OLHARES

 

“Um boletim de voto tem mais força que um tiro de espingarda.”
Abraham Lincoln

 

Uma pergunta: quando você não votou em branco?

Sim, o nome ligado ao voto anulado em uma eleição ou plebiscito pelo simples ato de não anotar uma opção na cédula — nos tempos da eleição em papel — ou no apertar do botão com a opção “branco”.

É bizarro, a meu ver, haver as opções nulo e branco na urna da eleição eletrônica no Brasil. Uma opção onde você opta, voluntariamente, em anular o voto e a outra em que você anula por não escolher nenhuma das opções, em especial por discordar dessas. Voto branco ou nulo tem a mesma função em uma eleição, ou seja, para a eleição, nenhuma função. A legislação eleitoral só conta os votos válidos numa eleição em que o voto é obrigatório. Então, a falta de opção ou voto nulo, enquanto protesto, é só um número que anula a sua própria opção e te deixa fiel a sua consciência, se esta tomou tal decisão. Mas não é sobre o peso quantitativo do voto branco que quero falar, até porque não tem peso… ao menos diretamente não, mas o bagulho aqui é outro.

O branco vem da cor do papel, onde se espera algum preenchimento para se entender uma escolha entre as opções propostas por partidos políticos para gerir sua vida na gestão pública. Públicas são as questões de interesse do povo ou da coletividade. Povo são pessoas com interesses e costumes semelhantes e que vivem em comunidade.

A eleição obrigatória faz com que as comunidades, em especial quem queira manter seus direitos de cidadania, mas não tenha o valor da multa sobrando no bolso, se vejam obrigados a escolher um nome, um número, uma cor e uma legenda partidária para votar, sabendo em quem está votando ou não. Durante um tempo, os famosos “santinhos”, propagandas em panfletos minúsculos só com o nome e número do candidato, eram suficientes para que, num país com alto índice de analfabetismo, se garantisse o voto. Aliás, a imagem sempre fez parte do jogo. Antes de aprender, quando aprenderam a ler a bíblia, os cristãos que, durante a colonização, eram analfabetos, eram educados sobre a religiosidade a partir das imagens sacras em estátuas, pinturas e vitrais nas igrejas. O livro, seja a Bíblia, o Código Civil ou a Constituição Federal é para poucos, não apenas para quem sabe ler.

Antes mesmo do Brasil pensar em eleições, o processo de mudanças no comando do país já inspirava o resto de sua história: o país se torna independente no momento em que a coroa portuguesa se retira e o herdeiro da coroa portuguesa proclama a independência do país (ou morte). O país, após sua invasão colonial, se comporta como uma empresa familiar e, talvez por isso, seja tão difícil pensar a formação política pelas escolhas do povo como não sendo envolvidas em heranças familiares. E quando alguém quebra essa corrente por não vir de família da política, acaba, invariavelmente, por formar uma nova família política a se eternizar na composição dos quadros nas assembleias. Em alguns casos adotam-se sobrenomes de personalidades que “puxam” voto, sejam personagens de TV ou da própria política, para garantir uma popularidade instantânea acima de qualquer proposta de ação parlamentar. Aí vemos situações que são metáforas do processo racial brasileiro, onde candidatos desconhecidos e “pretos retintos”, de orientação conservadora, adotam o nome de um branco racista para dar um exemplo cada vez mais comum, para garantir uma votação recorde para um posto numa câmara, onde ele sequer comparece, pois deve préstimos a quem lhe “adotou” como sombra.

Quando candidato a vereador, em 1954, o grande Abdias do Nascimento, artista e ativista referencial do Movimento Negro, nas artes e na intelectualidade, fez a sua campanha, usando o seguinte slogan: “não vote em branco, vote no negro”. A meu ver essa campanha ousada, e que ecoa em muitas mentes ativistas até o momento presente, apresenta duas questões importantes para os debates raciais, 66 anos depois de tal feito: a representatividade nos campos de poder e o reconhecimento de que o voto branco, neste jogo de palavras, significaria também votar no branco.

Hoje, com inúmeras candidaturas de pretas e pretos, com trajetórias construídas em suas comunidades ou grupos políticos e, em alguns casos, até oportunismo — por que não? –, lançando-se na disputa por uma vaga na câmara municipal, pensemos: será que essa representatividade proposta por Abdias lá atrás se materializa, efetivamente, em um contexto onde não existem partidos políticos majoritariamente pretos? Por vezes, são em pautas conservadoras e de viés religioso onde boa parte das candidaturas de pretas e pretos se concentram. Ter leis que determinam a distribuição proporcional da verba dos partidos aos candidatos e candidatas pretos e pretas vai beneficiar mais candidatos, que tem a raça, mas combatem e deslegitimam as expressões de suas origens raciais.

E cabe aos grupos partidários, que se propõem como progressistas ou aliados, reconhecerem o legado do Abdias e mostrar que votar em pretas e pretos, em seus partidos, é também reconhecer suas lutas como lutas de todos e não como pautas convenientes em troca de votos de grupos minoritários e, obviamente, mais disputados.

Volto ao início do texto e repito a pergunta: quando você não votou em branco?


Este texto contou com os comentários críticos de Celso Sanchéz e a revisão crítica de Tayna Arruda