Uma conversa com a pesquisadora e educadora Anunciata Sawada, da Fundação Oswaldo Cruz

 

Com formação em Museologia, especialização em Artes, mestrado e doutorado em Ensino de Biociências, Anunciata Sawada vive de aprender e ensinar sobre as ricas relações entre os campos da Ciência e da Arte, no Instituto Oswaldo Cruz – IOC/Fiocruz, no Rio de Janeiro.

Conversamos com ela a fim de conhecer mais sobre o tema. Saber o que é Ciência e Arte? Que reflexões este campo do conhecimento promove atualmente? E como esse diálogo entre Ciência e Arte pode auxiliar na formação de docentes? Essas são algumas das questões que a Professora Anunciata nos ajuda a compreender.

 

– Professora, como você define Ciência e Arte?

– É a pergunta que não quer calar..(risos). Como pensar Ciência e Arte, sem criar a expectativa de “mais do mesmo” ou da obviedade?

Uma das primeiras manifestações que remetem à relação entre Arte e Ciência pode ser vista no início da constituição do pensamento grego em Pitágoras. Os denominados pitagóricos captaram pela primeira vez as matemáticas e, além de desenvolvê-las, educados por elas, acreditaram que seus princípios eram os princípios de todas as coisas.

Representação de uma rede digital. Foto Gerd Altmann/Pixabay

Como “pensar” Ciência e Arte livremente, sem condicionamentos de respostas e definições pré-determinadas? Temos sempre que ter um referencial específico? Quando falamos sobre a articulação entre ciência e arte, não trazemos em si, nenhuma novidade. A grande questão que meus parceiros de pesquisa (e eles são muitos) e eu colocamos é como colocar ciência e arte juntas respeitando suas especificidades. Como pensar saberes tão diversos entre si e tão próximos e fazer com que tenhamos um sentido? Ciência e Arte é um campo múltiplo e plural, e ele não cabe em caixinhas com a divisão do conhecimento, impedindo que os campos dialoguem sempre de forma inovadora. Jacob Bronowski (1908-1974) escreveu : “Há um fio que percorre continuamente todas as culturas humanas que conhecemos e que é feito de dois cordões. Esse fio é o da Ciência e da Arte. (…)”. Depois ele completa com o fato de que não existem culturas sem ciência e não existem culturas sem arte. Onde está uma, está a outra.

Pinturas rupestres milenares do Parque Nacional da Serra da Capivara, no estado do Piauí.

O artista é influenciado pelo seu meio, pelo seu contexto socio-econômico-cultural-científico. Leonardo Da Vinci se dizia primeiro cientista e depois artista. Fritjof Capra diz em seus livros que para Leonardo a arte é indissociável da ciência, do conhecimento e da compreensão intelectual da natureza das formas.

Não foi somente Leonardo a ligar as duas culturas, as duas formas de pensar em tempos mais antigos. Como exemplo temos Dürer em suas ilustrações para um atlas de medicina e Galileu (1564-1642) que, usando seus conhecimentos de perspectiva e geometria, seu domínio do desenho e da técnica renascentista do “chiaroscuro” (claro-escuro) que permitia a passagem da luz nos objetos, ressaltando assim seus volumes, deu condições ao cientista de Pisa desenhar uma Lua com seus relevos, inclusive determinando a altura de algumas montanhas lunares.

Crânio desenhado por Leonardo Da Vinci, 1489.

Com a grande divisão das disciplinas, e após a revolução científica moderna, com o surgimento do método científico que, baseado na lógica, na Matemática e nos princípios da razão, se exclui tudo o que é sensível, subjetivo e emotivo. Desta forma, a Arte, subjetiva, se afasta da Ciência, objetiva.

Assim, como vemos, a Ciência sempre esteve associada à Arte. Hoje em dia tomamos por base alguns teóricos nas diversas áreas que vêm em auxílio da fundamentação necessária ao campo ainda em construção, como por exemplo, Charles Percy Snow, Robert e Michèle Root-Bernstein, Gilles Deleuze, entre outros. Alguns pesquisadores têm assumido posição de protagonismo nas pesquisas, tais como Todd Siler, que se tornou o primeiro artista visual a conseguir o PhD no Massachusets Institute of Technology, na área de Estudos Interdisciplinares em Psicologia e Arte em 1986.

Siler é um artista americano multimídia, autor, educador e inventor, conhecido por sua arte e por seu trabalho em pesquisa em criatividade. Siler defende a integração das artes e das ciências e, juntamente com Root-Bernstein, é um dos criadores do Movimento ArtScience. Siler e Root-Bernstein, com mais dois pesquisadores, escreveram o Manifesto ArtScience – termo cunhado pelo próprio Siler -, em que elaboram um arrazoado de pontos que servem para balizar uma potencial definição do que seja Ciência e Arte. O Manifesto pode ser encontrado na Revista Leonardo: LEONARDO, Vol. 44, No. 3, p, 192, 2011. Eles afirmam que “A visão de ArtScience é a re-humanização de todo o conhecimento e a missão da ArtScience é a reintegração de todo o conhecimento”. O grande desafio, eu percebo, é como fazer isso? Será possível, em tempos tão difíceis que isso aconteça?

“Moises”, Frida Kahlo, 1945.

Particularmente, muitas vezes me assusta muito a ideia de ter uma única definição para o que pode ser Ciência e Arte. Isso dependerá de muitos contextos, de muitos pontos de vista, de muitas aplicabilidades diferentes e principalmente do seu próprio universo e realidade. O pesquisador deve ser capaz de, à partir de leituras e experiencias, de seu entendimento, criar sua própria definição e analisar se ela encontra eco… Meio freiriano, né? Mas acho que tem que ser assim mesmo.

– Compartilhe conosco um pouco da sua trajetória acadêmica, até iniciar o trabalho com Ciência e Arte, no Instituto Oswaldo Cruz

– Minha trajetória é longa na Fiocruz. Eu comecei ainda como estagiária de Museologia. Eu sou museóloga de formação e a minha alma mater é a UNIRIO, quando, em 1983, me formei. Fui continuando ali no Museu Institucional. Em 2010 me transferi para o Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos do Instituto Oswaldo Cruz – LITEB/IOC/Fiocruz, onde está a Linha de Pesquisa em Ciência e Arte. Assim, estive todo tempo com a Ciência e a Arte, e pude descobrir como são igualmente belas! Todo o experimentar, artístico ou científico, tem tentativas, acertos, erros e tudo tem ou deve ter significado, proporcionando uma aventura no caminho de sua compreensão!

Ciência e Arte. Para mim, não há nada mais bonito e que resume de forma tão completa e tão infinita a alma do ser humano – se é que o infinito pode ser completo. O ser humano se completa quando produz: um livro, uma obra de arte, uma máquina, uma experiência. Tudo é fruto de sua criatividade, do seu saber, do seu meio, do seu perplexo diante da existência.

É essa emoção que vivo todos os dias, quando cruzo com qualquer pesquisador nos corredores do laboratório onde trabalho, vivendo a incrível história de uma museóloga que veio parar num laboratório. Foi lendo, pesquisando, ajudando, tentando entender o máximo possível a ligação entre a Ciência e a Arte, que se construiu este trabalho. Foi da experiência como museóloga e das atividades nesta área que eu pude me inserir na pesquisa em Ciência e Arte.

Engenho de cana em Caracol, Piauí, 1912. Foto: Acervo COC/Fiocruz. Entre 1912 e 1913, Arthur Neiva e Belisário Penna foram os primeiros pesquisadores da Fiocruz a lançarem luz sobre a miséria no interior do Brasil. Viajaram por nove meses registrando seca, fome e desigualdades no interior do país. Portal Fiocruz

Mapear e coletar o acervo da Fundação Oswaldo Cruz foi um trabalho interessante e enriquecedor. Precisei, em vários momentos e com várias equipes diferentes, fazer quase uma atividade de garimpo, de arqueólogo, mergulhando em pilhas de objetos inservíveis e disponibilizados para leilões, retirando dali verdadeiros tesouros perdidos, ocultos e dando voz a eles. Cada objeto me contou um pouco sobre como havia chegado ali e que papel havia desempenhado na construção de uma história. Pessoalmente, tive a honra e o prazer de recuperar muitos deles e trazer à luz, em exposições, peças tão importantes. O acervo da Fiocruz é único, peculiar e rico.

Durante dois anos tive a experiência de cursar uma Pós-Graduação Lato Sensu fora do Brasil. Fui aluna da Universidade Municipal de Kyoto, no Japão no curso de Especialização em Ciências das Artes. O contato com uma estrutura universitária diferente da nossa, com um orientador especialista em Arte Chinesa foi fantástico! Aprendi a observar, a tirar da observação os mínimos detalhes de um processo de trabalho. O cuidado com os costumes, com os gestos, com o respeito ao próximo, que tanto caracteriza a cultura japonesa, foi uma lição inestimável.

Essa trajetória profissional foi determinante na pesquisa que vim a desenvolver para a dissertação: observar, coletar, analisar, classificar e interpretar foi o carro chefe deste trabalho.

“A grande onda de Kanagawa”, Katsushika Hokusa, entre 1830 e 1933.

– E que pontos você destaca da sua dissertação de mestrado sobre as relações entre Ciência e Arte e criatividade?

– Desde 2006, fui pega num tsunami de saber, quando me envolvi com a Pós-Graduação em Ensino de Biociências e Saúde. Primeiro como estudante, depois como auxiliar de docente naquilo que me parecia mágico: uma disciplina, dentro de uma casa de ciência, que abordava Ciência e Arte!  Justamente eu, que conhecia sobre a história da instituição, que sabia o que o cientista queria quando desenhou um castelo, em traços tão simples, acabara de achar uma conexão essencial: Ciência e Arte.

A partir de 2010, começamos a reunir todo o material que era passível de uma análise que nos levasse a montar um quadro, um perfil da produção dos alunos que haviam sido desafiados a entender os dois saberes. Obviamente, não somos pioneiros no assunto e muitos filósofos e pesquisadores já estão nesta linha de pesquisa com obras relevantes e essenciais.

Não vou aqui buscar a explicação científica para fatos: quis ajudar a entender o que é necessário saber sobre a coerência do pensamento e das informações, formando as conexões com as quais estou lidando. Minha curiosidade me levará a seguir adiante, continuando com as pesquisas nesta área.

– Na sua avaliação, de que forma cursos de Ciência e Arte gratuitos, como o ocorrido no Museu de Arte do Rio – MAR, em 2015, podem contribuir com a práxis de educadoras e educadores?

– Ao ampliar seu conhecimento diante de cada proposta do curso, o aluno que foi submetido a este processo de conjugação Arte-Ciência encontra um cenário novo e percebe que pode se conectar a novos aspectos, de forma inusitada. Segundo Ostrower (2007), “não há como a inspiração possa ocorrer desvinculada de uma elaboração já em curso, de um engajamento constante e total, embora talvez não consciente”. Conseguimos notar que ao longo de processo, eles conseguem empreender mudanças, se apropriar de conteúdos e avaliar a própria metodologia de ensino.

As “fichas de cultura” foram criadas pelo artista Francisco Brennand, nos anos 1960, como estratégia do método Paulo Freire para alfabetização. Disponível em Projeto Memoria

Estamos num processo de desenvolvimento peculiar, e encontramos experiências muito semelhantes às nossas. Em geral, as experiências e atividades em Ciência e Arte que encontramos nos mostram abordagens variadas: são disciplinas avulsas, cursos de férias, institutos de pesquisa, programas de artscience ligados a laboratórios e a centros de Arte. Enfim, todos objetivam o diálogo entre os dois saberes e o aprofundamento das pesquisas na área. Cabe ressaltar que pesquisas sobre criatividade acontecem desde o final da Segunda Guerra Mundial e que centros nos Estados Unidos, tais como o centro internacional de estudos sobre criatividade, no Buffalo State College, em Nova Iorque, possui curso de graduação e mestrado nesta área específica desde 1967, sendo o mais antigo nos Estados Unidos. Este centro de pesquisa, especificamente, observa que o maior objetivo é facilitar o reconhecimento de que o pensamento criativo é habilidade essencial para a vida.

A disciplina contribui para a criação de um quadro que permite o aprofundamento teórico e possibilita o diálogo entre os saberes respeitando a especificidade de cada campo.  Dialogar implica em ouvir e respeitar o outro, aprender com ele como diria Paulo Freire. A proposta de conciliar Arte e Ciência vai ao encontro da necessidade de buscar novos rumos na Educação e na formação profissional, a partir da criação de instrumentos teóricos e estratégias pedagógicas que facilitem e potencializem o aprendizado de ciências. A aproximação com o campo da Arte parece ser uma boa alternativa, pois ela amplia a criatividade e a percepção e enriquece o ensino das ciências.

Castelo Mourisco construído em 1918, idealizado por Oswaldo Cruz, médico e pesquisador que dá nome a instituição, onde Anunciata explora e ensina as articulações entre Ciência e Arte. CC3.0

– O Instituto Oswaldo Cruz – IOC tem previsão de novos cursos? Diante do contexto de pandemia, há algo sendo produzido para educação à distância?

– Estudamos agora a construção da disciplina Ciência e Arte, no formato educação à distância, para que todos tenham acesso ao que propomos. A disciplina presencial é ofertada todos os anos de forma gratuita às Pós-Graduações do Instituto Oswaldo e a cada dois anos, à Pós-Graduação Lato Sensu Ciência, Arte e Cultura na Saúde.

– Como as pessoas podem acompanhar as atividades promovidas pelo IOC?

– Está tudo no site da Fiocruz e do IOC. Temos um grupo do Facebook que reúne os mais diversos perfis de pesquisadores neste campo que se chama CienciArte. Todas as pessoas podem acessar e participar.

– Pela sua experiência, como Ciência e Arte podem nos auxiliar na construção de uma sociedade mais justa? Além da Educação, em que outras áreas Ciência e Arte tem contribuído?

– Lembra que eu falei para você na primeira pergunta sobre o Jacob Bronowski? Pois é. Ele disse uma coisa muito legal: não existe sociedade que tenha Ciência e não tenha Arte e uma sociedade que tenha Arte e não tenha Ciência. Muitas vezes, as sociedades em situações mais frágeis ainda recorrem à Arte para a educação de suas crianças e isso faz com que, de certa forma, as percepções cognitivas fiquem mais afloradas para a observação das coisas da natureza. Como se forma o verdadeiro espírito científico, senão através da curiosidade e da sensibilidade? É nesta ligação que a Ciência e a Arte podem colaborar com a sobrevivência do espírito humano em tempos tão difíceis.


Artigos da Professora Anunciata Sawada em coautoria
Cienciarte ou Ciência e Arte? refletindo sobre uma conexão essencial
Ciência, Arte e Cultura na Saúde