LIVRO

 

Uma tal borboleta azul

Já se passaram 106 dias, desde que me tranquei nesse apartamento e durante todo esse tempo, o medo foi a minha principal companhia. Está sempre flutuando entre o pavor e a minha luta em manter viva a minha fé. Lembro-me dos ensinamentos dos antepassados, que diante das tempestades, o melhor é manter -se flexível. Dobrar-se, curvar-se até o chão, sem demonstrar resistências para não se quebrar, assim como os bambuzais, que na minha infância me serviram de esconderijo para livrar das reprimendas e surras certas diante das minhas traquinagens.
Enquanto a mente flutua entre medo, ansiedade, fé, vou alimentando minhas asas e preparando para sair do casulo. Sei que asas ainda estão em formação e que existem muitos empecilhos que ainda me prendem – e o principal é o meu ego. Esse inimigo mortal, que se insinua violentamente, todas as vezes que eu tento romper com os caminhos pré estabelecidos como família, posses, status social, pessoal , ideais políticos e religiosos. É como se ele quisesse me manter morto, mesmo contra a minha vontade. É um espécie de Deus todo poderoso, com as mesmas perversões do outro Deus, externo, mas não menos perverso na sua humanidade.

O mundo que me cerca é apenas uma pergunta sem reposta. Chego a acreditar num sonho de criança, onde só as baratas pensavam e os homens eram insetos que devoravam restos, produtos químicos e a si próprio.

O triste dessa história é que quando caminhamos em direção ao futuro, mais voltamos a nos encontrar com a nossa face mais primitiva e selvagem. O presente para a humanidade é apenas um elo perdido. Nas esquinas, podemos sentir o cheiro podre de nossas consciências estragadas pelo sistema que nos subjuga e, que, mesmo assim, elegemos como o nosso salvador. Aquele mundo perfeito da igualdade, continua sendo erguido com cimento, aço e muito sangue e suor, enquanto, a inteligencia artificial avança sobre nossas mentes construindo mais desejos e vontade de possuir.

A ignorância impede o progresso, mas é a ganancia que o deforma. E esta deformação está sendo construída há séculos na base da educação, como um projeto muito bem sucedido de dominação das massas. Vidas são usadas como cobaias num sistema que enriquece poucos, empobrece outros tantos e apodrece tantos outros. Às vezes me pergunto se a consciência humana tem ainda alguma sonoridade e, se tem, porquê não ecoa?

Vejo um mundo ansioso para voltar à normalidade. As propagandas na TV, na internet, o tempo todo pregam que tudo vai passar e o mundo vai voltar ao normal. Que normal? A normalidade das almas corruptas, das máfias soberbas, do imperialismo político, do mercado nefasto, das ciências desumanas, das milicias, das injustiças, dos preconceitos, da fome? É isso de fato, que queremos?

Durante esses 106 dias trancado, assistindo da janela todas as mazelas que nos impusemos durante séculos. Milhões de pessoas morrendo pela Covid, pela tuberculose, pelo câncer, pela fome e, fundamentalmente, pelo egoísmo. Paro e respiro. Sinto saudades daquilo que eu nunca vivi – um mundo de paz, de não violência – das minhas utopias mais românticas e infantis.

Ontem uma amiga me ligou e conversamos sobre vários temas. No meio da conversa, ela me perguntou o que a pandemia mudou em mim. Respirei fundo e tentei ser mais verdadeiro possível na minha resposta, mas percebi que tudo o que eu dissesse, seria apenas, reflexo de uma ilusão de que alguma coisa teria que mudar diante do medo da morte.

Acabei falando que a pandemia mudou minha silhueta. E rimos…cada um dentro do seu casulo.

Acabamos chegando a conclusão que somos um abismo entre as mudanças que pregamos e àquelas que estamos, verdadeiramente, dispostos a fazer.

Abri uma garrafa de vinho. Coloquei uma música alta, apaguei todas as luzes e dancei sozinho no quarto. Cantava a plenos pulmões. Acendi um pito. Queria transgredir todas as regras…voar, como uma borboleta azul, que povoava as cachoeiras de Minas na minha infância.

Certa vez, tentei persegui-las e quase morri. Estava com um amigo, numa cachoeira bem escondida na mata. Saímos de casa, por volta das cinco da manhã. Ajustamos as bicicletas, preparamos os lanches e pegamos a estrada. Andamos uns 20 km até chegar na trilha principal que nos levaria ao paraíso. Da trilha até o ponto que dava acesso à cachoeira foram mais oito quilômetros de trilha. A região era completamente isolada. Chegamos a um ponto que era impossível continuar com as bicicletas. Fizemos um esconderijo e as guardamos. Continuamos seguindo para o nosso destino.

Caminhamos pelo menos mais 40 minutos entre trilhas que subiam e desciam. Mas, todo esforço valeu a pena. Alguns minutos antes de chegar ao nosso destino, já era possível ouvir o ronco da cachoeira e, quando a avistamos, a sensação de liberdade foi ainda maior. A água caía de uma altura de 30 metros em um lago de um verde profundo e um imenso véu branco provocado pelo impacto. Até chegar ao lago, a água ia batendo em rochas protuberantes no costão da montanha, fazendo um efeito de uma escada de nuvens. Eram sete degraus do ponto mais alto até o lago e em cada degrau formavam-se pequenos arco iris.

Chegamos no lago, nos livramos das roupas e mergulhamos completamente nus. Estávamos na cachoeira do Sossego. Só os dois ali sentindo todas as energias e vibrações daquele santuário.

Depois de quase uma hora, mergulhando e brincando, recuperando e me nutrindo de novas energias, decidi explorar o local. E minha ideia foi subir pelo costão até o topo. Meu amigo não quis participar da aventura e decidiu tomar um pouco de sol nas pedras, que ficavam dispostas bem no centro da clareira, o que permitia o sol banhar a cachoeira a maior parte do dia.

Fui subindo aos poucos, explorando com cuidado as pedras que estavam bastante escorregadias, mas a vegetação próxima à queda era uma espécie de cipó, o que facilitou a subida. Alcancei o primeiro degrau com uma certa facilidade. Dali, contemplei todo o lago, as pedras onde meu amigo estava e uma infinidade de pés de lírios brancos, contornando toda a margem. Passei de um lado para o outro debaixo da queda d’água. A medida que caía, a água ia se transformando numa espécie de vapor e pela grande quantidade, muito denso. Mas dava para respirar e ficar de pé sobre a pedra que formava o degrau. Tinha pouco mais de dois metros de largura e menos de um metro de profundidade. A sensação de estar naquele lugar, vendo e sentindo a água passar foi indescritível. Começou com uma espécie de pânico, mas a medida que meu corpo ia absorvendo aqueles pingos microscópicos, meus batimentos cardíacos foram se tornando mais compassivos e minha respiração foi se estabilizando. Parei ali por alguns minutos e decidi seguir. Minha meta era o topo.

Continuei a escalada pela lateral com a ajuda dos cipós. Quanto mais subia, mais escorregadio ficava. Ao chegar no segundo degrau, sentei na pedra e deixei a água cair sobre meu rosto. Estava sem folego. Olhei ao redor e vários tipos de vegetação que nascia das estranhas do rochedo. O perfume era tão forte que chegava a roubar os sentidos. Não me demorei muito e segui subindo. No terceiro degrau, a rocha se deslocava para a frente, e seguia o mesmo padrão de tamanho dos dois últimos, mas apresentava uma abertura, que a principio me pareceu a entrada de uma caverna. Me aproximei e olhei para dentro. A escuridão tomava conta de todo o ambiente e quando me aproximei mais, quase caí para trás de susto com uma revoada de morcegos que saiu trissando.

Deixei de lado a caverna, me recuperei do susto contemplando o visual. A cada patamar alcançado, tudo ia ficando muito mais bonito.

Continuei a subir. Do terceiro para o quarto degrau, a distancia era bem pequena. Pouco mais de dois metros separavam um degrau do outro. Apesar dos cipós, que estavam a minha disposição, resolvi subir de uma pedra para outra, sem passar pela lateral da cachoeira. Mas, para fazer alcançar a pedra de cima, teria que dar um salto, correndo o risco de escorregar e me estabacar.

Estudei com muita atenção o movimento e percebi que um impulso razoavelmente forte levaria minha mãos a uma fenda, que daria o suporte necessário para alçar meu corpo para parte decima da gruta. E assim o fiz. Fui preciso. Me agarrei na fenda e fiz um esforço descomunal para levar meu corpo. Dei um tranco no quadril e levantei as duas pernas e me arrastei até estar em segurança.

Meu coração parecia uma escola de samba…batia alucinadamente. Descansei e enquanto descansava fechei os olhos e deixei o som entrar em meus ouvidos. A cascata, que passava bem a minha frente, jogava em meu corpo alguns pingos, que chegavam a queimar a pele do meu rosto, mas me brindava com uma música vibrante que entrava pelos ouvidos e ecoava em cada órgão dentro mim.

Fiquei alguns minutos deixando o corpo se nutrir daquelas ondas sonoras até me sentir forte para continuar a subida. Olhei em volta e vi que haviam pequenos degraus que me dariam acesso à próxima plataforma. Fui tateando e pisando com o máximo cuidado para não escorregar e com alguns passos alcancei a quinta plataforma.

Dali era possível ver por cima das árvores. Vi muitas copas e ninhos de pássaros e muitos animais – até macacos. Meus ouvidos estavam super apurados e era possível ouvir os sons, que eles faziam, mesmo com todo o ronco da cachoeira. Parecia uma festa. Observei por um tempo e decidi seguir na subida.

Voltei meus olhos para a lateral esquerda da cachoeira e percebi que um galho de uma grande arvore avançava para o sexto degrau. Com um pequeno pulo, subi no galho, me agarrei e fui subindo. Me arrastava como uma serpente com medo de cair. Passei pelas folhas e alcancei a plataforma de pedra. Essa era bem menor que as outras e, quase não consegui ficar de pé sobre ela, pois água caía com tanta força que jogava meu corpo para baixo. Me sentei e tentei me equilibrar, recebendo todo aquele volume de água na minha cabeça e nas costas. Parecia que meu corpo ia ser dilacerado por tanta força. Sentado, fui me arrastando até alcançar a parede do rochão e para minha surpresa, uma pedra se moveu e percebi que ali tinha mais uma caverna. Consegui deslocar a pedra e entrei na caverna.

Fiquei deslumbrado com o que vi. A água jorrava pelo teto lentamente e formava vários estalactites dourados e em alguns pontos da caverna haviam estalagmites em vários formatos, mas a maioria deles eram uma espécie de falos num tom ocre e cheios de brilho. Avancei um pouco mais e percebi que vinha do fundo da caverna uma luz forte. Segui e encontrei uma escada de pedras bem rudimentar e vários desenhos nas paredes. A mais genuína arte rupestre já vista por mim. O local era cheio de encantamentos. Fui subindo a escada e alcancei uma fenda muito pequena, que mal dava para passar uma criança.

Me contorci todo, me espremendo entre os dois lados e consegui passar pelo buraco. Finalmente cheguei ao meu destino. O ponto mais alto da cachoeira do Sossego. Fui até o limite onde se quedava a água e olhei para baixo. Senti minhas pernas tremerem e uma vertigem me fez balançar o corpo. Era assustador olhar toda aquela beleza ali de cima. Deitei no topo da pedra e avancei minha cabeça para fora e poder contemplar com um minimo de segurança.

Ouvi vozes. Me virei e vi dois homens. Uma estava vestido com uma espécie de manto vermelho e parecia ser muito forte. Já o outro, carregava um facão na cintura e vestia uma espécie de jaqueta azul meio camurça. Os dois me olhavam e riam. Em seus pés, várias borboletas azuis saltitavam de uma poça de água a outra. Eram lindas e em dezenas. Muitas voaram até onde eu estava e pousaram em meu corpo molhado.

O homem, que portava a espada, a empunhou e a apontou para mim e disse: – Vá! Pule.

Olhei para ele com medo e disse que não tinha coragem e preferia lutar e enfrentar uma espada. Ele riu e me disse que a espada não era uma ameaça para mim.

O outro também riu e disse; – Voe !

Fiquei ali parado tentando entender quem eram aqueles homens e o que queriam de mim – um me mandava pular, o outro, voar.

O homem de vermelho disse: –Eu sou Miguel e ele, Judas. – Voe!

Fui arrastando o meu corpo aos poucos para longe da queda e me preparando para correr, mesmo sem conhecer o território. Um pavor tomou conta de mim.

E mais apavorado ainda fiquei, quando o homem de vermelho arrancou a capa e duas asas brancas surgiram em seu corpo. E ele se voltou, novamente para mim e disse: – Voe, filho.

Os dois vieram caminhando em minha direção e me imprensando, sem me dar alternativa para correr. O único caminho que eu tinha era a queda. Em nenhum momento pensei em tentar derrubar os homens e fugir. Até porquê, acho que não conseguiria, ainda mais, era demais para mim lutar contra um homem armado e outro alado.

Me enchi de coragem, dei dos passos atrás e pulei. Senti meu corpo avançando contra o chão. Minha cabeça dava mil voltas e o meu corpo cortava o vento. A sensação de pânico foi aumentando. Estava caindo em queda livre e nem percebia o tempo que aquilo duraria.

Olhei pra cima e vi os dois homens me observando. E de lá, eles gritaram: – Voe, filho!

Sem entender comecei a levantar e baixar os braços, como se realmente, fosse possível voar . Senti uma dor forte, me rasgando as costas e rompendo minha roupa. Duas asas azuis surgiram de dentro de mim. Ainda em pânico comecei a fazer movimentos com elas e, pouco antes de atingir o lago, consegui me equilibrar e, finalmente voar. Não pensei muito e voei até o topo e, quando lá cheguei, nem sinal de Judas e Miguel.

Estava plainando sobre a cachoeira e vi meu amigo, as árvores, os bichos, o horizonte e, tudo mais que eu queria.

Voei…voei para longe…ganhei confiança e continuei a voar. Todas as vezes, que o medo me atinge e tenta me paralisar, liberto minhas asas e voo. Vou para longe, contemplar a beleza e todas as possibilidades que a vida nos oferece em cada nascer de dia, mas que nos recusamos a ver, por estar presos dentro de um casulo que o mundo nos impõe a todo momento.

Voar…soltar as asas e ganhar a imensidão sempre, mesmo com os pés fincados no chão ou preso dentro do quinto andar de um apartamento, em plena pandemia.

Queria escrever poesias
soltar as letras e construir o mais profundo sentir
Voar até os horizontes
Mais próximo de Deus
Tirar férias de mim e do medo que aprisiona
deixar os braços caírem
os olhos cerrarem
o pênis brochar
Amansar o desejo
dar e receber aconchego
Queria guardar o perfume da terra em mim
…assim como as flores,
ser a luz no fim do túnel
me transformar
metamorfosear
bater as asas
respirar e ser eterno…enquanto dure.

Fim


*  A história, dividida em capítulos, não segue uma linearidade de tempo que se constrói seguindo a lógica de um relógio, mas se insere acerca de um período imensurável de uma quarentena, durante uma pandemia mundial. As crônicas são narradas na primeira pessoa, mas usam personagens e lembranças do narrador para criar um ambiente de comunicação entre vários mundos em diversos tempos.
Só o que for possível conta com as ilustrações da artista plástica, Fernanda Nóbrega, numa técnica mista de carvão e nanquim.
Acesse nesse link os capítulos já publicados.