ARTES VISUAIS

 

 

Entrevista com a artista visual Camila Cristina

 

As grades do condomínio são para trazer proteção
Mas também trazem a dúvida se é você que tá nessa prisão

Minha alma (A paz que eu não quero). O Rappa

 A grade é um dos temas do trabalho de Agrade Camiz. Jovem artista da zona norte carioca com uma pintura que rapidamente captura o olhar, com blocos de cores vivas e compactas, linhas dinâmicas e uma composição bem resolvida, na minha opinião, isto é típico de quem tem o hábito de pintar na rua, ou grafitar, disputando a visualidade das ruas com pichações, poluição, propaganda e grades, as muitas grades que nos cercam.

Camila, o nome da artista que ativa Agrade, participou no ano passado da exposição Poética entre mulheres, no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro, que foi onde vi pela primeira vez, em um relance aquelas duas pinturas me fisgaram o olhar.; este ano a artista realizou uma individual no SESC Ramos, intitulada Habitacional, onde ela relaciona questões relacionadas à arquitetura com o tema social da moradia. Recentemente, Agrade Camiz realizou a pintura de um imenso painel na zona portuária, com a frase “O sonho do amor próprio”, parte da sua série intitulada Post it, onde ela articula o intimismo de um diário com a imensa arquitetura daqueles galpões, atravessada por questões feministas e atuais.

Pode parecer pretensiosa essa rima aqui, mas vou dizer – Camiz ainda por cima soa como Camus, o ensaísta e filósofo francês que antecipou com seu livro A Peste – que é pura resistência – o cerne da questão de 2020 que é esta “bactéria do baralho, que atrasou os trabalho” parafraseando MC Rayban. Atual. Falar das coisas que estão nas entrelinhas dos acordos hipócritas da sociedade do nosso lugar e nosso tempo, é sempre atual.

A artista usa de seu nome artístico para tensionar a linguagem sem pretender nos agradar! Explora a grafia de seu nome para nos causar o desconforto de descobrir que sim, nós reclamamos mas nos agradam todas estas grades que nos aprisionam. A grade curricular, disciplinar, talvez seja uma prisão para ela; por isto Camiz não se fixa em um meio específico e se desloca entre pintura, performance, objetos e graffitis; rua e espaço da galeria. Atual: o corpo na rua, o corpo como tema ou como o próprio trabalho. Camila traz uma visualidade que é familiar a quem vive na zona norte, as cores, o modelo típico de grades, as pontas, certas tensões e nuances que só quem sabe o suor, o tédio, o terror e a confortável e melancólica vontade de jogar tudo para o alto – só quem sabe a dor e a alegria de ser suburbano no Rio de Janeiro, é que vai entender profundamente a obra de Camila. Entretanto, tudo o que você leu até aqui são palavras que aconteceram dentro da minha cabeça, das grades do condomínio do meu olhar. Ou seja, é sempre bom ouvir primeiro a interpretação da própria artista. Segue o papo.

 

– Agrade Camiz, como e quando despertou seu interesse por arte?

– Despertar para arte mesmo foi quando eu tive contato com o hip-hop em 2009, quando comecei a frequentar rodas de rima, especialmente no CIC na Fundição Progresso, lá eu percebi que eu poderia fazer arte também, vi também que, o que meu primo fazia (pichação) era arte. Mas a primeira vez que eu entendi a possibilidade de criar foi numa escrita na escola, um conto ou um poema, não me lembro ao certo, mas recebi um prêmio pelo texto que me incentivou a escrita criativa e a leitura quando criança e adolescente. Depois mais velha, quando trabalhava pelo centro, sempre frequentei centros culturais, passava tarde visitando exposições de arte e aprendendo quase por osmose as coisas, um dia vi um cara anotando num micro caderno ele olhava as telas e anotava, vi que algumas pessoas estavam fazendo isso, e comecei a anotar num caderno também os trabalhos que eu mais curtia e anotava também o porquê.

– Como o graffiti pintou na sua vida? Quem foram suas referências no graffiti, quando começou?

– Desde criança percebo as ruas, meu primo pichava e eu o admirava por isso. Ele me ensinava a ler os nomes, me ensinou a fazer o meu nome. Com 12 anos pichei na quadra dos conjuntos meu vulgo que era “Coli”, pichava na escola, e em qualquer oportunidade que uma menina de 12 anos poderia ter pra pichar, quase nenhuma (risos), então era caderno, mesa, tudo rabiscado, sempre tive essa admiração por intervenção na rua. Em 2010, produzi com o grafiteiro Airá um multirão de graffiti na Avenida Chile, já fazia uns desenhos no caderno, e pintei a primeira vez no muro nesse dia, com o apoio da minha amiga Odaraya, que já era grafiteira na época. Minhas referências no graffiti nesse início eram essas pessoas, também o Ment e a Anarkia.

Agrade pintando. Foto acervo da artista

– Quem são xs artistas, quadrinistas, sons, filmes, filósofxs, vizinhos e figuras populares que te inspiram?

– Muita gente, o cronista J. Carlos ja me inspirou muito, o quadrinista Maurício de Sousa salvou minha infância, o som da cantora Céu já me acompanhou em muitas pinturas na rua, gostei da forma que foi feito o filme Branco sai Preto fica, dirigido por Adirley Queirós, me fez sacar muitas belezas no meu fazer artístico, foi importante. Filósofas são as da rua, inúmeras pelo caminho, e Virgínia Woolf colaborou pra virar a chave do amor próprio em Um teto todo seu. Artistas e figuras populares são vários também, pessoal tudo do agora, a galera que está fazendo o presente; na música tem meu amigo Joca que tá mandando um som bem maneiro.

Exposição coletiva Poética entre mulheres. Centro Cultural da Justiça Federal, 2019. Acervo da artista

– Sua pintura traz cores fortes, campos de cor chapados e contornos bem marcados, algo que prende o olhar em um relance, que de cara remete à experiência de pintar nas ruas. Alguma coisa na sua pintura, entretanto, me sugeriu uma relação com a pintura de Abdias do Nascimento. Chutei bem? Poderíamos ver na sua pintura uma espécie de movimento à ancestralidade?

– Uma busca a ancestralidade sim, na vida mesmo e automaticamente na minha arte; nas próprias grades a partir de seus símbolos adinkras. O Abdias eu admiro, mas não é uma referência na pintura.

Á esquerda: Cercas Brancas. “Eu que, sempre quis um lugar gramado e limpo assim verde como o mar”, 2018. Acrílica e látex sobre compensado naval. 37×26,5 | Á direita: Auto Sabotagem, Mandala e Papo Torto, 2018 – Acrílica e látex sobre compensado naval. 37×26,5. Foto: acervo da artista

– A grade, Camiz: Camila, quando entra a questão da grade, das grades suburbanas na sua pesquisa? É um desdobramento da deriva pela cidade, em busca de muros possíveis?

– Elas sempre estiveram ali, mas as grades entram em 2017 pra 2018. Elas têm uma beleza e servem para proteger, mas proteger de quem? De nós mesmos. Eu morava em Brás de pina e caminhava por ruas cheias de grades e casas baixas, a própria casa que eu morava era cercada dessas grades, quando decidi desenha-las elas apareceram no desenho como uma representação das minhas angústias e culpas femininas, maternas, daí assumi como nome logo depois.

– Agrade, Camiz: este pulo de um trabalho de pintura e da deriva urbana do graffiti para a performance: é uma necessidade de quebrar os clichês ligados a ser uma “grafiteira” – que pode ser visto pejorativamente pelos setores mais elitistas da arte contemporânea – e agradar a um circuito intelectualizado, mais voltado à performance e à videoarte e que olha torto para quem tá com as mãos e as calças sujas de tinta?

– Sou grafiteira, sou artista, sou uma pessoa criadora, seja no muro, na tela, seja o meu corpo, eu faço arte para comunicar, pra passar uma visão, pra transformar, uso a ferramenta ou o suporte que estiver ao alcance para isso, a performance, as fotos ganham espaço porque eu começo a estudar arte e passo a entender minha produção de pensamentos, videos e fotos como arte. “Agrade Camíz” é uma ironia que tem mais a ver com meu corpo de mulher nesses espaços, tanto na “intelectualidade da rua quanto na “intelectualidade de outros circuitos”. Agradar sem precisar agradar, como vocês gostam que eu me comporte? Devo agradar vcs?

Projeto (a)grade, 2019. Agrade Camiz e Victor Debeija. Foto: Victor Debeija

– A grade na cabeça, em uma imagem onde você se encontra sentada em uma Igreja. Uma imagem forte, que poderia ter sido feita em qualquer ditadura, ou sociedade sob forte pressão moral religiosa. No seu ponto de vista como a religião afeta hoje (positivamente ou negativamente) a sua geração de artistas?

– Acredito que positivamente, no sentido da subversão. Vejo trabalhos importantes com essa temática envolvendo a religião evangélica e também o candomblé.

– Que exposições mais lhe marcaram?

– Rubens Valentim: Construções afro atlânticas, no Masp em 2018, voltei pro RJ com sangue nos olhos.

– Que exposições suas ou trabalhos seus, você considera mais importantes?

– A exposição Habitacional que aconteceu esse ano de 2020 no Sesc Ramos de grande importancia pra mim produzi tudo, contei com a sensibilidade de alguns amigos, como Joca, Aleta, Gais e do Ambulante Cultural. O trabalho Namoradeira de 2019 criado para a exposição O nome que a gente dá as coisas no Galpão Bela Maré, {A}grade, a pintura: A descartabilidade das remoções…. a exposição Habitacional inteira é muito importante, foi bem corajosa, me orgulho dessa exposição. Não tenho algum preferido assim exatamente, é pq todos são essenciais pra contar a história que quero contar… Tem uma placa de vende-se (tratar direto com a proprietaria), como essas que colocamos quando queremos vender casa ou aluga-las, atrás da porta do meu ateliê que eu fiz em 2019 para habitacional, eu gosto muito desse trabalho.

Agrade Camiz. O sonho do amor próprio, mural na zona portuária do Rio de Janeiro. Vídeo: Valdir Silveira.

 

– Como vai a produção dos murais na zona portuária, dentro do projeto Rua Walls – o que você planejou fazer?

– Foi muito legal, participei do primeiro Art Rua na van, encaminhando pessoas da feira Art Rio para o Art Rua. Poder realizar o trabalho “Post-it” nessa escala, num lugar histórico nesse contexto é muito interessante e uma realização também. Tive apoio de uma boa equipe pra isso, e o resultado não poderia ter sido melhor.

– Que sonhos possíveis e utopia vc tem nesta virada da pandemia, rumo a um mundo que jamais será o mesmo?

– O SONHO DO AMOR PRÓPRIO (risos) é só isso que eu sonho mesmo, o restante é processo criativo. 

 

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