Por Subhash Gatade

A fome é uma questão de anomalias estruturais. Não pode ser ignorada por aqueles que detém as rédeas do poder.

 

A “boa notícia” é que a Índia agora ocupa a 94° posição no ranking dos 107 países do Global Hunger Report (Relatório mundial da fome) de 2020. A Índia teve um aumento significativo desde sua 102° posição no ranking do ano passado, mas permanece na categoria de países com um “sério” problema de fome. Apenas alguns países estão se saindo piores que a Índia, como a Ruanda (97° posição), Afeganistão (99°), Moçambique (103°) e Chade (107°)

A “boa notícia” não pode esconder o fato de que com uma pontuação geral de 27.2, a Índia performou pior do que seus vizinhos, Paquistão (88° posição), Bangladesh (75°), Nepal (73°) e Indonésia (70°)

De qualquer forma, a Índia passou ainda outro ano falhando ao enfrentar seu problema massivo de fome crônica. De acordo com dados oficiais, mais de 14% da população é desnutrida e a taxa de distúrbio de crescimento infantil supera 37.4%. Supõe-se que isso se encaixa na forte crença em alguns lugares, de que a Índia é um Vishwa Guru — líder mundial — e que pode corajosamente declarar-se uma superpotência no futuro.

A situação é tal que notícias de mortes por inanição não são incomuns, apesar do excesso de cereais armazenados nos depósitos da Food Corporation of India (Corporação alimentar da Índia). Milhares de toneladas desses cereais são descartados todo ano por um número de razões igualmente injustificáveis.

Há exatos três anos, Santoshi, de 11 anos, filha de Koyli Devi da vila Karimati no distrito da cidade de Simdega no estado de Jharkhand, chocou a nação: ela morreu pedindo arroz. Santoshi mal comia há aproximadamente oito dias. Por volta do mesmo período, Narayana, Venka e Subbu Maru Mukhri, três irmãos, Dalits da vila Belehittala em Gokarna, Karnataka, alegadamente tiveram suas rações de alimento negadas porque seus cartões alimentação não estavam ligados ao banco de dados do Aadhaar (programa de identificação). Foi reportado há cerca de um ano que de 42 mortes supostamente ligadas à fome, cerca de 25 foram precedidas pelos problemas relacionados ao Aadhaar.

A morte de Bhukhal Passi, que viveu na vila Karma não muito longe de Bokaro, em Jharkhand, estampou as capas dos jornais recentemente. De acordo com ativistas, Bhukhal estava desempregado, não tinha um cartão alimentação e morreu de fome. Apenas alguns dias antes, um Membro da Assembléia Legislativa (em inglês MLA) do Partido Comunista da Índia – Marxista-Lennista (CPI-ML) levantou uma questão na Assembleia de Jharkhand acerca de alegações de mortes por inanição de mais de uma dúzia de pessoas no estado pelos últimos cinco anos.

O ministro de suprimentos alimentares recusou-se a reconhecer que essas mortes em Jharkhand eram causadas por inanição e ofereceu uma multidão de estatísticas para tentar refutar a questão do MLA. Ele informou à Assembleia que a Lei de segurança alimentar de 2013 estava sendo implementada no estado desde 2015 e que mais de 99,6% da população do estado está coberta por ela. Ainda assim, as pessoas poderiam facilmente lembrar que quando os partidos atualmente no poder do estado eram da oposição algum tempo atrás, eles também encurralaram o governo do ex-ministro-chefe, Raghubar Das, por conta das “mortes por inanição”.

A situação precária das pessoas marginalizadas não pode simplesmente ser ignorada por aqueles que detém as rédeas do poder. A necessidade da hora é abordar as razões estruturais por trás do estado atual das coisas.

O crescimento da desigualdade no país agora é uma questão de preocupação para economistas e legisladores. Thomas Piketty, autor de O capital no Século XXI, um livro best-seller sobre desigualdade no mundo Ocidental, compartilhou dados em uma pesquisa coescrita com Lucas Chancel de como a parcela da riqueza dos 1% mais ricos da Índia cresceu mais do que nunca. Uma análise sistemática dos níveis de desigualdade na Índia, baseada nas estatísticas do NSSO (equivalente ao IBGE), foi feita também pelos economistas Ishan Anand e Anjana Thampi. Em seu artigo de pesquisa de 2016, eles mostraram que a concentração de riqueza teve um salto quântico desde a década de 1990.

Isso significa que a Índia está brilhando para alguns, o que indica que existe uma conexão imediata com o porquê existe mais escuridão na vida das pessoas no extremo oposto do espectro de renda. É por isso que não é surpresa que a Índia ainda está na categoria “séria” de fome.

O Economic and Political Weekly (períodico acadêmico semanal) recentemente levantou uma questão política básica sobre como a fome é tratada na Índia — não é lidada como um problema que deve ser tratado diretamente e com urgência. Em vez disso, é tratado sob o título maior de desenvolvimento econômico, e então os legisladores esperam que a riqueza se infiltre de cima para baixo e resolva o problema da fome. Lacunas no modo como a fome e nutrição são encaradas também impedem uma estimação adequada dos direitos que o Governo deveria prover. O notável periódico também levantou a tremenda questão do “aperto no orçamento alimentar” devido à redução de despesas por parte do Governo. Desse modo, a fome crescente está ligada ao aumento da desapropriação, da migração e privatização dos serviços do setor social, “que são mais caros do que as provisões do setor público”.

Como compreender a situação anômala da crise de segurança alimentar persistente e generalizada, apesar da taxa global de produção de alimentos atingir consistentemente registros mais altos que a taxa de crescimento da população? O EPW (Economic and Political Weekly) sugere uma resposta no fato de que a fome só pode ser tratada através da implementação de “políticas de redistribuição de renda, o que corresponde aos objetivos da justiça social ao invés de eficiência econômica como disseminada pelo neoliberalismo”.

Surge naturalmente uma dúvida relacionada a essa questão: por que a situação agravante da fome não está gerando nenhuma indignação na sociedade? Reconhecendo ou não, a fome e nutrição são problemas sem importância na política indiana. Um estudo dos debates do Parlamento revelou que apenas 3% das questões abordadas dizem respeito às crianças. Destes, só 5% são relacionados ao cuidado à primeira infância e desenvolvimento. Além disso, é um fato que a Índia tem uma das maiores taxas de mortalidade infantil do mundo, como Jean Dreze e Amartya Sen também apontam em seu livro publicado em 2013, Glória incerta – A Índia e suas contradições.

Em seguida, vem o silêncio das partes articuladas de nossa sociedade sobre a fome crônica e o enorme fracasso do estado para melhorar a situação. A principal razão desta conspiração silenciosa parece ser o domínio da casta da elite sobre as narrativas populares. Quer se trate da situação agravante da saúde na Índia ou da fome generalizada, em uma sociedade dominada por castas, a elite e a casta superior permanecem em grande parte indiferentes. A composição social dos famintos inclui uma maioria vindo de classes tribais, dalits ou outras classes atrasadas.

Mais de 75 anos atrás, quando Bengal testemunhou uma de suas piores crises de fome, da qual cerca de 2,1-3 milhões de pessoas morreram, membros do famoso grupo cultural de esquerda IPTA (sigla em inglês para Associação de Teatro do Povo Indiano) empreendeu uma campanha nacional para dizer ao país “Bhookha Hai Bengal: Bengal está faminto”.

Não é irônico que nenhuma campanha nacional desse tipo seja vista hoje para criar consciência sobre a fome no século XXI? Indubitavelmente, a situação não é tão grave como no passado, mas uma grande parte da Índia ainda está com fome, desnutrida e condenada a sofrer uma morte inevitável nesta era de abundância. O que é pior, parece haver bastante debate sobre quem é pobre, quão pobre, e onde existe pobreza, mas há pouquíssima ação para resolver o problema. É como Dushyant Kumar, poeta da literatura Hindi moderna, famoso por seus gazéis, escreveu: Bhookh hai toh sabr kar/ Roti nahin toh kya hua/ Aajkal Dilli mein hai/ Zer-e-behas yeh muddaa.


Traduzido do inglês por Jenifer Cristina da Paz Araújo / Revisado por Isabela Gonçalves

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