Entrevista com Fransérgio Goulart

 

Uma das pessoas entrevistadas sobre a prática do não voto eleitoral foi o historiador Fransérgio Goulart.

Militante do movimento de favelas do Rio de Janeiro e coordenador da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, Fransérgio colabora da construção de espaços que garantam direitos e promovam respeito a populações vítimas do estado.

O historiador conversou com Pressenza sobre democracia representativa, enfatizando “a que ponto chegamos com o menos pior”. Falou sobre o constante apoio mútuo nas favelas, e sobre o eterno devir da proposta anarquista.

Para Fransérgio, há necessidade de se “pensar em um projeto político maior, que não passa por votar ou não votar, mas em pensar e apresentar para outros irmãos/ãs que podemos construir outras sociabilidades para além do capital e do Estado”.

Crédito da Imagem: Fransérgio Goulart, arquivo pessoal

 

– Em 2018, uma pesquisa perguntou a 1.204 brasileiras e brasileiros: “Como é a democracia em seu país?”. Desse universo, 17% afirmaram não viverem numa democracia.

Mais recentemente, No primeiro turno das eleições municipais de 2020, a abstenção no Brasil foi a maior dos últimos 20 anos – com média de 23%.

Na cidade do Rio de Janeiro, somadas abstenções, votos brancos e nulos, 32,8% do eleitorado não votou em ninguém. Só as abstenções superam os votos dos dois candidatos que foram para o segundo turno.

Como você analisa as evidências do crescente descrédito das pessoas pela democracia representativa?

“nosso projeto Político do fim do capital”

– Em 1° lugar acho que temos que entender que a democracia burguesa não pode ser entendida como um valor universal. Isso tem que fazer parte do nosso projeto Político do fim do capital.

As pessoas parecem cada vez mais não acreditar mesmo nessa via eleitoral, mas não conseguem vislumbrar um outro Horizonte. Por isso mesmo ainda acreditam no Estado provedor. Parece contraditório, mas não é.

– A situação eleitoral que se apresenta na cidade do Rio de Janeiro, leva parte significativa do eleitorado da esquerda a votar na direita, no segundo turno. Votos que apoiam um candidato que já desapropriou milhares de pessoas em prol de megaeventos, estabeleceu uma política de “choque de ordem” e instaurou a “Segurança Presente” em diversos bairros, revistando e acossando trabalhadoras, trabalhadores e pessoas em situação de rua. Quase sempre pretxs.

Para a reeleição, o candidato da direita a angariar votos da esquerda propõe mais opressão. Guardas Municipal nas escolas, uma elite da Guarda Municipal com armas letais e a ampliação da Segurança Presente são alguns dos planos de governo para a prefeitura em 2021.

De que forma você interpreta o movimento de eleitoras e eleitores de esquerda, que afirmam lutar por democracia, direitos e liberdades, votando na opção “menos pior” − que defende mais repressão e militarização da vida para cidade do Rio de Janeiro?

– Será que conseguimos refletir sobre as consequências do pensamento e do discurso do menos pior? Celebrar o avanço da centro direita com o DEM como algo que mina o bolsonarismo, é demais. E agora ainda vem Paes e Crivella. Por favor me deixe de fora disto! Por favor!

Fiz essa postagem: “Gente, a que ponto chegamos no menos ruim. Maior parte da esquerda institucional pregando o voto no PAES. Vivi para ver isso!

Ou seja, essa galera em nenhum momento projeta um projeto político do fim do capital. E por favor, pode me chamar de radical, não venha tentar fazer qualquer explicação caso vote no DEM no domingo. Domingo é Não Vote!

Ainda temos que ver essa galera postando foto do Maradona com Fidel, ou da tatuagem do Che, e indo votar no DEM. Devo estar em um outro mundo”.

– De que modo o senso de “responsabilidade” relacionado ao ato de votar, de dois em dois anos, pode ser mobilizado para construir lutas sociais e pressionar cotidianamente o estado violador?

 “nosso projeto tem que ser um eterno devir”

– Não acho possível sermos pautado e utilizar a Eleição como a tal da janela de oportunidade, pois nosso projeto tem que ser um eterno devir. Não existe esse momento propício para isso ou aquilo.

Essa ideia de se potencializar em anos de Eleição é papo da esquerda partidária. E acho que até a galera, não a maioria, que puxa o “Não Vote, Lute” entra nessa, pois vemos essas discussões em ano de Eleição e depois fica rara.

Errico Malatesta, 1853-1932.

“Eu viverei na merda com voto ou não voto”

Para a favela apoio mútuo, teoria e prática é realizado cotidianamente na construção da política de Sobrevivência. Eu viverei na merda com voto ou não voto, por isso prefiro pensar em um projeto político maior, que não passa por votar ou não votar, mas em pensar e apresentar para outros irmãos/ãs que podemos construir outras sociabilidades para além do capital e do Estado.

Falo que sempre estamos fazendo isso em células menores. Exemplo: o Estado e o capitalismo tem no apagamento de nossa memória um dos atos mais racistas, e o que fazemos? Nós produzimos memória com nossos corpos diariamente. As mães e familiares vítimas da violência do Estado materializam isso, e isso acontece fora da lógica desse Estado.

Para a galera que pauta o “Não Vote, Lute”, temos uma janela histórica com esse descontentamento com a via eleitoral. Mas, de fato, o que temos que construir são espaços que comentem outras sociabilidades, pois assim estaremos construindo uma plataforma política orgânica e de diálogo/ação com a sociedade.

– Fransérgio, fique á vontade pra abordar qualquer aspecto que eu não tenha sugerido, mas que você julgue importante tratarmos.

“o racismo só terá possibilidade de fim, com o fim do capital”

– Por fim queria destacar um ponto. Temos que estar muito atentos a armadilha da identidade. No capitalismo não seremos incluídos nunca.

Para nós não basta um favelado na universidade se não estiverem todes. Não basta um favelado em espaço de poder se não for todes, pelo motivo de que representação por representação sem ter a possibilidade de exercer poder é apenas mais uma alegoria do capital.

Como já afirmara Malcom X e tantos outros, o racismo só terá possibilidade de fim, com o fim do capital. O resto é engodo da branquitude, da dita democracia representativa do capital.