OPINIÃO

 

Por Rodrigo Karmy, filósofo e professor emérito da Universidade do Chile. 
Traduzido do espanhol por Carlos Contente.

 

 

O Natal popular não trouxe futuro, mas abraçou a natureza intemperada do presente, dispensou o valor de troca e o perturbou em uma modalidade de uso que era irredutível ao regime de equivalência geral, despachou a “autoridade” dos teólogos com suas fórmulas ditadas pelo FMI, pela “autoridade” dos assassinados nas lutas do passado; substituiu o hino sangrento do Chile pelo “Direito a viver em paz” de Victor Jara, assassinado em nome deste mesmo hino. O Outubro Chileno foi o verdadeiro natal.

O Natal se aproxima – dizem. Como um tsunami, uma exigência, um sonho capturado pelo pastorado da Igreja e pelas grandes lojas. Mas, aparentemente dois tipos de Natal parecem se contrapor. Por um lado, o Natal no qual o ressentimento da Igreja chama ao “recolhimento” e a estar com a “família” pensando na mensagem de Cristo, ao invés do consumo implacável ao qual nos convida o mercado. Por outro está o Natal como mercadoria e objeto de infinito gozo.

A Igreja convoca a viver a “verdadeira” mensagem de Natal frente à “falsa” promovida pelo materialismo do capitalismo e sua publicidade desenfreada. O Natal como “mensagem de Cristo” – o que significa isso, segundo a Igreja? – ou o Natal como “publicidade mercantil” são verdadeiramente duas noções contrapostas do Natal?

Aparentemente sim, o idealismo do coração confrontado com o materialismo do corpo, a verdade frente a falsidade, o brilho contra a obscuridade, a mensagem espiritual contra a publicidade do capital. No entanto, as coisas são sempre mais complicadas do que a simples contraposição entre espiritualismo da Igreja e o materialismo do mercado, entre o supostamente verdadeiro e o falso.

Antes, sobrevive uma cumplicidade secreta entre Igreja e Capital nas baixas paixões que ambos inoculam: o ressentimento, seja sob a forma de “culpa” moral o sob o modo da “culpa” econômica (a “dívida”). E se há culpa, há mito e, portanto, a lógica do sacrifício associada, dispositivo de morte, algo que, certamente, o cristianismo nunca pôde superar, mas que simplesmente inverteu os termos de sua operação (do condenado culpável ao condenado inocente) [1]. Agora,  em ambos os casos se trata de uma forma precisa de “culpa” a que , certamente, teríamos de acrescentar a do Estado que se acopla ao dispositivo do direito como “culpa jurídica”: culpa moral, jurídica e econômica são três modalidades de um mesmo dispositivo mítico, que em virtude de sua lógica sacrificial, dá lugar à máquina capitalista na qual Igreja, o Estado e o Capital se articulam como três faces de uma mesma lógica, três formas de uma maquinaria mitológica ou capitalista que hoje, não só no Chile, está truncada e destinada à ruína.

Deste modo, mais do que se opor, Igreja, Estado e Capital dançam o mesmo ritmo, mas em intensidades diferentes. O “recolhimento” ao qual chama a Igreja e o consumo desenfreado ao qual nos convida o Capital são duas caras de uma mesma maquinaria de poder, duas polaridades de um dispositivo de “culpa” a partir do qual o Natal é convertido em uma liturgia de morte, na qual o controle das almas e dos corpos constituem sua premissa fundamental. Desta forma, longe da simples contraposição, tão melosa entre o “recolhimento” (Igreja) e o “gozo” (Capital) insisto que ambas as atitudes são parte de um mesmo frenesi, de uma mesma maquinaria pastoral com a qual se articula o devir do capitalismo neoliberal contemporâneo.

 

No entanto, o povo chileno experimenta o verdadeiro Natal desde o 18 de outubro de 2019. Não deixou de ser Natal, se talvez este último não designar uma data cronológica precisa, mas uma figura histórica na qual se desdobra o “nascimento do Messias”, ou seja, precisamente o que Hannah Arendt enfatizou como o início de uma nova era histórica. Porque “messiânico” não designa a ascenção de um “líder” eventualmente carismático capaz de liderar um rebanho, como geralmente se pensa, mas um momento de demissão radical das formas clássicas de liderança que estão precisamente enraizadas na forma, tão antiga quanto eficaz, do pastoreio.

Começamos outra era que depôs a figura da Lei e sua soberania e abraça a de outros possíveis laços, outros olhares e vozes que haviam sido esquecidos pelo peso de uma tradição “teológica” (de Guzmán aos transitólogos concertacionais) que falava em nome da profecia, pervertendo-a.

O Messias não é o pastor, mas o contra-movimento que o depõe. E o “Natal” não é, portanto, uma data possível dentro do calendário vazado que experimentamos depois de outubro, mas o poder destituinte que ofereceu o “nascimento” a uma nova época histórica.

A revolta de outubro trouxe o Natal de volta ao povo, depositando o dogma teológico, a fábula culpabilizante da transitologia, e finalmente descartando a episteme que reinava desde o sangrento golpe de Estado de 1973. O Natal popular não tem nada a ver com a impotente “lembrança” promovida pela Igreja, nem com o gozo suscitado pelo capital. O Natal popular não trouxe futuro, mas abraçou a natureza intemperada do presente, dispensou o valor do intercâmbio e o perturbou em uma modalidade de uso irredutível ao regime de equivalência geral, despachou a “autoridade” dos teólogos com suas fórmulas ditadas pelo FMI, para a “autoridade” dos assassinados nas lutas do passado; substituiu o hino sangrento do Chile pelo “direito de viver em paz” de Victor Jara, assassinado em nome desse mesmo hino. O mês de outubro chileno foi o verdadeiro Natal. O único com a capacidade de derrubar o poder dominante, o único com o poder “messiânico” que, como Nietzsche bem entendia sobre Cristo, não queria trazer ao mundo uma “nova fé” (como um dispositivo que promove a obediência cega), mas a alegre materialidade de um “nova forma de vida”.

Nota:

[1] É claro que discordo substancialmente do lugar do cristianismo com René Girard neste ponto. Ver: René Girard “La Violencia y lo Sagrado” Ed. Anagrama, Barcelona, 2005.