CINEMA

 

 

A primeira coisa que me veio à cabeça quando assisti aos planos iniciais de Aos Pedaços, novo filme de Ruy Guerra, foi Orson Welles. E Welles invadiu meus pensamentos de várias maneiras. Na narração inicial, com o narrador (Arnaldo Antunes) modulando as sensações do protagonista pelo discurso indireto; ou no clima onírico, muito próximo ao de um pesadelo, que me remeteram a O Processo. No minimalismo do cenário, no preto e branco altamente contrastado, nos planos fechados nos monólogos dos personagens, que associei a Macbeth. E, claro, a crise existencial de Eurico Cruz (Emilio de Mello), o personagem principal, que me trouxe à lembrança Charles Foster Kane (Cidadão Kane), enclausurado em sua mansão, com suas memórias e relíquias. Porém, quase que simultaneamente, um turbilhão de outras referências me invadiram o pensamento. As personagens femininas, Ana (Simone Spoladore) e Anna (Christiana Ubach), uma habitando uma praia tropical, a outra o deserto, me fizeram estabelecer uma conexão imediata com Elizabet e Alma, em Persona, de Ingmar Bergman, quando as identidades das mulheres parecem se fundir em uma só. E o fluxo não cessava. Os demônios de Eurico, representados por um “monstro” disforme projetado numa sombra expressionista, me fez pensar em Possessão, de Andrzej Zulawski, uma tentativa do personagem unificar sua identidade, de dar uma forma ao disforme. Foi aí que percebi que esse turbilhão de imagens que me invadia possuía, na verdade, um sinal invertido, isto é, não é o filme do Ruy que contém todas essas referências, mas se trata do contrário, é o Cinema que é integralmente habitado por Ruy. Se você se deixar levar, as referências tenderão ao infinito, pois o pensamento de Ruy rasga transversalmente o Cinema de forma intensa e criativa. No fundo, não é Ruy que se reinventa a cada filme, mas o Cinema que é reinventado em cada filme dele.

Aos Pedaços não foge a essa regra e traz um forte componente experimental nas suas escolhas. O filme narra a agonia existencial de Eurico Cruz através de uma espécie de pesadelo, ou da alucinação que precede a morte. Os cortes são, em sua maioria, efetuados em movimentos rumo a um fundo escuro, passando a sensação de um continuum, de um fluxo incessante de pensamento e angústia. Os poucos planos externos, no deserto ou na praia, têm sempre o branco estourado, mantendo, mesmo no exterior, a sensação de continuum.

A narração, logo no início, anuncia Eurico: “Ele é casado com duas mulheres que, curiosamente, têm o mesmo nome e o mesmo signo. Duas viúvas. Eurico vive com cada uma delas em casas separadas. As casas em que eles vivem são surpreendentemente iguais. Inexoravelmente iguais. Doentiamente iguais.” Eurico, como uma espécie de Howard Hughes, quer imobilizar o tempo. As duas casas iguais, as duas mulheres parecidas são uma tentativa de parar o imparável. Ao repetir cenários e personagens, Eurico busca uma experiência-limite do espaço e do tempo, tentando suprimir todas as incertezas. Não é possível domar o tempo. A segurança de habitar sempre o mesmo lugar é uma ilusão. Como habitar a inércia? No fundo sua angústia é a expressão do “ilocalizável”, o Eterno. Não por acaso, o “confidente” de Eurico é uma lagosta, animal pré-histórico que remonta ao período jurássico, ser imutável.

Eurico pressente o seu desastre e ainda tenta lutar contra o Destino, ainda busca decifrá-lo, mas a tragédia é a resposta de todos os oráculos. O seu duplo Eleno (Júlio Adrião) é sua tentativa de acerto de contas com o passado, mas as contas não fecham. A corporificação desse passado toma a forma de um pastor, um anjo negro, um coletor de almas, mas é impossível um pacto com o Diabo, assim como é impossível à reconciliação com o passado, pois o passado está sempre se atualizando nos demônios do presente. Algo indescritível, armazenado no inconsciente e que atinge os sentimentos mais íntimos para trazer à tona algumas memórias e experiências obscuras. Eurico busca intensamente alcançar a sua inalcançável imagem “verdadeira”.

A fotografia de Pablo Baião utiliza, em grande parte dos planos, a contra-luz, o que não apenas faz com que o filme se torne sombrio, mas transforma os personagens em silhuetas que, não raro, ainda perdem o foco, realçando ainda mais seu caráter etéreo, sua condição de fantasmas “em negativo”. Os personagens se movem pelo espaço como almas atormentadas que de alguma forma estão enclausuradas, sem poderem escapar. Os rostos, eventualmente, ganham máxima expressão ao se aproximarem em big close da câmera sob pontuais feixes de luz, para enfatizar determinada passagem do texto e, paralelamente, adquirem uma potência não-linguística, um pensamento cinematográfico puro. Em determinados momentos, a câmera faz um “chicote”, enquadrando certos objetos tais como um cigarro aceso, um copo com bebida, um cinzeiro cheio de guimbas, como a procurar algum real na materialidade desses elementos. A trilha musical do grupo Fracktura salienta essa sensação volátil ao alternar entre momentos em que o som exterioriza a subjetividade do ambiente, acompanhando a arrastada aflição dos personagens e outros em que ganha contornos quase sobrenaturais, conferindo à imagem estranheza e reiteração (especialmente na fantasmagórica sequência do jantar).

Desde o princípio, o filme nos afasta do domínio da representação e se torna uma experiência. O imaginário e o real se tornam indiscerníveis. Os tempos se fundem ou se trocam gerando uma sensação de atordoamento. Não se trata de uma construção simbólica específica, ou de uma periodização histórica particular, mas qualquer época deste mundo. O cenário minimalista de Cedric Aveline ao utilizar certos elementos extemporâneos, como um candelabro com velas acesas, ou telefones de discar, pontua essa suspensão temporal em que os personagens se encontram. Da mesma forma, o figurino de Kika Lopes e Rô Nascimento é predominantemente neutro, também realçando seu caráter extemporâneo (a exceção fica por conta da caracterização do pastor Eleno, que inclui em sua composição elementos do diabo cristão e de Papa Legba, uma entidade vodu que habita a encruzilhada espiritual, responsável pela comunicação entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos).

O Destino, em Ruy, é mulher. As Anas são o Destino, são elas que vão traduzir e concentrar o desassossego de Eurico em um deserto estanciado por serpentes e um mar de tubarões de olhos tristes. São elas que carregam a Verdade de Eurico, que ele, obsessivamente, acreditava ocultar. Não há mais retorno ao lar, pois qualquer lugar é lugar nenhum. Ana, num monólogo já perto do final, decreta: “Olho pra ti e te vejo envelhecer debaixo dos meus olhos. Vejo as rugas saltarem por debaixo da tua pele. Vejo teus cabelos se tornarem raros e foscos. Vejo as suas costas irem se vergando e a gordura te invadir lentamente, como um cadáver que incha. Vejo os teus gestos se tornarem lentos como se a morte já se acomodasse no teu corpo. Vejo o teu vigor te abandonar. Vejo teu sexo murchar dentro de mim, exausto. Vejo o prazer que eu te dou ao te sugar. Sanguessuga faminta!” O Destino de Eurico está selado. Como acreditar na sua própria existência se o que resta é o saltar de uma imagem mental à outra?

Em mais de uma oportunidade o cinema é mencionado ao longo do filme. No terço final, os personagens de Eurico, Ana e Anna, em diferentes momentos, quebram a quarta parede e transformam o espectador em cúmplice, como a afirmar uma imagem que vai além das aparências e que nada transcende. “Com o cinema é o mundo que se torna a sua própria imagem e não uma imagem que se torna o mundo”.

A busca da plenitude, do controle do tempo e do movimento é a pedra de toque do cinema. Aos Pedaços, no final das contas, é um filme sobre o Cinema.