CINEMA

 

 

Como abordamos no texto anterior, a década de 1990 consolidou uma verdadeira revolução tecnológica no cinema com a gradual passagem da película para o digital. Alguns autores passaram até a evitar a palavra filme, uma vez que não se trata mais do registro em película, e adotaram o termo audiovisual. Nós continuamos a usar a palavra filme, pois, em nossa opinião, o essencial na questão do cinema é a linguagem e não o suporte. Esse processo de transformação tecnológica veio acompanhado, paralelamente, de mudanças na narrativa, com muitas dessas mudanças tendo sido potencializadas, justamente, pelo avanço tecnológico. As opções para abordarmos essas mudanças são múltiplas, forçosamente teremos que fazer algumas escolhas.

Talvez, o enfoque mais expressivo no que diz respeito à questão do realismo a partir dos anos de 1990, esteja concentrado na supressão da divisão de gêneros. Se o cinema pós-moderno, dos anos de 1980, já promoveu o intercâmbio entre os gêneros cinematográficos (aventura, drama, comédia, suspense, policial, terror etc.), dos anos de 1990 em diante o que esvanece é a fronteira entre ficção e documentário, divisão que sempre foi um dos pilares da história do cinema. De maneira crescente, a demarcação entre o caráter ficcional ou documental de uma obra perde a transparência. Expressões tais como docudrama ou ficção-documental, por exemplo, passaram, cada vez mais, a fazer parte do léxico cinematográfico, apontando para um “novo realismo”. Diversas produções, apesar de heterogêneas entre si, se nutriram desse espírito. É evidente que desde os primórdios do cinema podemos citar exemplos de ficções que adotam um caráter documental (Tabu [1931] do cineasta alemão F. W. Murnau), ou de documentários que encenam determinadas situações (Nanook, o Esquimó [1922], do diretor norte-americano Robert J. Flaherty), mas o que diferencia o cinema pós-1990 dos anteriores é o recurso ao “choque” na abordagem da realidade, em detrimento da busca pela empatia. Essa postura passa a ser um denominador comum dessas produções. É como se no cinema ficcional, a ficção não fosse mais suficiente. De maneira inversa, no cinema documental, é a realidade que não dá mais conta da intensidade buscada. No fundo, o que entra em jogo é uma mudança de códigos em relação à realidade, uma vez que a composição moderna da ficção como lugar da “mentira” e do documentário como lugar da “verdade” (que, é bom ressaltar, não passa de uma construção ideológica) é abandonada. Diversos filmes e cineastas poderiam ser citados para exemplificar essa condição, vamos nos ater apenas a alguns que consideramos emblemáticos.

Um caso que vale a pena destacar é o movimento lançado pelos cineastas dinamarqueses Lars von Trier e Thomas Vinterberg, denominado Dogma 95. De maneira extremamente sucinta, podemos resumir o manifesto que embasa o movimento como uma crítica a “artificialidade dos filmes”. Nas palavras do próprio manifesto: “Para o Dogma 95 o filme não é ilusão!” O manifesto, composto por dez regras de conduta (o “voto de castidade”), inclui, entre outras propostas, a não-alienação temporal ou espacial dos filmes, o uso de câmera na mão, a proibição de utilizar som produzido separadamente das imagens, a desaprovação na utilização de truques fotográficos ou filtros etc. A cineasta dinamarquesa Lone Scherfig, primeira mulher a dirigir um filme sob as regras do Dogma 95, sintetiza a ideia do movimento: “Rodagem rápida, ligeira, o mais próximo possível da realidade. Enquanto cineastas, desembaraçamo-nos de uns quantos artifícios para chegar ao essencial: confiar no real, acreditar na vida e aceitá-la”. (Os filmes que seguissem as condutas do manifesto recebiam um “certificado”, o filme de Scherfig, Italiano para principiantes [2000], é o Dogme#12). A concepção de um cinema de ficção que utiliza vários conceitos do documentário é evidente nessa busca por um “novo realismo”. Assim como fica patente a relevância do avanço tecnológico, uma vez que a maioria das condutas impostas só é passível de aplicação a partir do desenvolvimento de novos equipamentos, tais como câmeras e gravadores portáteis, fáceis de manusear e com custo baixo (no início, a regra#9 exigia que os filmes fossem rodados em 35mm, mas os integrantes do movimento logo perceberam os benefícios agregados pelos novos equipamentos).

Julien donkey-boy (1999), de Harmony Korine

Os filmes do cineasta independente norte-americano Harmony Korine também se encaixam nos critérios desse “novo realismo”. Seus filmes, centrados em narrativas realistas urbanas, trabalham a ideia do choque através de cenas “reais demais” para uma ficção, provocando impacto pelo uso da violência, do sexo e de “excentricidades” que são apresentadas de forma crua, sem nenhuma “glamourização”. Invariavelmente, seus filmes acabam sendo alvo de polêmicas moralistas. Korine, inclusive, tem um filme “carimbado” pelo Dogma 95, Julien donkey-boy (1999), que recebeu o certificado Dogme#6. Nesse filme, Korine aborda os efeitos da esquizofrenia em uma família (tendo como base a história do seu próprio tio) e o “caráter documental” é fortemente presente. Som e imagem foram obtidos diretamente com a câmera, sem pós-produção, assim como as vozes em off e a música foram gravados no momento das filmagens.

Numa linha completamente diferente do caráter “experimental” de Korine, com uma narrativa bem mais tradicional, mas ainda dentro dos princípios desse “novo realismo”, podemos citar o filme norte-americano A Bruxa de Blair (1999), de Eduardo Sánchez e Daniel Myrick, que simula o documental a partir de uma proposta de “atordoar” o espectador apoiando-se na utilização de recursos de vídeo amador, o que acaba tendo um efeito muito intenso, uma vez que, nessa época, ocorria o boom dos vídeos domésticos, fazendo com que a identificação do filme com um relato factual fosse imediata.

Outro filme que se encaixa nessa proposta de embaralhar ficção e documentário é Guerra sem Cortes (2007), do veterano cineasta norte-americano Brian De Palma, só que, nesse caso, diferentemente de filmes como A Bruxa de Blair e seus pastiches, tais como O olho que tudo vê (2002), do cineasta galês Marc Evans, que são filmes cujo único atrativo é a opção estética, De Palma nos oferece uma instigante reflexão sobre o que é uma imagem. Mais do que denunciar a criminosa atuação do exército norte-americano no Iraque, o filme evidencia a ideia de que uma imagem (seja ela ficcional ou documental, profissional ou amadora) é sempre fruto de uma escolha, de um recorte e é totalmente dependente do uso que se faz dela. Segundo De Palma, o filme é composto por reproduções de imagens que ele encontrou na internet, reencenadas com atores.

Vários outros exemplos poderiam ser citados como, no caso do cinema documentário, o filme Ônibus 174 (2002), de José Padilha, que se utiliza de efeitos típicos da ficção (câmera lenta, trilha musical dramática etc.) para apresentar cenas reais de um sequestro (sintomaticamente, em seu longa-metragem de ficção Tropa de Elite [2007], ele utiliza o recurso inverso, filma cenas ficcionais com ar documental). Porém, é mais relevante destacar nesse momento a repercussão desencadeada por esse hibridismo.

Num certo sentido, essa questão retoma a cisão efetuada pelo conceito de pós-modernismo, com alguns autores enxergando positivamente suas consequências, enquanto outros atribuem um caráter totalmente negativo a essa nova prática. Os entusiastas desse “novo realismo” enxergam na ruptura com os cânones realistas da modernidade o germe para também romper com o simulacro do real vigente na pós-modernidade, na medida em que um dos traços do cinema contemporâneo seria evidenciar o esgotamento do simulacro, provocando um revigoramento da discussão acerca da representação do real. Já os que avaliam negativamente esse “novo realismo” indicam um paralelo entre essa nova condição e a proliferação no meio audiovisual de reality shows, de programas policiais baseados em flagrantes da “vida real” e de cenas “picantes” em imagens amadoras disponíveis na internet, para fundamentarem suas críticas. De uma maneira geral, essa nova condição é criticada como sendo um sintoma da dinâmica capitalista pós-industrial, cujo controle biopolítico opera também esteticamente, ocultando, no fundo, uma pretensão à construção de um regime de visibilidade hegemônico.

Essa é uma polêmica que ainda está em aberto e comporta várias gradações, uma vez que é muito difícil traçar uma linha totalmente reta entre os conceitos colocados em discussão e os diversos exemplos citados. A partir de uma análise molar, a aplicação de um conceito amplo como o de hibridismo na análise da produção cinematográfica contemporânea soa totalmente consistente. Porém, partindo de uma perspectiva molecular, ele se torna insuficiente para constituir uma costura entre os filmes citados. Da mesma forma, a afirmação de que a estetização da vida é uma das principais práticas do capitalismo pós-industrial, é um excelente ponto de partida para a análise dos produtos audiovisuais contemporâneos, contudo, para estabelecer uma comparação entre os diversos produtos que compõem essa rede, é preciso se debruçar sobre as especificidades de cada um.

Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010) de Apichatpong Weerasethakul

O realismo contemporâneo, todavia, não se limita a esse “novo realismo” que procura apagar a linha divisória entre ficção e documentário, outros caminhos também contribuíram para essa discussão a partir da década de 1990. Destacaremos aqui, sumariamente, duas filmografias que merecem ser olhadas com atenção: o chamado “cinema de fluxo”, expressão cunhada pelo crítico francês da Cahiers du Cinéma, Stéphane Bouquet, no início dos anos de 2000; e os filmes do cineasta húngaro Béla Tarr.

O cinema de fluxo, também chamado de cinema sensorial, é composto por um conjunto variado de filmes e diretores que, de forma bem condensada, poderíamos dizer que relativiza a narrativa em prol de uma experiência sensória, com os elementos do filme estabelecendo um verdadeiro ambiente de imersão, ao engendrar um ritmo aonde o componente primordial não é o plano, mas, justamente, o fluxo de imagens e sons. Para além do entendimento meramente racional dos eventos e das relações, a estética do fluxo propõe outra maneira de experimentar o espaço e o tempo e, consequentemente, o mundo e seus acontecimentos. O cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul, de filmes como Eternamente Sua (2002), Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), Cemitério do Esplendor (2015), e o diretor norte-americano Gus Van Sant, especialmente em Gerry (2002), Elefante (2003) e Últimos Dias (2005), surgem como dois dos principais nomes da estética do fluxo.

O que dizer, então, dos filmes do chamado “segundo ciclo” do cineasta húngaro Béla Tarr? (Tarr rejeita essa divisão de sua filmografia em dois ciclos, mas a diferença dos seus filmes a partir de 1988, com relação aos anteriores, é marcante). Maldição (1988), O Tango de Satã (1994), Harmonias Werckmeister (2000), O Homem de Londres (2007) e O Cavalo de Turim (2011), todos filmados em preto e branco, não se encaixam na definição de realistas, nem de não-realistas, exigindo uma outra categorização. Vamos, no entanto, evitar nos alongarmos agora na filmografia de Béla Tarr, pois seus filmes são dignos de uma análise mais detalhada, ficando a promessa de, num futuro próximo, dedicarmos um texto exclusivo para eles.

Portanto, certos filmes e diretores contemporâneos, apesar do risco que o apelo da excelência técnica atual traz, ao possibilitar efeitos que, por si só, são espetaculares, não sucumbem a um mero deslumbramento com as novas tecnologias e conseguem renovar a linguagem cinematográfica, reavivando uma discussão que, em determinados momentos dos anos de 1980, parecia exaurida.

Com esse texto encerramos nossa série sobre o realismo no cinema. Poderíamos continuar a conversar sobre esse tema indefinidamente, pois, desde o seu surgimento, o cinema tem na questão do realismo a sua principal indagação. Essa é uma inquirição interminável para quem se interessa por cinema. Sem dúvida, não faltará oportunidade de retomarmos esse assunto.