, penso logo em chama e combustível. Quando florestas queimam, independentemente de como isso aparecerá na tela do celular ou em uma sala de cinema, agora vazias, em função da pandemia, há uma preocupação em todos, pois é um problema antigo e que retorna de maneira desordenada e conveniente para alguns. Não há retrato que dê outro sentido ao que está acontecendo nas telas, mas o clima alterado em outras regiões, em função da constante queimada, chega de maneira mais lenta que a transmissão dos incêndios não controlados, ou sequer combatidos, pelo poder público. Chega lento, mas chega, pois, como diriam em filosofia de boteco, devagar também é velocidade.

Em paralelo a isto, a memória do cinema, o registro de sua história e, por tabela, da história do país, está ameaçado pelo abandono por parte das mesmas autoridades, que querem ver toda essa memória pública do país se perder. Se pudessem acenderiam o isqueiro rapidamente, pois já não há estrutura presente para preservá-los nem para garantir a sua segurança e integridade. Como os biomas do país.

No início da pandemia, uma das piores composições de poder desde o período de chumbo — período este, como outros anteriores, retratado em inúmeros documentários e ficções na Cinemateca Brasileira — se reuniu. Em uma fala foi mencionada a oportunidade de “passar a boiada”, aproveitando o foco da imprensa nacional na Pandemia do Corona Vírus. Esse termo cairia no esquecimento se, após as chamas queimarem o pantanal, causando impactos irreparáveis na fauna da região, outra colega não alegasse que a presença de bois reduziria o avanço das chamas por estes comerem pasto seco. Interessante ambos os comentários virem de, ao menos em títulos e posses, pessoas que jamais poderiam crer que esses discursos teriam uma interpretação válida como real, mesmo diante de um público afinado ideologicamente com suas perspectivas. Tudo se constitui em quem pega a imagem e desenha o discurso. Só que o discurso, repetidas vezes e destituído de moral, se torna o projetor com lâmpada forte que pode incendiar a película de nitrato que projeta o filme. No filme Gremlins 2cuja imagem ilustra esse texto, em um dado momento de metalinguagem, a película em uma sala de cinema se queima e a luz do projetor revela a invasão dos simpáticos e aterrorizantes monstrinhos, que se multiplicam ao serem molhados e diversificam as personalidades de um único bichinho matriz, como no antigo teatro de sombras, com seres de aparência bizarra que brincam com a projeção e de repente recolocam o restante do filme no projetor para prosseguir com o terror que toma conta da cidade fora dos cinemas.

Os cinemas, ao menos temporariamente enquanto escrevo, reabriram e vazios, tão vazios quanto os discursos que invisibilizam todo um bioma que foi queimado. Tão queimado quanto o filme de quem persiste em negar o óbvio. Os dados digitais não queimam como a película, seguem para as nuvens digitais como a fuligem do incêndio nas nuvens para as capitais. A verdade será recontada um dia a partir de uma memória que, a cada vez mais, é descartável e veloz.

 

 

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