OLHARES

 

 

“Vejo muitos soldados: quisera ter muitos guerreiros! ‘Uniforme’ chama-se aquilo que vestem: que não seja uniforme aquilo que com isso ocultam!”
Friedrich Nietzsche

 

Não há muito o que dizer sobre mim. Preto, 1,82 metros. Partindo desse pressuposto, tem os dados como o óculos, de grau forte, que me impediriam de servir nas forças armadas, oficiais ou informais no Rio de Janeiro. E atualmente a idade, que reduziu a atração dos homens de farda pela minha pessoa… espera!

Fardas existem outras que não apenas de quem usa arma. Muitas vezes, as fardas subalternizadas no comércio e nos cargos de “dar acesso de um lugar ao outro”, como portaria e segurança, conduzem corpos como o meu a um retesamento, que é ensinado a cada experiência ruim.

Segundo alguns, os uniformes surgem na idade média como forma de identificar nas armaduras, entre bandeiras e brasões, quem eram seus pares e quem eram seus inimigos, evitando, assim, com que você, obviamente, atingisse um companheiro de luta numa batalha. Com o passar do tempo e com as lógicas industrial e comercial, mas ainda com influência das lógicas de guerras, adota-se o uniforme não como forma de igualar um grupo, mas distinguir o seu grupo do outro. Das equipes de esporte aos grupos de extermínio, cores, roupas e logos são o que os unem entre si e os separam dos demais.

A diferença está sempre ditando as regras.

No entanto, a regra fica séria quando o uniforme não tem um tecido externo, fabricado. Quando o uniforme sacerdotal, étnico, competitivo, não é industrializado. Quando a violência se “Fordfica”.

A pele, durante o período medieval, se torna o uniforme da desumanização. O que traz a diferença para dentro dos próprios uniformes. Do capitão do mato ao fiscal de supermercado, ao segurança do banco ou ao agente de segurança do estado, o uniforme os distingue da população, mesmo que pobre como muitos destes. Mas a pele os aproxima da violência enquanto ação na pele, no psicológico ou nos documentos.

Passar dos 30 e ser de classe média já me livrou de algumas abordagens policiais em transportes e espaços públicos que eram constantes e humilhantes em minha juventude. Porém, depois dos 30, sofri a mais violenta abordagem policial — com componentes de intolerância religiosa envolvidos –, por agentes da lei uniformizados, mas sem identificação em seus uniformes.

Eu e mais dois homens pretos, de tons de pele distintos — um maior e outro menor do que eu –, mas três homens pretos, bem vestidos, em um táxi, de madrugada, saindo da rodoviária para a Zona Sul. Todos foram abordados, tirando o taxista — que além de usar uniforme, na época em que taxista usava uniforme, não tinha o mesmo uniforme cutâneo que as nossas pessoas. E justamente por isso os uniformizados não cutâneos e não identificados não o perturbaram, enquanto trabalhador. Afinal, não era o cineasta, o jovem jornalista e o empresário pretos, que obviamente estavam uniformizados de “trabalhador”. A função do estado é proteger o taxista, não?

Por força dos Orixás, e talvez também por uma certa reserva de sair em certos horários para onde eu poderia ir se quisesse e por não confiar em homens de uniforme (não cutâneos), não passei mais perrengues com armas do estado em minha cabeça. No entanto, lamento cada dia que pessoas com o mesmo uniforme cutâneo que o meu passem por este perrengue, assim como seus familiares, diariamente. E lamento também pela consciência que aqueles que carregam ambos os uniformes, cutâneos ou não, tenham que ser os que apontam a arma para o perigo, os que seguem nos corredores dos supermercados por combate ao perigo, filtram a entrada pelo elevador social — ou nem a permitem, em função do perigo –, barram a porta giratória do banco antes de qualquer arma detectada, pois, por si só, o uniforme cutâneo já é uma “arma branca”, manter as aspas por favor, e por não perceberem que, como afirmam ser a visão de Nietzsche, um uniforme oculta o outro.

O perigo tem descrição e qualquer artista oficial, uniformizado, pode fazer o seu retrato falado. O meu, por exemplo, corresponde a milhares de pessoas que inflam as estatísticas. A pouca circulação de pessoas com o isolamento social em alguns destes espaços citados faz com que o alvo das miras seja mais qualificado, pois reduziram-se as opções, mas não o jeito de olhar e identificar o perigo.

Quem bate com a descrição do retrato falado não pode ser um músico qualificado, formado desde criança, por exemplo, ou uma dona de casa. Não pode nem ter o direito de “vadiar” em sua liberdade, pois o uniforme da vadiagem foi definido junto com a lei que a criminalizou por muito tempo. Tanto tempo que nem lembro que (e se) acabou.

No caso que passei há 16 anos, quando toda a hierarquia de comando acima dos uniformizados não identificados tinha o mesmo uniforme que eu, cutâneo, ao encontrarem a câmera, a abordagem violenta foi encerrada e, mesmo assim, duvidaram que o equipamento me pertencesse. Mas foram logo embora e nada pudemos fazer, nenhum apoio da hierarquia melaninada, com outros objetivos dentro de seus próprios uniformes. Naquele tempo, a bíblia seria um melhor artefato para ter na mala de viagem, ou carregar na mão, mas Deus optou em não nos conhecer, os três pretos, pessoalmente e transformou a Sony PD-150 em salvação, talvez porque já se previa que as câmeras revelam o que os uniformes ocultam.

Faz parte do processo colonial distinguir simbolicamente aqueles que podem desafiar o poder e fazer com que alguns, voluntariamente ou não, não enxerguem suas identidades para além do que vestem.

Enquanto as mentes não se descolonizarem de seus preconceitos e o povo preto e originário não se entenda como potência para além da farda que vestem, o retrato falado do crime não será o que está desenhado, mas o que está nos olhos de quem compara o perigo com o cidadão.


Esse texto contou mais uma vez com a revisão crítica de Tayna Arruda