LIVRO

 

 

O mapa da mina

São 3 horas e 9 minutos da madrugada. O sono de hoje ainda não veio. Lá fora, um vento frio castiga a noite. Do vidro da janela escorrem pequenas gotas acumuladas pela chuva fina, que cai desde o início da tarde. Já não sei mais o que penso. A mente está completamente vazia de pensamentos. Até o medo deu uma trégua.

O silêncio, que antes me apavorava, agora é um conselheiro amistoso. Chega a ser tão profundo que dá para escutar o ressonar do cachorro, que abandonou a cama dele e veio se aninhar no tapete do meu quarto. Ele dorme como um anjo, se é que anjos dormem.

Lá fora o vento uiva com mais força fazendo tremer a vidraça da janela. Ouço ao longe uma sirene que vai se distanciando e se tornando mais fraca. O relógio consome o tempo com vontade e já é possível perceber os primeiros raios de sol sobre as nuvens densas. Tento dormir, mas o sono não vem.

Deixo a mente e coração calarem e dou voz ao meu compartimento mais sensível. E é neste momento que eu entro em contato com o meu criador.

– Estou nu, sem palavras, gestos ou rituais, apenas vibrando com o desejo singular de ser um átomo consciente, compondo o grande universo. Integro uma luz de todas as cores e que se move em múltiplas direções. Não tenho mais o limite do corpo.

Sou o nada, um espasmo da criação, sem direitos…deveres, seguindo sempre na direção do grande nada e na contramão da razão.

Vivo os instantes e faço deles, o meu momento mais sublime e real. Consigo identificar os fragmentos do meu eu, despedaçados em meio a luz, uma espécie de constelação de buracos negros. É a alma sintonizando a verdade que me criou. Perco completamente a noção do tempo, do querer e do mundo que quis me dominar. Doo e recebo a alegria de pertencer ao nada.

Passo, de ponteiro à engrenagem central de um mecanismo natural, uma espécie de bioma muito particular, onde os dias e noites e, o próprio tempo, não significam marcos na construção de nada.

Poetizo carinhosamente na luz – de todos os santos e na escuridão do inferno – que foi plasmada em mim desde o momento da criação. Em todas as rezas e súplicas pela paz, encontro o menino e seu grito de desespero. Sinto a palmada da vida no primeiro bafejar de oxigênio ao sair do útero. Tenho fome do tempo, perdido nas esquinas e nos palanques dos falsos ídolos.

Não sou mais eu…sou o batuque dos atabaques, a inocência perdida no primeiro beijo, a ira adolescente, completamente sem juízos e valores, um Aquiles com o calcanhar descoberto. Minhas mãos são enxadas cobertas de sangue, daqueles que eu vi partir – pedaços da minha carne e das mesmas necessidades.

Sou uma nova cria, em imagem e semelhanças, uma viga plantada para uma nova história, uma nova civilização. Já não carrego mais os valores preconcebidos do meu tempo…sou o novo, uma luz em meio a escuridão.

Serei eterno…
se me maltratares… sofrerás
me cuidando… colherás
me roubando… perderás
me seguindo… crescerás
me matando… sofrerás
me arando… criarás
me amando… amarás
e vivendo… viverás.

E se vives, serás justo, um guerreiro a se transformar na vida.

O relógio desperta. São 10 horas da manhã. Recebo a primeira ligação do dia. Uma máquina do banco, onde tenho conta, me informando aquilo, que já estou cansado de saber. Há mais de três meses, a empresa não deposita o salário e o saldo é insuficiente para cobrir as despesas do mês. Apenas rio.

E quando rio, mergulho numa lembrança das mais alucinantes que vivi em Copacabana. Era 30 de dezembro de 1999, um dia antes da virada, um dia antes do fim do mundo profetizado – “ mil passará, dois mil não chegará”. Muita gente assustada com a possibilidade de bug no sistema financeiro e eu só querendo assistir a invasão alienígena diretamente da praia de Copacabana. Estava com o coração cheio de esperanças pelas grandes transformações que viriam com o novo milênio.

Marquei com um casal de amigos uma despedida de fim de ano num quiosque da praia. Estávamos lá com nossos chopes em punho, brindando a nova era, quando escuto um alvoroço de fogos e atabaques. Era uma celebração da Umbanda, que não podia mais ocupar as areais da praia no dia 31 por causa dos grandes shows.

Um caminhão aberto todo ornamentado de rosas trazia a imagem de Iemanjá. Muitas rosas brancas, amarelas, palmas azuis e flores das mais diversas. O grupo, todo vestido de branco, parou bem à nossa frente e começou a tocar e a cantar os pontos para o Orixá. Foi juntando gente e quando nos demos conta já haviam várias rodas formadas na areia.

Saí do quiosque, como que levado pelos cânticos e o som dos atabaques. Meus amigos, que já me conhecem e sabem o quanto eu me deixo levar quando isso acontece, me seguiram.

Estávamos os três há alguns passos de uma dessas formações. Além de nós, outras pessoas acompanhavam o ritual, inclusive umas crianças de rua. Elas estavam completamente maltrapilhas e, pareciam entorpecidas com suas garrafas plásticas carregadas de tíner.

Não dei muita importância. Meus olhos, ouvidos e todos os sentidos estavam mergulhados na magia que se desenhava naquela gira. Era possível ver e sentir a energia fluindo em cada uma daquelas pessoas e, também como elas se conectavam umas às outras. Uma chuva fina caiu, mas ninguém se dispersou. Foram alguns minutos de chuva e isso me fez sentir ainda mais a magia daquele ritual. Ao cessar a chuva, naquele final de tarde, um arco iris surgiu despontando do horizonte e formando um meio círculo perfeito, envolvendo o grupo e quem assistia.

Com o arco iris no céu, o atabaque e os cânticos pararam. Houve uma movimentação no grupo, que se seguiu de um grito: – Logun ô akofá!

Nos entreolhamos sem entender o que se passava. Nesse momento, um dos meninos de rua, o mais maltrapilho e magrinho se levantou, ergueu as mãos para o céu e disse com voz forte: – Loci Loci Logun!

A partir daí, meus olhos já não viram mais nada. Minha alma se possuiu de mim e, tudo, o que eu via, ouvia e sentia era tudo amplificado, como se eu não fosse mais eu, mas um mundo inteiro com todas as suas nuances e complexidades. Chorei compulsivamente e percebi que meus amigos estavam também emocionados.

As pessoas desmancharam a configuração circular e foram se dirigindo em direção ao garoto. Uma senhora, que parecia a líder do grupo, envolveu a cabeça do menino com um pano extremamente branco. Outras duas mulheres se aproximaram e envolveram o corpo do menino com uma espécie de manto branco sobre o corpo e outro amarelo ouro. Um dos homens que tocavam o atabaque se aproximou do menino e o cobriu com um véu azul turquesa.

E todos gritaram numa só voz! – Logun ô akofá!

Os atabaques voltaram a vibrar e o menino pôs-se a dançar desenvolto no meio da formação e todos passaram a prestar reverências a ele.

Menino Deus,

Logunedé, Senhor das Brincadeiras e das alegrias constantes

Menino Deus das bênçãos da vida e da terra cintilante

Menino Deus do Abebé e do Ifá que sua atenção caia sobre mim

Menino Deus do ouro das pedras de arco-íris

Menino Deus do arco e da flecha que aponta o destino

Menino Deus da Prosperidade

Menino Rei da Bondade

Menino Deus guarda os meus passos

Menino Deus me acolha em seus braços

Menino Deus, Senhor do mundo, Senhor da esperança,guie os meus passos, sob seu manto amarelo e verde. Saravá Logunedé!”

O Menino, que antes parecia um pivete se tornou o próprio arco – iris diante dos meus olhos, quase cegos com as lágrimas. Quedei de joelhos na areia branca e vibrei na luz do mundo, que me encheu de esperanças para continuar caminhando.


*  A história, dividida em capítulos, não segue uma linearidade de tempo que se constrói seguindo a lógica de um relógio, mas se insere acerca de um período imensurável de uma quarentena, durante uma pandemia mundial. As crônicas são narradas na primeira pessoa, mas usam personagens e lembranças do narrador para criar um ambiente de comunicação entre vários mundos em diversos tempos.
Só o que for possível conta com as ilustrações da artista plástica, Fernanda Nóbrega, numa técnica mista de carvão e nanquim.
O conjunto de 12 capítulos será disponibilizado aos leitores de Pressenza ao longo de alguns meses. A cada 15 dias será publicado um capítulo com uma ilustração. Acesse nesse link os capítulos já publicados.