Possível acordo entre Governo de Minas Gerais e a empresa Ré Vale S.A. no caso Brumadinho gera diversas manifestações contrárias e pedem cancelamento de audiência marcada para dia 17 de novembro. A audiência celebraria o acordo sem a participação dos atingidos e com definição de sigilo pelas partes.

Posicionamento da liderança Fernanda Perdigão, coordenadora do Comitê Popular da Zona Rural de Brumadinho – Piedade do Paraopeba e Fórum de Atingidos (as) pelo Crime da Vale em Brumadinho.

 

O Governo do estado de Minas Gerais decidiu atropelar o sistema judiciário estadual e realizar um acordo que mais parece um “Leilão dos direitos”. Colocou à venda as obrigações de reparação integral dos danos causados pelo rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão em Brumadinho. Uma destruição profunda da natureza e da vida que foi ação imposta pela empresa Ré Vale S.A.

Em reuniões de portas fechadas sem a participação dos atingidos, as “instituições de justiça” e representantes do Governo de Minas Gerais construíram uma minuta de acordo que se assemelha à projetos de governo sem compromisso com as pessoas e agarrado ao lucro, desses que predominam em período eleitoral. Mas que fique registrado que o que ocorreu em Brumadinho em 25 de janeiro de 2019 foi o maior crime genocida contra a vida que a maioria, na imprensa formal faz ser conhecido como o segundo maior “desastre industrial” do século. Não foi desastre, não foi acidente, não foi deslize, foi a vontade impiedosa de colocar o lucro acima da vida e impor condições destrutivas em todas as dimensões humanas.

No dia 04 de fevereiro de 2020, em reunião junto aos atingidos, que contou com a participação de representantes das “instituições de justiça” estadual e do Ministério Público Federal, foi apresentado o Plano de Governança. Neste encontro, que demonstra a prática de dominação e de desleixo do poder do Estado, foi permitido que as pessoas atingidas, soterradas, violentadas, pelo crime cometido pela Vale em 25 de janeiro de 2019, pelo Plano de Governança contasse apenas com um representante com direito a “voto”. Nesta reunião, segundo representantes da unidade federativa de MG, ainda não existia a minuta do acordo, mas tal documento seria apresentado aos atingidos tão logo estivesse escrito, bem como os mais de 100 projetos “formulados” pelos órgãos do estado mineiro como proposta para reparação socioeconômica das pessoas e das comunidades atingidas.

Mas, em 22 de outubro de 2020 os atingidos foram surpreendidos com a notícia de uma reunião entre judiciário, executivo e a Vale sobre discussão da minuta do acordo. Registra-se de forma contundente que tal reunião inventada em meio a pandemia não previa ou contava com a participação das pessoas atingidas. Esse acontecimento irresponsável e autoritário agregou mais desafios à luta por justiça das pessoas e das organizações populares e da sociedade civil envolvidas ao compromisso de defender a vida: conhecer a minuta que estavam negociando sem os principais sujeitos dessa história, exigir participação efetiva nesse processo que deve ser de reparação e firmar que quem representa nós, pessoas atingidas pela violência, são as organizações parceiras, aliadas ou por nós mesmas constituídas.

No dia 04 de novembro, finalmente, os atingidos, por meio de suas Assessorias Técnicas, obtiveram a minuta e para ampliar as surpresas indigestas e o sentimento de indignação, tal documento demonstrava que as “instituições de justiça” de Minas Gerais estavam tocando conjuntamente o acordo com órgãos de governo, recriando uma versão da Fundação Renova criada no caso da bacia do Rio Doce para reparação dos danos dos atingidos e que como esperado no caso do Rio Doce não cumpriu seu papel mesmo 5 anos após o rompimento da barragem de Fundão em Mariana.

Já há a certeza que o tal acordo, um desacordo imposto na verdade, já está em prática, e que não envolve as organizações e as pessoas atingidas, questão que ficou evidenciada ao se perceber que demandas da minuta já estão em andamento e com uma costura de atores que deixa ainda mais óbvia a ligação do Estado com a empresa Vale S.A. Na supracitada “minuta” consta que: “os estudos de Risco à Saúde Humana e Ecológico, Morbimortalidade e Zoneamento Agropecuário Produtivo, bem como suas revisões, poderão indicar ações adicionais de reparação, além das já previstas neste instrumento que não estão contempladas pelos valores pactuados no presente Acordo”.

Para piorar, as empresas que executam tal demanda são as mesmas contratadas pela Fundação Renova, no caso do Rio Doce, para contrapor as análises que classificava os riscos à saúde e que resultados seguem em disputa judicial. No processo chamado de acordo, que diziam ser um reconhecimento para a reparação dos danos que a violência criminosa causou na vida das pessoas, o que se constata até agora são elementos que agregam mais desafios para a luta em favor da vida.

Para piorar, além de vários outros pontos aterrorizantes contidos nessa dita “minuta”, o que mais assusta é o silenciamento e aceitação das “instituições de justiça” estadual para que o caminho da impunidade permaneça. Afinal, a intenção da empresa Ré Vale S.A. é extinguir suas responsabilidades de reparação dos danos e os processos que transitam na 2° Vara de Fazenda e Autarquias de Belo Horizonte. Mais uma vez é necessário que se registre: a reparação dos danos é uma medida básica, necessária, urgente e inquestionável, pois, não haverá reparação das muitas vidas perdidas e nem dos sentimentos de perda, mas haverá, ao menos condições básicas estruturais para que se retome o trabalho e as ações para manutenção da humanidade roubada.

Temos ainda a estratégia de subir para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG a discussão do acordo que foca todos os pontos discutidos na primeira instância, e tudo correndo em sigilo. As pessoas atingidas por essa violência contra a vida em múltiplas dimensões, mas que ainda respiram, seguem assombrosamente com novos impactos de violência como esse tal acordo, em desacordo com a humanidade, que definirá não somente o que terão direito sobre os danos sofridos mas sobretudo a garantia da continuidade da natureza e da vida.

Para além disso, é imposto o temor sobre a continuidade do pagamento emergencial que, ao que parece, o Estado propõe a criação de um programa social, voltado para quem o Estado considerar que está em situação de vulnerabilidade. Não há pessoas com vulnerabilidade, o que há são pessoas que foram roubadas o direito de viver e a dignidade humana. Não se pode aceitar esta divisão imposta por meio de uma nova composição de quem são as pessoas atingidas, uma vez que os tais programas sociais caracterizam o que chamam comunidade de baixa renda como as pessoas mais vulneráveis, como se fossem essas as mais atingidas, querendo dividir o povo atingido pelo crime e, como predomina no ambiente do mercado, gastar o menos possível com a vida para investir no lucro.

A reparação é para todas as pessoas que foram atingidas por esse crime absurdo e violento que abrange desde a contaminação que afeta a todas aos direitos de uma sociedade equilibrada e saudável, coisa que o cenário de pós rompimento impossibilita principalmente no que tange o emocional coletivo de uma comunidade ainda sentida pela perda das 272 vidas, sendo que destas, 11 ainda não foram encontradas.

Reparação é o básico, uma medida que precisa ser imediata e alcance todas as pessoas que sofreram esse impacto de morte forçado pelo genocídio coletivo imposto em Brumadinho. A reparação tem significado na consciência, no coletivo, tanto na dimensão simbólica quanto na dimensão estrutural. Simbolicamente é assumir que houve um crime cometido pela Vale que o Estado não impediu. E que tal crime será assumido por quem cometeu, o Estado que não impediu vai garantir que seja construída judicialmente as condições para viver e o povo que sofreu os impactos de genocídio seguirá organizado e conquistando a humanidade e o direito de viver com dignidade. As atrocidades impostas pelo capitalismo, operadas pelas grandes empresas não pigmentará as pessoas atingidas e não colocará a morte acima da vida mais uma vez. São essas pessoas, todas as que foram atingidas, por esse impacto violento e devastador, que seguirão organizadas, em luta e em movimento consciente para cobrar do Estado que assuma a defesa da vida e cobrar da Vale que garanta as condições estruturais para a vida seguir, paralisando imediatamente toda a devastação da natureza que seguem fazendo e repassando as parcelas dos seus lucros absurdos para que as pessoas vivam e a natureza exista.