Por Carlos Contente

Gizele Martins é jornalista (PUC-Rio), mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas, pela Faculdade de Educação da baixada Fluminense, (FEBF/UERJ) e uma das articuladoras da Frente Maré, ação de solidariedade que atende a um número enorme de famílias no complexo de favelas durante a pandemia.

Cria da Maré, Gizele lançou em 2019 o livro Militarização e censura: a luta por liberdade de expressão na favela da Maré (Núcleo Piratininga de Comunicação, 134 pp. São Paulo, 2019).

O livro mostra as formas de censura que comunicadores e comunicadoras do Complexo da Maré sofreram na época da realização dos Megaeventos na cidade do Rio de Janeiro.  Um livro contundente que agora vai virar peça de teatro, produzida por artistas da Maré e do grupo Coletivona.

Jornalista e autora Gizele Martins na luta pela democratização da comunicação. Crédito da imagem: arquivo pessoal.

“Menos democracia, às vezes, é melhor para organizar uma Copa”

Em uma tarde qualquer de abril de 2013 – veja bem: abril, bem antes das manifestações de junho –, os alegres sites e jornais esportivos divulgavam uma chamada bem esquisitinha, capaz de gerar calafrios nos bons entendedores:

“- Eu vou dizer uma coisa que é maluca, mas menos democracia, às vezes, é melhor para organizar uma Copa. Quando você tem um chefe de estado forte, que pode decidir, como talvez Vladimir Putin na Rússia em 2018, é mais fácil para nós, organizadores, do que em um país como a Alemanha, onde você tem que negociar em várias esferas. A principal dificuldade que temos é quando entramos em um país com estrutura política dividida, como é no Brasil, com três níveis, federal, estadual e municipal”, avaliou o secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke, deixando a entender que a democracia do Brasil poderia ser um problema para a organização do torneio.

Pois bem, não bastasse em novembro de 2013 nos deparamos com uma chamada em um jornal, que parecia retirada do livro Mein Kampf, do Adolfo, aquele bolsominion alemão do século XX.

“Rio deve perder uma geração para mudar quadro de violência”

À época dos megaeventos, o então secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, afirmou que o projeto das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) não seria encerrado, mas reconheceu que, mesmo com a expulsão das facções do crime organizado, “não é possível” acabar com o tráfico de drogas, nem com a violência nos bairros pobres, onde ainda se escondem alguns membros das organizações criminosas, e onde existem “várias gerações” de famílias que trabalharam para elas. “O Rio de Janeiro tem essa história e vamos, talvez, perder uma geração para mudar um quadro de violência que, infelizmente, o Estado deixou chegar ao ponto em que chegou”, disse Beltrame. “Se o Rio de Janeiro não continuar [a pacificação], não vai virar a página da violência e não poderá deixar as comunidades mais próximas das condições do restante da cidade.”

Este era o clima na época, de euforia e repressão. Duas chamadas em jornais revelam como meganegócios e autoritarismo se misturam em plena democracia, onde − consta na Constituição – cidadãos e cidadãs têm assegurado, segundo o artigo quinto, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade – onde ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.

Em “Militarização e censura”, Gizele Martins relata a repressão sofrida por comunicadoras comunicadores comunitários no conjunto de Favelas da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, entre 2014 e 2015, quando da intervenção militar na favela, a pretexto da realização da Copa do Mundo no Rio de Janeiro e nas demais capitais brasileiras.

Operação no Complexo da Maré, em 2014. Crédito da imagem: Agência Brasil/ Tânia Rego.

A militarização do cotidiano produziu uma ruptura na vida dos moradores, a priori tolhendo festas de aniversário, o baile, jogos de futebol e até mesmo churrasquinhos de rua. Comunicadores comunitários se organizaram e denunciaram em sites, mídias alternativas e redes sociais, assim como encaminharam denúncias de violações a órgãos internacionais de Direitos Humanos.

Em seguida foram cerceadas as atividades da comunicação comunitária, como saraus e rodas de debate, e comunicadores e comunicadoras começaram a sofrer perseguição e revistas frequentes.

O livro se divide em três capítulos. No primeiro capítulo, a autora apresenta um breve histórico das favelas do Rio de Janeiro e mostra como o próprio Estado estigmatiza moradoras e moradores. A autora relata o impacto dos megaeventos sobre estes espaços, através da gentrificação, remoções e militarização, adentrando em detalhes de como o processo se deu na Maré.

No segundo capítulo, Gizele dá o significado da mídia comunitária no Brasil, em contraposição à mídia corporativa brasileira, hiperconcentrada nas mãos de poucas famílias ricas do país. Aqui a autora apresenta e debate seus objetos de análise: os jornais O Cidadão e Maré de Notícias, a página web Maré Vive e o projeto Cineminha no Beco, dos quais colheu relatos de ameaças durante o período de intervenção. Entre os nove comunicadores, ativistas, jornalistas e fotógrafos entrevistados, está a deputada estadual Renata Souza (PSOL-RJ), que na época era editora do jornal O Cidadão, o jornal do bairro Maré.

No terceiro capítulo, a autora mostra exemplos de organização de comunicadores perseguidos na época, a luta e as denúncias contra a censura, assim como a criação de novas ferramentas comunicacionais para além do período de repressão instaurada.

O livro articula nas suas 134 páginas, três aspectos que estão intrinsicamente ligados: a favela, historicamente á margem de direitos; a censura em plena democracia – a favela bem na mira de interesses empresariais atrelados ao Estado burguês; e, por fim, a comunicação popular como forma de organização e de desconstrução dos estigmas racistas e preconceituosos projetados sobre territórios, moradoras e moradores.

A leitura é indicada a quem se interessa pela representatividade negra e periférica; à galera dos pré-vestibulares comunitários e da luta pelo acesso à educação superior; ao pessoal das rádios comunitárias, do mídia-ativismo, da comunicação popular e das frentes de solidariedade. Aos fãs do filósofo camaronês Achille Mbembe, que leram o livro Necropolítica. A toda pessoa que tem a utopia de viver em um país com dignidade, condições de vida e justiça social; a quem se revolta pelo que vê e vive atualmente; a quem está se borrando de medo de se revoltar; a todo cidadão surpreso e pasmo com a ascensão da extrema direita, a militarização da vida e a paulatina perda de direitos.

Recomendo muito a quem ainda insiste na balela de que “as jornadas de 2013 foram a porta de entrada para o golpe”, no país das maravilhas de portos, jogos e negócios. O livro mostra o ovo da serpente sendo chocado a céu aberto, pouquíssimo tempo antes de ela chegar no asfalto, no whatsapp e no Planalto.

Crédito da imagem: arquivo pessoal.

Recentemente a autora publicou em suas redes sociais que o livro vai se tornar uma peça de teatro, com produção e atuação toda de artistas da Maré e do grupo Coletivona.

O livro pode ser adquirido na livraria Gramsci http://livrariagramsci.com.br/ ou enviando um email ao nosso parceiro, o Núcleo Piratininga de Comunicação – livraria@piratininga.org.br