Por Daniel Seidemann*

 

Em meio à instabilidade política em curso nos EUA, Israel vem promovendo assentamentos “apocalípticos” em Jerusalém Oriental, que devastariam as perspectivas de um futuro acordo de paz.

 

Enquanto aguarda a cerimônia da posse do presidente eleito dos EUA Joe Biden, o mundo vem assistindo a uma enxurrada de atividades ligada a assentamentos, que estão longe de rotineiras nos territórios ocupados. Esses absurdos vão desde um aumento nos anúncios de assentamentos na Cisjordânia, até processos relâmpagos de despejo contra as áreas-alvo de colonos, em Jerusalém Oriental nas comunidades de Silwan e Sheikh Jarrah, atingindo o ápice com as demolições de moradias. Nada disso está sendo feito em sigilo, como indicaria a visita, diga-se de passagem muito elogiada, do Secretário de Estado Mike Pompeo, na semana passada, a um desses assentamentos. Tudo isso está acontecendo em plena luz do dia.

Entende-se perfeitamente que essa expansão seja uma tentativa de última hora do primeiro-ministro Netanyahu, do presidente Trump, de Pompeu e do embaixador dos EUA em Israel David Friedman, para criar não apenas fatos irreversíveis no terreno, mas um “novo normal” que consagraria uma Grande Israel e uma Jerusalém exclusivamente israelense.

A realidade pode ser ainda mais complicada para que seja bem compreendida, embora não menos sinistra em suas intenções ocultas. Nada é mais revelador do que essa correria desenfreada em relação às construções em assentamentos, que ocorrem no interior e nos arredores de Jerusalém, em comunidades como Givat Hamatos, Atarot e a área conhecida como E-1.

Givat Hamatos

Givat Hamatos é uma encosta rochosa em Jerusalém Oriental, aninhada entre o assentamento de Gilo e a Linha Verde, vizinha ao bairro palestino de Beit Safafa, ao norte, e ao assentamento Har Homa, a leste.

O governo israelense tem forçado a barra para transformar Givat Hamatos no primeiro grande bairro de assentamentos em Jerusalém Oriental, a ser construído desde a década de 1990, com aproximadamente 3.000 moradias para judeus israelenses, além de tantas outras centenas, visando a expansão de Beit Safafa.

Dada a sua localização, a construção de Givat Hamatos contribuirá para a criação de um amortecedor ou uma zona neutra entre Jerusalém Oriental e Belém, ao sul. Além disso, Givat Hamatos será a construção israelense pioneira no que tange à estratégia de abraçar por completo um bairro palestino (Beit Safafa) em Jerusalém Oriental, tornando impossível a demarcação de uma fronteira demográfica naquela região. Nesse sentido, Givat Hamatos terá um impacto devastador na possibilidade de um futuro resultado favorável à criação de dois Estados.

Mapa Daniel Seidemann/972

Portanto, não é surpresa que os esquemas de assentamento de Givat Hamatos tenham sido vistos há muito tempo pela comunidade internacional como um acordo “apocalíptico” que se abre em ramificações estratégicas para qualquer possível acordo. Por pouco a oposição tipo muro a muro, mesmo entre os aliados mais próximos de Israel, não foi capaz de conseguir dissuadir Israel de implementar esse plano.

Ocorre que, em 15 de novembro, depois de ter colocado no modo de espera por anos, a Autoridade de Terras de Israel publicou os termos da licitação necessária para que os construtores possam concorrer ao direito de erguer as 1.257 unidades no assentamento de Givat Hamatos. A adjudicação dessas propostas conduzirá invariavelmente a um “ponto sem retorno”, após o que a construção de um bairro de assentamento se torna virtualmente inevitável. Antes de adjudicar as propostas, o governo bem que poderia decidir cancelar ou suspender esse plano de construção. No entanto, uma vez adjudicadas as propostas e assegurados os direitos a terceiros, não haverá como impedir as construções.

Nos termos da licitação para a construção do bairro de assentamentos em Givat Hamatos, o prazo para a apresentação de propostas será muito próximo da posse do Presidente Biden, em 20 de janeiro, após o que as propostas podem ser abertas, examinadas e adjudicadas.

A escolha do momento não é mera coincidência.

Em geral, a publicação de propostas como essas não poderia ocorrer sem o conhecimento e consentimento de Netanyahu. No caso de Givat Hamatos, a intenção de tornar públicas as licitações chegou a ser capa do Haaretz cinco dias antes de sua publicação oficial, restando, então, poucas dúvidas de que Netanyahu não apenas sabia que o anúncio oficial estava prestes a acontecer, como ele deve próprio ter orquestrado tudo isso.

O tema do esquema de assentamentos em Givat Hamatos não é estranho para Netanyahu e ele tampouco deixaria passar despercebido o potencial bombástico que esse tema ganhou na comunidade internacional. Em 2012, ele teve uma discussão acalorada e bastante alardeada, chegando ao Salão Oval, logo depois de autorizar por lei mais prazo para a sua aprovação, que permitiria a construção desse bairro e isso há poucas horas de sua reunião com o presidente Obama. À época, a chanceler alemã Angela Merkel expressou pessoalmente suas graves preocupações a Netanyahu sobre esse plano.

Jerusalém Oriental. Foto Ronan Shenhav

Mais recentemente, tem havido uma série de diligências em que os Estados-Membros da União Europeia (UE), muitas vezes atuando de forma coordenada, têm manifestado a sua profunda preocupação. Em 13 de outubro, há um mês da publicação das propostas, 17 Estados-Membros da UE – um número sem precedentes – expressaram em conjunto a sua firme oposição ao plano. É inconcebível que um evento de extraordinária relevância não tenha sido levado ao conhecimento do primeiro-ministro.

A questão não é se ele sabia, mas porque ele escolheu semear esses ventos. A resposta a isso está envolta em uma neblina pesada.

Turbinando outros planos de assentamentos

Givat Hamatos não é o único esquema de assentamento de Jerusalém atualmente cujo processo está sendo impulsionado a toque de caixa. O mais recente deles surgiu do nada, na semana passada, quando Netanyahu supostamente “pediu permissão” ao Secretário de Estado Pompeu para iniciar a construção de um bairro de assentamento em Atarot, no extremo norte de Jerusalém Oriental “…para criar fatos irreversíveis no terreno, antes de o presidente eleito dos EUA Joe Biden tomar posse, em janeiro”.

Não se pode esquecer que, em segundo plano, estão uma série de planos adicionais para mudar a paisagem de Jerusalém e aniquilar qualquer tentativa potencial de acordo entre os dois Estados. Em fevereiro deste ano, quando Netanyahu, lutando por sua sobrevivência política, em meio a uma campanha eleitoral acalorada, anunciou pela primeira vez sua intenção de publicar os certames licitatórios para Givat Hamatos, ele também anunciou movimentos em direção às construções na área E-1 e em Har Homa E (conhecida como Har Homa Ocidental).

Juntamente com o bairro de assentamentos existente em Gilo, Har Homa E, Givat Hamatos, e a expansão recentemente anunciada do assentamento Har Gilo, toda essa área formaria um “amortecedor” perfeito entre Jerusalém Oriental e Belém.

A área E-1, a menina dos olhos de todos esses esquemas de planejamento para novos assentamentos, designa o espaço demográfico na Cisjordânia, que se estende entre Jerusalém Oriental e o bloco de assentamentos de Ma’ale Adumim. As construções naquela área serviriam para desmembrar a Cisjordânia em dois cantões descontinuados e impediria a criação de um futuro Estado Palestino, tendo como núcleo Jerusalém Oriental, que seria interligada aos bairros situados no seu entorno. Tal como em Givat Hamatos, isso teria um impacto devastador em qualquer possível futuro acordo para a criação de dois Estados.

Mapa Daniel Seidemann/972

Desde fevereiro deste ano, o pano de fundo legal para tirar a área E-1 do papel vem ganhando velocidade rapidamente, e as audiências sobre as objeções a esse planejamento perante o Comitê Superior de Planejamento – que opera sob a Administração Civil das Forças de Defesa Israelenses (IDF), que é o órgão de governo responsável pela mecânica das ocupações israelenses da Cisjordânia – são esperadas em breve. Claro que seria perda de tempo dizer que a aprovação desse esquema de assentamento são praticamente favas contadas.

Nem tudo é exatamente como parece ser

Após uma análise mais aprofundada, essa suposta tentativa de criar fatos irreversíveis no terreno acaba por ser mais teatral do que a expansão real dos assentamentos.

O exemplo mais revelador é o de Atarot. Seria possível iniciar a construção do bairro antes da posse presidencial nos EUA? Definitivamente não – só se estivéssemos falando da posse em 2029, uma vez que o processo para a aprovação legal desse plano ainda nem decolou. Além disso, e com uma ironia descarada, constata-se que, sob o tão alardeado plano de paz de Trump, Atarot é a única área em Jerusalém destinada a servir à população palestina. Buscando desnacionalizar o coletivo palestino em Jerusalém Oriental, o plano relega suas ações na cidade para uma “área turística especial” em Atarot, a ser estabelecida em seu próprio benefício econômico.

Basicamente, Netanyahu está pedindo permissão a Pompeu para violar o plano Trump, permitindo que Israel substitua essa “zona turística especial” por um novo assentamento, privando os moradores palestinos da cidade do que seria o único bastião de bondade para esse povo.

Agora, quando se trata das propostas relativas à Givat Hamatos, uma coisa é certa: o processo de licitação não será concluído antes da posse de Biden. Ainda que o prazo da proposta não fosse prorrogado (o que não deixa de ser uma alternativa viável), a adjudicação de contratos não poderia ser concluída antes da posse, uma vez que as fases de revisão, comparação e validação das propostas antes da elaboração dos contratos leva tempo. Netanyahu sabe muito bem que nada conclusivo acontecerá nesse finzinho da administração Trump e nem da forma como ele arquitetou.

Da mesma forma, mesmo que se acelerasse o processo para as construções em E-1, não seria possível ter a sua aprovação legal antes do dia da posse. O mesmo se aplica aos esquemas de assentamentos planejados para Har Gilo e Har Homa E.

Israelenses de direita realizam uma manifestação, enquanto os representantes da União Europeia participam de uma conferência de imprensa no bairro de assentamentos judaico de Givat Hamatos, Jerusalém Oriental. Captura de video.

Há um denominador comum para tudo isso: nenhum dos “fatos irreversíveis no terreno”, até aqui altamente elogiados, poderá ocorrer enquanto Trump estiver no cargo. Os estágios decisivos de todos esses planejamentos apenas chegarão aos verdadeiros decisores durante a administração Biden. Dado o momento, os dois esquemas mais voláteis e avançados, que são os assentamentos de Givat Hamatos e da área E-1, provavelmente se tornarão uma das questões mais importantes e urgentes na agenda EUA-Israel a ser colocada no colo do novo presidente. A questão de Givat Hamatos, em particular, atingirá sua fase mais crítica em questão de dias ou poucas semanas após a posse de Biden.

Afinal, do que se trata tudo isso?

Se esses planejamentos tocados às pressas para os assentamentos não revelam nenhuma intenção séria de criar fatos irreversíveis e “concretos” no terreno, antes da posse de Biden, então qual a verdadeira jogada de Netanyahu? Penso que há uma série de explicações plausíveis. Vejamos:

  • Retirada estratégica. Parece cada vez mais provável que Netanyahu leve Israel a novas eleições no primeiro trimestre de 2021. Para levar adiante a sua velha e conhecida estratégia eleitoral de consolidar sua base de colonos domésticos com questões controversas de Jerusalém, ele será capaz de se vangloriar de que somente ele será capaz de enfrentar os democratas de esquerda.
  • Consolidação da base trumpista. Tendo cultivado exclusivamente um Partido Republicano liderado por Trump e consolidada uma base evangélica apocalíptica, Netanyahu agora precisará navegar em mares encapelados para trabalhar com a administração Biden. Ele precisará, simultaneamente, tranquilizar sua base judaica evangélica e de direita nos EUA com mensagens do tipo: “Eu ainda sou um de vocês”. Nada envia esse sinal melhor do que os planos de assentamentos de Netanyahu, “O redentor de Jerusalém”.
  • “Você diz dois Estados, eu digo um (ou mais ou menos isso)”. O abraço de Netanyahu em Givat Hamatos e na área E-1 simboliza a rejeição de Netanyahu quanto à solução de dois Estados. Mais do que qualquer outra solução, cada um desses regimes, por si só, tornará virtualmente impossível a solução de dois Estados. Netanyahu está enviando uma mensagem clara para Biden: “Nem pense em dois Estados, Jerusalém está fora de questão e assim permanecerá”. 
  • Netanyahu, o valentão. Netanyahu não está somente esclarecendo suas posições, ele está estabelecendo a suas próprias regras de engajamento: “Trabalharei com um presidente democrata, mas de olhos bem abertos. Nada de lua de mel, e a questão de Givat Hamatos e E-1 testará nossas relações no alvorecer da nova administração americana”.
  • “Antes de mais nada, recompensa-me por não fazer o que eu não deveria ter sequer planejado fazer”. Uma raposa política escolada, Netanyahu tem sido hábil em concordar se abster de levar adiante algo que ele nunca deveria ter nem ousado pensar em fazer – em troca de uma “recompensa” polpuda. O bom comportamento é uma mercadoria, e Netanyahu insiste em ser pago por ela.
  • Netanyahu está querendo ser parado. Aqui entre nós, se Netanyahu realmente quisesse criar fatos irreversíveis tanto em Givat Hamatos e na área E-1 antes de janeiro de 2021, ele já poderia ter feito isso com o pé nas costas. Mas ele não o fez. Nos últimos anos, ambos os esquemas de planejamento têm sido travados, não pela dissuasão americana, mas por um envolvimento persistente, articulado e sustentado de certos Estados-Membros da União Europeia. Sempre avesso ao risco, Netanyahu sempre esteve ciente de que Israel também precisa do apoio de Berlim, Paris, Londres e Bruxelas, e teme o impacto que Givat Hamatos e E-1 terão nas relações de Israel com esses países. Não se pode descartar a ideia de que ele esteja forçando a barra para ser convencido a parar com esses ímpetos de ocupação, desde que não pareça estar fazendo isso por vontade própria.

Muita calma nessa hora

No entanto, apesar de todo esse teatro político, há muito com o que se preocupar.

O planejamento para as construções em Givat Hamatos é perigoso em seu impacto e iminente em sua possível implementação. E isso aos 45 minutos do segundo tempo, sendo que a área E-1 ficará muito para trás. Além disso, há outros esquemas possíveis ocorrer antes da posse, igualmente com grande impacto, como, por exemplo, a demolição do assentamento de Khan al-Ahmar e o deslocamento de seus residentes, que é uma possibilidade real, assim como os planos para “legalizar” os postos avançados da Cisjordânia e reconhecer a soberania israelense sobre Jerusalém Oriental.

Mas com um olhar de águia para o futuro, com a cabeça fria e a mão firme, ainda será possível parar ou adiar indefinidamente os esquemas de assentamentos em Givat Hamatos e em E-1.

Neste breve hiato entre as administrações Trump e Biden, o mundo inteiro se aventurará em águas perigosas por mares nunca d’antes navegados. Isto também se aplica à questão Israel-Palestina. Com a atual administração americana sem querer arredar o pé de Washington em D.C., mas que não consegue se manter inteiramente nos trilhos, e a próxima administração, impotente para agir, tudo isso fica muito dependente dos “adultos responsáveis” da comunidade internacional, já sobrecarregados pelas demandas de manter o restante dos players em equilíbrio no tabuleiro da ordem internacional.

É imperativo que aqueles que permanecem engajados na questão Israel-Palestina acompanhem esses desenvolvimentos com olhar vigilante e sem alimentar grandes ilusões. Os verdadeiros aliados de Israel seriam sábios em nos advertir, para não incorrermos na ira do mundo não totalitário e cortejar o isolamento ao se envolver em esquemas de assentamento que nunca ousamos realizar no passado.

A esperança é a última que morre, mas esperamos que o próximo presidente americano, ao assumir o cargo, tenha mais do que terras queimadas, minas terrestres e bombas-relógio deixadas para trás por Trump e Netanyahu para ter com se ocupar.


* Daniel Seidemann é um advogado israelense especializado em questões geopolíticas ligadas a Jerusalém contemporânea.

Traduzido do inglês por José Luiz Corrêa de Silva

O artigo original pode ser visto aquí