OLHARES

 

 

Resolvi escrever sobre cinema. E algo que sempre está presente nas aulas, minhas ou de qualquer educador de audiovisual, é a compreensão básica sobre os planos. Um plano cinematográfico é aquilo que está no quadro. É a posição do observador, o que é para ser visto, segundo a orientação do diretor. O diretor é responsável pela perspectiva artística do que o espectador verá. Perspectiva é aquilo que indica para onde a audiência olhará sem sair de sua poltrona.

Escolho três planos para a aula de hoje: o italiano, o americano e um outro do qual falarei mais adiante, mantendo a ordem de importância entre planos e suas denominações tão peculiares.

Importante frisar que esses são nomes de planos cinematográficos utilizados quase que exclusivamente no Brasil, mesmo que sejamos o país onde não se traduz nomes como o Plongée (mergulho, de cima para baixo, ou “picado”, em Portugal e outros países lusófonos) ou nomes de movimentos de câmera, como travelling (viagem, passeio, em movimento). Por isso mesmo, ousarei propor, ao final, como classificaria o “Plano Brasileiro”.

O Plano Italiano é o que poderíamos chamar de plano de busto. Um plano que enquadra dos peitos à cabeça da personagem. Em uma visão um tanto machista, alguns alegam, foi criado devido à beleza dos olhos e dos “decotes generosos” das divas italianas da metade do século passado, período em que o cenário do cinema italiano se reconstrói da Segunda Guerra Mundial e passa pelo chamado neorrealismo italiano, onde busca se reerguer da catástrofe e trazer para as narrativas o povo e sua naturalidade, como possibilidade artística, antes de retornar para a eterna busca do “belo” na sétima arte. Assim como aconteceu durante o início da pandemia de 2020 na Itália, desolada por cidades vazias em função do enorme número de mortes e contágio, além do necessário lockdown — não sei se traduziram por lá o termo — em uma população com faixa etária, como preferem dizer, de grupo de risco, as ruínas da guerra foram substituídas pelo vazio das ruas, mas, aos poucos, o que poderia ser a segunda queda do império romano, foi apenas uma pausa. E não podemos prever quantas pausas serão necessárias ainda. Ou se virão outras quedas.

O Plano Americano é um plano que enquadra a personagem da coxa até a cabeça. Não há decotes de vestido nas pernas que o justifiquem, mas ainda está presente o sentimento másculo ocidental, agora do cowboy — lembrando que o cowboy não era necessariamente branco, mas o cinema quis assim. Em um enquadramento único, poderíamos ter suas mãos sobre o coldre da arma e o seu olhar, nos duelos dos filmes de western, também chamados, por aqui, de Bang Bang. Este Bang não é proveniente de outro cinema popular norte-americano, o pornográfico, mas da onomatopeia dos tiros de revólver dados pelos pistoleiros, em quadrinhos de western, para se “defenderem” dos índios, que eram os donos da terra, mas que eram tratados como usurpadores ou invasores. Com a referência belicosa, atenua-se a importância histórica das armas de fogo, que foram determinantes na construção da imagem armamentista de uma país que não para de matar minorias nem durante o isolamento social, em função do Covid-19, e que segue com a repressão às manifestações que eclodiram no país, estimulando o #blacklivesmatter, com mais Bang Bangs. Está no quadro e no cenário, do cowboy branco colonizador ao soldado sem identidade racial, que cumpre os mandos do estado.

E o Plano Brasileiro? O que seria? Existe?

Ele é amplo e diverso. Ele normalmente tem algo de Plano Geral, que cobre todo o ambiente com ecos de violência em tempos de isolamento. Ele pode ser com a tela virada na vertical, pois, por vezes, são enquadramentos urgentes, feitos por cineastas amadoras e amadores, fazendo flagrantes de aglomerações para transmissão imediata. Ele pode ter algo de mergulho — desculpa — plongée, pois faz parte do cinema particular dos condomínios, que tem o infortúnio de flagrar as violências cotidianas, com ou sem farda, contra cidadãos, de bem ou não. Afinal, o que é ser de bem em um plano, não é?

E quem é o diretor de filmes tão violentos, que nunca está no set para dirigir o olhar do espectador, mas que confia em sua equipe e no acaso programado? Quem banca para que o olhar paparazzo dos dispositivos traduzam os bang bangs das maiores indústrias cinematográficas, da beleza e arte eurocêntricas dos filmes bélicos e do estímulo à lógica do poder pelas armas, no cotidiano do isolamento social?

Será que esse diretor já entendeu que o audiovisual é uma arma e está atirando contra seus espectadores, sem alvo escolhido, pois tem bastante gente para matar nesse filme?

O Plano Brasileiro, para citar um exemplo, é um Plano Geral com as cruzes pretas, de manifestações “artivistas”, nas areias do principal cenário do Rio de Janeiro, representando inúmeros mortos pelo Covid-19. Neste plano, um senhor, grupo de risco, aparece derrubando, de forma apressada e violenta, as cruzes enfileiradas, como o dançarino da cena de abertura do filme “Hable com ella”, de Pedro Almodóvar, removendo as cadeiras do caminho por onde Pina Bausch performa melancolicamente. Mas essa violência, com estética germânica/hispânica, é interrompida por um pai de vítima, em quadro, restaurando as cruzes, sem tirar sua máscara do rosto e expondo sua revolta pelo ato do mais velho. Plano de profundidade, onde um destrói e o outro reconstrói. As ruínas do império, as ruínas da guerra, a ruína moral do palco do réveillon brasileiro, coberto de cruzes e com dois antagonistas, de raças e visões diferentes, duelando pela perspectiva do espectador nos telejornais e na internet.

Um plano cinematográfico é aquilo que está no quadro. E o plano brasileiro seria isso: luta por visibilidade no invisível, no dentro e fora de quadro.


Esse texto contou com a leitura crítica de Filippo Pitanga e a revisão crítica de Tayna Arruda