LIVRO

 

 

Delicias da solidão

Já são 95 dias de confinamento e a cabeça, depois de dar mil voltas no universo, começa a me exigir um esforço maior para manter toda a rotina sob controle. Meus horários já não são tão rígidos e, nem exigências eu faço para mim mesmo. Afrouxei a corda e estou deixando o tempo correr sem me preocupar com o relógio.

Isso tem me ajudado a não focar minha atenção nas notícias e nem mesmo na janela do quarto. Essa semana teve lua cheia e eu nem vi. Preferi as páginas dos livros, que remetiam a grandes viagens, mesmo estando sentado no sofá ao lado da cama.

Meu sono está a cada dia mais pesado e os sonhos passaram de um nível de sobressaltos para grandes fantasias. Eu não sei dizer quantas loucuras oníricas já foram vividas nesses últimos dias.

Estou relendo, Demian, pela trigésima vez. Adoro Herman Hesse e já li vários dele, mas toda vez que os bichinhos da loucura começam a brigar dentro da minha mente eu vou na gaveta do criado mudo, que está ao lado do cama, bem junto ao sofá de leitura e saco, Demian. Esse livro funciona para mim como uma espécie de pílula, que me faz retomar a consciência de como a vida é simples e bonita.

“ A ave sai do ovo. O ovo é mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o Deus se chama Abraxas”

Isso para mim já se transformou num mantra. Leio e durmo em paz.

Estou prisioneiro em um castelo num tempo muito remoto. Deus e o diabo estão sentados numa mesa, bem em frente à minha cela. Bebem vinho e brindam a dor dos homens. De repente escuto o choro e desvio meus olhos para o fundo da cela e descubro que não estou sozinho. Um rosto pálido, de sobrancelhas franzidas agoniza num pesadelo, parecendo querer me avisar de algum perigo. O corpo tremia numa febre intensa e reagia como se travasse uma luta com monstros em algum lugar muito longe dessa dimensão.

Assistia a tudo calmamente. Via Deus e o diabo tramando alguma cilada e aquela agonia, sem fim, daquele companheiro de cela. A passividade com que eu assistia tudo aquilo, me fez ser tomado por um sentimento de culpa, que bem lá no fundo, sabia que não era minha. Talvez fosse o resultado do jogo entre Deus e o Diabo , apenas para me confundir.

Saí do ponto onde eu estava e me dirigi para perto do meu companheiro de cela. Observei por alguns instantes os seus espasmos, até que decidi tocá-lo. Pus minhas mãos sobre sua cabeça e tentei mergulhar em seus pensamentos e nas emoções que aquele sonho provocava nele. Tudo parecia muito estranho, pois nenhuma sensação era possível de ser percebida. Então, mantive uma das mãos sobre a testa e pousei a outra sobre o coração.

Entre uma batida e outra havia um vazio assustador, como uma espécie de lacuna na própria vida e eu, me pus ali, naquela realidade, me transformando num guardião para que aquela falta de pulsar não se tornasse eterna.

Essa espécie de missão, aos poucos foi tomando conta dos meus pensamentos e eu fui ficando cada vez mais prisioneiro, pois além das grades reais, que me guardavam, agora, eu estava com a ambição de ser um salvador ou um guardião para aquela alma adormecida.

Seria eu, um anjo da guarda? E foi devaneando que, parado ali, acabei pegando no sono. Logo comecei a sonhar. O meu sonho estava dentro do sonho de uma outra pessoa e ali, comecei a observar o que estava provocando aquelas emoções no meu companheiro de cela.

Uma mulher e um homem se entregavam um ao outro dentro de uma fogueira. As chamas lambiam os corpos, deixando-os ainda mais quentes e suados. O macho tomava a fêmea em seus braços fortes e mergulhava sua língua dentro da cavidade úmida da fêmea. Ao ser penetrada, a mulher se transforma numa leoa e, num salto, foge dos domínios do fogo. Ao lado da pira ela começa a regurgitar e a ter ânsias de vômito. Num dado momento, todo o processo, começa a ficar mais intenso e num relance, ela vomita uma criança. Um menino, que num curto espaço de tempo se transforma no mesmo macho, que até então, ardia na fogueira com sua amante. Quando a transformação se completa, o fogo se apaga por completo e o homem inicia um balé de acasalamento. Uma dança, extremamente sensual, envolvendo a leoa, que a medida em que o seu corpo vai sendo possuído, vai se transformando numa mulher.

Algo mágico acontecendo bem ali, diante dos meus olhos incrédulos. A transmutação chega ao ápice e o casal, agora totalmente humano, descansa seus corpos um aninhado no outro. A partir daquele momento foi selado um pacto entre eles, que seguiriam pela eternidade se auto protegendo, seja que forma tivessem. Um elo indissolúvel, um casamento de almas.

Ao acordar reparei que meu companheiro de cela ainda dormia e ao me voltar para Deus e o Diabo, percebi que eles me fitavam e davam gargalhadas fazendo tilintar no ar suas taças de vinho.

O barulho das taças de estanho da dupla ecoou em meus ouvidos e eu acabei acordando do meu sono, me livrando do sonho, de Deus e do Diabo.

Fiquei um tempo mirando o teto, refletindo sobre tudo o que acabara de acontecer e nas revelações que os sonhos me trouxeram. Olhei para o lado, e o vi sorrindo para mim. Esteve ali o tempo todo, velando o meu sono e cuidando para que eu não me perdesse enquanto visitava os domínios de Morfeu.

Sem resistência me entreguei ao jogo da paixão e assim fiquei por horas a fio, até encontrar o cansaço e mergulhar no sono e outros sonhos embalar.

Procuro alguém…
Não preciso de macho e nem fêmea
não quero cultura…
pode ser trabalhador ou vagabundo
Sem deuses ou santos
Pode ser surdo, cego, mudo,
mas, sem medo de falar, ver e ouvir
Que a falta de dons e talentos
seja a chave para o encontro
Procuro alguém em cada rosto sem vontade,
que caminha apressado pelas ruas
alguém que não se furte de ouvir o barulho do vento
a música celestial dos pássaros
Que não se recuse a contemplar o belo,
mesmo que seja pelas frestas, o horizonte azul
que paira sobre as torres
Alguém que voe com as folhas, que se desprendem das árvores para se tornar adubo
alguém que saiba chorar e sorrir
e que nunca foi tocado pelo amargo da verdade ou pelos lábios quentes da vida
procuro alguém dentro de mim
que queira abrir as portas e sair.


*  A história, dividida em capítulos, não segue uma linearidade de tempo que se constrói seguindo a lógica de um relógio, mas se insere acerca de um período imensurável de uma quarentena, durante uma pandemia mundial. As crônicas são narradas na primeira pessoa, mas usam personagens e lembranças do narrador para criar um ambiente de comunicação entre vários mundos em diversos tempos.
Só o que for possível conta com as ilustrações da artista plástica, Fernanda Nóbrega, numa técnica mista de carvão e nanquim.
O conjunto de 12 capítulos será disponibilizado aos leitores de Pressenza ao longo de alguns meses. A cada 15 dias será publicado um capítulo com uma ilustração. Acesse nesse link os capítulos já publicados.