CINEMA

 

 

Por Clodoaldo Lino

 

 

Certas épocas são propícias para balanços, revisões e, inevitavelmente, a elaboração das mais diversas listas. Aproveitando o final da década, decidi também entrar nessa onda. Longe da pretensão de querer julgar filmes e cineastas, apontando “melhores” e “piores”, resolvi compartilhar uma lista eclética de filmes que me impressionaram nessa última década e que, em minha opinião, merecem ser vistos com a devida atenção. Procurei evitar colocar filmes que já foram exaustivamente citados, privilegiando certas “joias” que, muitas vezes, passaram escondidas pelo circuito comercial (alguns desses filmes nem mesmo chegaram a entrar em circuito no Brasil). Evitei, também, inserir títulos que já foram alvo de resenhas aqui no Pressenza ao longo de 2020. Vamos lá.

Um Elefante Sentado Quieto (Da xiang xi di er zuo) [2018] – Escolho abrir a lista com esse filme do jovem diretor chinês Hu Bo. Logo de cara, as quase quatro horas de duração assustam, mas quando se começa a assistir o filme, esse detalhe passa despercebido. A história se desenvolve ao longo de um único dia na vida de quatro personagens que têm seus destinos enredados por um clima opressivo crescente. Filmado num preto e branco monocromático que acentua o sentimento de angústia que a narrativa explicita ao expor o vazio que domina a vida dos personagens, o filme leva para as telas uma das críticas mais contundentes aos valores (ou a ausência de) da sociedade atual. Não é um filme fácil, é assumidamente niilista, mas filmado a partir de um talento inegável, tanto na condução do roteiro, que apesar de entrelaçar várias histórias trabalha muito bem à interseção entre elas, quanto na composição dos quadros, em que primeiro e segundo planos (às vezes terceiro e quarto!) se alternam de maneira espontânea para a compreensão da ação. Imperdível! O que só salienta o lamento pelo suicídio de Hu Bo, aos 29 anos, logo após a conclusão do filme.

Kaili Blues (Lu bian ye can) [2015] – Destaco agora mais um filme de um jovem diretor chinês, Bi Gan. Também centrado em histórias simples de personagens comuns, o filme trabalha magistralmente o tempo. Passado, presente e futuro se interligam tendo como principal elemento a questão da memória. A história, cuja narrativa é elíptica, segue Chen, ex-presidiário, poeta, que se tornou uma espécie de médico em sua cidade natal e que resolve empreender uma jornada pelo interior da China para resgatar seu sobrinho pequeno, vendido pelo seu meio-irmão. Ao longo dessa jornada o tempo se dilata, se retrai, se funde, se dispersa num complexo e interessante fluxo que desafia a percepção do espectador acostumado com a narrativa linear. Mais ou menos na metade do filme Bi Gan nos proporciona um plano-sequência espetacular, com mais de 40 minutos de duração, que merece ser visto e revisto diversas vezes. O filme seguinte de Bi Gan, Longa Jornada Noite Adentro (Diqiu zuihou de yewan), de 2018, aborda os mesmos temas (tempo, memória) e também merece destaque.

O Terceiro Assassinato (Sandome no Satsujin) [2017] – Continuando no cinema asiático, trago a indicação de um filme de Hirokazu Kore-eda, cineasta japonês cujos primeiros filmes foram objeto de uma resenha aqui no Pressenza, em 26/07/2020. Esse filme foge das características mais conhecidas do cinema de Kore-eda, geralmente centrado em dramas familiares. Aqui temos um drama policial que destoa da obra de Kore-eda não apenas no tema, mas também na estética. Seus trabalhos anteriores foram filmados, na grande maioria das vezes, com câmera fixa, o que reforçava ainda mais a comparação com os cinemas dos mestres japoneses Yasujiro Ozu e Mikio Naruse. No caso de O Terceiro Assassinato, Kore-eda arrisca alguns elegantes movimentos de câmera, o que, junto com a história, desloca a comparação para outro mestre japonês, no caso, Akira Kurosawa e sua obra-prima Rashomon. A história envolve um advogado contratado para defender um caso perdido: Misumi, réu confesso de um assassinato e que espera a pena de morte por ser reincidente, pois há três décadas havia sido preso e condenado por um duplo homicídio. No decorrer do filme, a partir da convivência com o acusado e com personagens envolvidos com o crime, o advogado passa a se questionar sobre a culpa do seu cliente. A discussão acerca da questão da verdade permeia todo o filme, não apenas no que diz respeito às várias narrativas, mas, também, no que se refere à imagem. O filme começa com a sequência de Misumi assassinando um homem e ateando fogo no corpo da vítima, o que não impede que a dúvida se estabeleça ao longo de todo o filme. Mais uma vez, a habilidade e a sensibilidade de Kore-eda são os principais destaques na condução da trama.

Bird Talk (Mowa ptaków) [2019] – Se alguém assistir a Bird Talk sem conhecer o histórico do filme, vai ficar com a sensação de ter assistido a um ambicioso pastiche dos filmes de Andrzej Zulawski. Diretor da chamada terceira geração de cineastas poloneses, Zulawski sempre se destacou pela ousadia dos seus filmes, muito diferentes dos trabalhos dos seus contemporâneos. Seus temas abrangiam desde a discussão sobre a história da Polônia (sempre a partir de um viés radicalmente crítico), passando pela loucura, pela sexualidade, assim como pelas dificuldades de comunicação e de relação entre as pessoas, com as imagens recorrendo, invariavelmente, a situações limite para externar suas visões. E tudo isso se encontra presente em Bird Talk, filme dirigido por Xawery Zuławski, filho de Andrzej, a partir do último roteiro escrito por seu pai e endereçado à ele. Porém, mesmo partindo do mesmo ponto, o resultado não é igual. Bird Talk lembra muito os filmes de Andrzej, mas alguma coisa aponta para uma diferença. Os excessos de Xawery tangenciam os de Andrzej mas são de outra ordem. No início eu atribuía essa diferença a situação política da Polônia atual, que nas últimas décadas deu uma guinada do “socialismo soviético” para a extrema-direita. No entanto, depois percebi (e passei a olhar o filme com outros olhos) que Xawery faz um filme aonde, mais do que funcionar como uma homenagem ao pai, representa um acerto de contas, uma tentativa de conhecer melhor a figura desse pai/cineasta, seu processo de criação e seus demônios. Para quem é admirador do cinema de Andrzej Zulawski, como eu, essa outra percepção tornou o filme de Xawery obrigatório.

Os Dias com Ele [2013] – Continuando na temática entre pais e filhos, ganha destaque agora esse documentário brasileiro vencedor da Mostra Tiradentes, dirigido por Maria Clara Escobar. O filme é inteiramente realizado na primeira pessoa e investe na relação da diretora com seu pai, o professor, dramaturgo, filósofo e poeta Carlos Henrique de Escobar. Maria Clara nunca teve uma convivência tradicional com o pai, uma vez que nunca chegaram a formar uma família e morar juntos. No filme, ela usa o gancho de questionar o pai sobre sua atuação na Ditadura Militar, sua prisão e as sessões de tortura pelas quais passou, como forma de se aproximar e desvendar esse pai/personagem. Mesmo sem recorrer a grandes recursos técnicos, uma vez que é realizado com uma câmera amadora, sem suportes de luz e com o som sendo captado num gravador portátil, o filme consegue alguns momentos dramáticos muito potentes a partir dessa tensão entre pai e filha. Contudo, o grande destaque do filme acaba sendo Escobar, um dos intelectuais mais interessantes do Brasil na segunda metade do século XX. Com uma história de vida digna de um filme, aonde se destacam passagens como a infância nas ruas, a descoberta dos livros na Biblioteca Pública de São Paulo, a militância na esquerda (que lhe rendeu prisões políticas ainda menor de idade) e o fato dele ter se tornado professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal Fluminense (o qual, por sinal, ajudou a fundar nos anos 1960) e da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sendo um autodidata, cujo único diploma que possui é o de Doutor, obtido a partir do recebimento do titulo de Notório Saber que lhe foi outorgado pela UFRJ e que lhe permitiu cursar o doutorado já nos anos 1990. Autor de diversas peças teatrais e de importantes livros sobre a análise do discurso e sobre o marxismo de Louis Althusser, reconhecido pelo pensamento sagaz e pela retórica cativante, Escobar rouba a cena e, em determinados momentos, desmonta os artifícios de Maria Clara, o que ao invés de prejudicar o filme, acaba transformando o registro efetuado por sua filha em algo ainda mais rico e curioso.

Verão (Leto) [2018] – Filme do diretor russo Kirill Serebrennikov (desafeto do governo russo, que na época do lançamento do filme no Festival de Cannes se encontrava em prisão domiciliar) que reproduz a “cena roqueira” soviética no início dos anos 1980. Um filme leve, com um preto e branco suave e movimentos de câmera discretos, que funciona mais pela excelência técnica de certas sequências do que por uma tentativa de crítica política. Mesmo no que diz respeito às tensões e conflitos da juventude o filme é ligeiro, investindo mais no clima e no sentimento presente nos shows (muito bem filmados) e nas conversas que caracterizam as descobertas dessa idade. Recursos gráficos se misturam a sequências oníricas que despontam como um dos pontos fortes do filme, aonde os personagens interpretam, numa estética de videoclipe, sucessos de bandas ocidentais. Pura diversão, mas feita por quem domina a linguagem do cinema, o que, no final das contas, faz toda a diferença.

Rastro de Maldade (Bone Tomahawk) [2015] – Essa dica é pra quem gosta de western (eu, particularmente, adoro). Talvez poucos gêneros cinematográficos sejam tão característicos do cinema hollywoodiano como o western. O mito (palavra perigosa nos dias de hoje) é o fundamento do western. O mito da conquista do Oeste, que, no fundo, representa a chegada da “civilização”, que assegura a Lei e a Ordem frente a selvageria, a barbárie e as injustiças, custe o que custar. Nada mais simbólico do que a figura do herói no western, o homem branco ocidental, individualista, solitário, “durão” mas justo, o conquistador que garante o “processo civilizatório”, na maioria das vezes a margem da própria Lei. Não por acaso, o western é um gênero que envelheceu terrivelmente. Apesar das constantes tentativas de se filmar westerns contemporâneos, os filmes de western atuais soam anacrônicos, com seu atrativo se limitando a excelência que o desenvolvimento tecnológico proporciona para a filmagem de cenas de ação nos dias de hoje. Porém, eu como fã de western, não desisto e continuo assistindo as novas produções, na maioria das vezes me decepcionando. Mas Rastro de Maldade, de S. Craig Zahier, jovem diretor norte-americano, foi uma grata surpresa. A história é clássica, um bando de índios sequestra uma mulher branca e um grupo de bravos cavaleiros vai ao seu resgate. Não é a toa que o titulo brasileiro ficou Rastro de Maldade, para pegar carona no clássico de John Ford, The Searchers, que no Brasil se chamou Rastros de Ódio, e que tem um argumento muito parecido. Mas o diferencial dessa obra de Zahier é que no terço final do filme ele deriva de western para filme de terror, uma transição que, a primeira vista, pode soar bizarra, mas que é habilmente realizada por Zahier. O início do filme tem um ritmo lento, apresentando os personagens e construindo as situações sem nenhum tipo de apelação, nem sensacionalismo. A partir da metade do filme a violência vai aumentando até atingir proporções enormes, sem, contudo, destoar da narrativa ou recorrer a espetacularização, o que fez com que o filme fosse muitas vezes comparado ao cinema de Sam Peckinpah. Para os apreciadores do gênero, um ótimo programa.

No próximo texto, mais algumas indicações.