Redação Mídia 1508  │  Por Carina Blacutt

A primeira fase do exame nacional do ensino médio traz à luz o negacionismo no âmbito educacional do país.

No último domingo, 17 de janeiro de 2021, foi realizada a primeira fase do exame nacional do ensino médio, o Enem 2020. Com 5 horas e meia de duração, a prova foi composta por 45 questões de linguagens, códigos e suas tecnologias e 45 questões de ciências humanas, além da redação.

Milton Ribeiro, ministro da educação, declarou que a aplicação do Enem 2020 foi sucesso. No entanto, um olhar mais aproximado contradiz essa afirmação do MEC e do INEP. Parece ser sintomático do governo Bolsonaro negar a realidade que se apresenta bem diante de nossos olhos.

O comportamento compulsivo de tentativa de manter as atividades pedagógicas do país diante da pandemia tem gerado diversas situações controversas e excludentes. O ano letivo de 2020, pautado no ensino remoto, trouxe um abismo de desigualdade social. A maioria dos alunos do ensino público não teve acesso aos conteúdos de forma a possibilitar uma disputa mais justa no exame de acesso para as universidades.

A campanha pelo adiamento do exame, pautada por diversos movimentos sociais, pareceu prever a grande confusão e o fracasso desse ano. Podemos citar por exemplo o adiamento em determinadas cidades do Brasil que se encontravam no estágio vermelho do tratamento da Covid-19, com hospitais lotados e transferências de emergência. É facilmente previsível também a grande quantidade de mandados de segurança que serão solicitados contra o Enem desse ano.

Além de uma multidão de alunos que foram impedidos de realizar o exame, por conta da lotação do limite para a obediência do distanciamento necessário para um ambiente seguro e protocolar, os locais que não estavam aglomerados foram causados pela falta de mais da metade dos estudantes inscritos. A ausência dos estudantes é explícita na palavra tão temida pelo ministro da educação que recorreu ao termo insucesso para não verbalizar o que foi de fato esse exame: fracasso.

Quanto aos estudantes que conseguiram, mesmo mediante ao contexto tão conturbado, realizar o exame, se depararam com uma prova tradicional, mas que nos traz reflexões importantes. A questão da apropriação imperialista dos recursos territoriais da América Latina, na citação de As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, pode nos auxiliar numa importante reflexão sobre essa primeira fase do exame.

Enquanto os alunos realizavam a prova, a primeira brasileira era vacinada contra o covid-19. O atraso da chegada da vacina e toda essa campanha negacionista de Bolsonaro reafirmam aquilo que que Galeano apontou: a América Latina “especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se aventuraram pelos mares e lhe cravaram os dentes na garganta. Passaram-se os séculos e a América Latina aprimorou suas funções.” Continuamos nos aprimorando na especialização em perder. Enquanto a Europa já está com a campanha de vacinação em pleno andamento, o Brasil está mergulhado no negacionismo científico que encontra seu grande símbolo e respaldo no discurso do presidente e sua equipe.

Outra citação importante para pensar esse exame foi a da Política de Aristóteles. A ideia de eudaimonia, a felicidade, que é o bem que todas as ações de todos os homens tem por finalidade, está bem distante do que foi vivido pelos estudantes nesse domingo. A insistência na realização do exame mediante o contexto de pandemia é o avesso de uma política que visa a felicidade da comunidade. Os estudantes não deveriam ter que decidir entre preservar suas vidas ou entrar para uma universidade. O início da vacinação no mesmo dia que o exame simplifica a real possibilidade do adiamento da prova, negada pelo INEP.

Se o exame nacional do ensino médio já é normalmente um momento de tensão na vida do estudante, o Enem 2020 é a própria confirmação do que foi tematizado na redação do exame. O estigma que restará nesses estudantes certamente serão acúmulos de doenças mentais causadas por esse momento traumático, e negadas pelo governo. Nas salas de aula onde foram realizados os exames, e do lado de fora dos portões onde os alunos não puderam adentrar para fazer a prova, era comum ver jovens chorando. A insistência de manter o exame a todo custo certamente sairá caro à saúde mental da juventude brasileira.

*Carina Blacutt é filósofa e professora da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro, mestre em Estética e Filosofia da Arte pela UFRJ, integrante do coletivo Filósofas na Rede, do sindicato SEPE Costa Litorânea e colunista de educação da Mídia 1508.

 

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