Em entrevista a Pressenza o pastor Joel Zeff, da Igreja Batista Nazareth, de Salvador (BA), afirma que associação com governo federal é prejudicial aos evangélicos

O sociólogo e psicólogo francês, Émile Durkheim, dizia que a pessoa que tem fé encontra força porque tem uma razão para agir, seja em favor de sua família, da sociedade ou de si própria. A fé, nessa perspectiva, pode levar a uma busca da superação do medo, do desconforto e da insegurança.

Com a pandemia da COVID-19, as incertezas individuais e coletivas se intensificaram e quando a ciência e a razão já não conseguem dar conta dos medos da população é a religião que ganha espaço. Além da crise sanitária, enfrentamos uma crise ética e política profunda, que revela o emaranhado existente entre religião e política no Brasil.

No contexto atual, o bolsonarismo está profundamente ligado às igrejas neopentecostais, que são em grande medida responsáveis por sua eleição. Mas a fatura por apoiar o fascismo e retrocesso tem pesado na conta de todos os evangélicos. O que tem gerado pelo menos dois grandes movimentos no Brasil.

De um lado igrejas e organizações religiosas progressistas lutam coletivamente para descolar a imagem do cristão evangélico de tudo que Bolsonaro representa. De outro, algumas pessoas aderiram a um movimento popularmente chamado de “desigrejados”. Ou seja, por não concordar com a postura fascistas de seus dirigentes, individualmente as pessoas deixam de frequentar a instituição, sem deixar de se autodenominar um cristão protestante.

Para engrossar as atrocidades que o presidente da República representa, surgem figuras evangélicas como a pastora e deputada federal, Flordelis, acusada de ser a mandante do assassinato do próprio marido. Forte apoiadora de Bolsonaro, a autoproclamada religiosa tem condutas nada cristãs, como participação em orgias, esquemas de ‘rachadinhas’ e o estranho fato de ter sido mãe e sogra do próprio marido.

Diante disso tudo, como não perder a fé nas instituições religiosas? E qual o papel das igrejas neste momento da História do Brasil? Para o pastor Joel Zeff, da Igreja Batista Nazareth, de Salvador (BA), é preciso descontruir essa generalização de que toda igreja é conservadora e defensora de práticas fascistas como as do atual governo federal.

“Não é possível ser cristão e apoiar o fascismo, apoiar a ditadura. O próprio Jesus Cristo foi um homem pobre, periférico, que sempre teve ao lado dos que sofrem e por certo não foi uma pessoa branca”, afirma o pastor. Para ele, o primeiro movimento necessário é afastar a Bíblia e seus ensinamentos dessas posturas preconceituosas e excludentes.

“A Bíblia é um livro de História negra que foi lido no ocidente a partir de uma hermenêutica branca. Essa maneira como foi lido consegue apresentar um Jesus Cristo que é contrário ao próprio Jesus Cristo.” Assim, o primeiro e importante passo para seguir com a fé em meio a tantas atrocidades é separar as diversas igrejas que existem dentro da denominação da fé protestante de Bolsonaro e atrocidades.

Joel Zeff é pastor na Igreja Batista Nazareth de Salvador (BA), que tem uma história de resistência. Surgiu durante a ditadura militar criada por pastores que acreditavam e lutavam pela Democracia. A história nos trouxe hoje para um período muito semelhante àquele da fundação. Vivemos tempos sombrios e por isso conversamos com o líder religioso sobre como manter a fé durante este tempo de obscurantismo.

Igreja Batista de Nazareth, fundada na ditadura. Foto Pastor Joel Zeff, acervo pessoal

Leia abaixo a íntegra da entrevista.

 

– As igrejas evangélicas enfrentam uma crise de fé?

– Primeiro precisamos entender que não podemos falar em evangélicos no Brasil de forma genérica porque há uma diversidade grande. Existem também as igrejas que não são igrejas e sim empreendimentos comerciais, cujas lideranças não têm nenhum compromisso de fé, como Malafaia, Valdomiro e tantos outros. O governo de Bolsonaro investe muito nessas empresas, principalmente em publicidade. Assim, essa ala conservadora, intolerante e racista e ligada ao governo acaba tendo muito espaço e é colocada, nas generalizações da internet, como os evangélicos do Brasil. Há sim uma crise em curso, mas passa também por essa diversidade da igreja. Não podemos dizer que os evangélicos do Brasil apoiam Bolsonaro, não é verdade. Nossa igreja, por exemplo, surgiu no período da ditadura militar, 45 anos atrás, como resposta ao momento que o País enfrentava porque os fundadores da igreja, embora fossem muito diversos em termos de política, entendiam a importância da Democracia e a necessidade de nos contrapormos à ditadura militar. Hoje, infelizmente, o cenário é muito semelhante ao daquele período e a igreja segue a ser um espaço de muita diversidade, muitas pessoas com posicionamentos políticos diversos. Mas há uma concordância, aqui e em muitas igrejas, sobre a necessidade de nos contrapormos ao bolsonarismo, que hoje se constitui, de fato, no campo político, a prática de uma necropolítica.

– Como as igrejas que estão empenhadas no combate ao bolsonarismo podem atuar nesse sentido? E como o senhor percebe a questão do Estado Laico?

– Sim, nós do campo progressista dentro das igrejas evangélicas defendemos veementemente o Estado Laico. A igreja não vai assumir uma candidatura específica como sua, justamente porque uma das principais defesas de nossa comunidade é essa separação entre igreja e Estado, mas não podemos ser omissos diante do desrespeito aos direitos elementares das pessoas promovido por Jair Bolsonaro e seu governo. O que Bolsonaro representa nada tem a ver com o cristianismo. É o contrário deste. Bolsonaro representa o preconceito, a discriminação, a apologia à tortura, representa valores que quando pensados a partir de uma leitura radical dos evangelhos se contrapõem radicalmente à mensagem de Jesus, que era uma mensagem de acolhida com todas as pessoas e, principalmente, por aquelas que sofrem. Aliás, esse é um dos motes da Teologia da Libertação – Deus ama todas as pessoas, mas escolhe preferencialmente os pobres, o que significa que em uma situação de opressão Deus está do lado dos oprimidos, do lado dos que estão sofrendo, o que é até mesmo óbvio.

– O senhor fala em igrejas que são empreendimentos e não igrejas, como saber em que igreja confiar? Há alguns indicativos?

Essa é uma pergunta que já me fizeram algumas vezes, e eu sempre respondo que basta ver se o pastor ou a liderança religiosa em questão está enriquecendo. Se tem uma mansão, carros luxuosos, helicópteros, jatinhos, jet skis, enfim, se se preocupa em comprar objetos de luxo, pode ter certeza de que é uma liderança religiosa falsa. Porque uma pessoa que faz uso da fé de outras pessoas para enriquecimento próprio não coaduna com nenhum tipo de expressão legitima de fé. A igreja deve reafirmar os valores básicos do evangelho que são amor, justiça, misericórdia e em espaços que disseminem o ódio, a lgbtqia+fobia, formas de intolerância e destruição da vida são anti-evangelho. São posturas contrárias aos valores evangélicos e é por isso que a igreja precisa radicalmente se distanciar daqueles que usam da fé como instrumento de comércio e de enriquecimento próprio.

– Onde é possível buscar esses grupos evangélicos antifascistas?

– São vários grupos que existem hoje como a Frente dos Evangélicos Pelo Estado de Direito, os Cristãos Antifascistas. Nós aqui da Igreja Batista Nazareth, em Salvador, integramos a Aliança de Batistas do Brasil, que por sua vez é filiada ao CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, que reúne diversas igrejas como a Luterana, Anglicana, a Católica e tem sido uma importante voz denunciando casos de fascismo, racismo e violação de direitos. É preciso buscar essas redes, hoje com a internet está mais fácil.

Comunidade da Igreja Batista Nazareh, antifascista. Foto Pastor Joel Zeff, acervo pessoal

– Essa associação das igrejas com o bolsonarismo tem levado pessoas a se afastarem da igreja? Como essa inquietação surge no interior das igrejas?

– Sim, muitas pessoas buscam orientações conosco e em outros grupos de cristãos antifascistas por não quererem mais estar desse lado da história que é racista, que é intolerante, que é anticristão, enfim. É por isso que a igreja tem que se distanciar urgentemente do bolsonarismo e de tudo que ele representa, pois a história vai cobrar, como já cobrou dos cristãos que se aliaram a Hitler ou a Mussolini, enfim, aos que fizeram parte da composição dessas páginas terríveis de nossa história. No futuro as igrejas, os cristãos que ficaram ao lado desse governo terão muito do que se envergonhar. Ficaram ao lado de um governo que promove a morte, que assiste a morte de milhares de brasileiros na pandemia, sem oferecer ao menos solidariedade. No futuro esses serão contados como os traidores da fé, aqueles que preferiram os banquetes do reino às lutas por justiça e igualdade.

– Sair de uma igreja intolerante, de um desses empreendimentos da fé, para uma igreja realmente cristã, é um movimento que o senhor considera fácil para os fiéis?

– É um processo muito complicado e doloroso e por isso tem surgido um fenômeno que tem sido chamado de “os desigrejados”. São pessoas que não perderam a fé, mas não querem mais compactuar com a postura de suas igrejas ou daqueles que lideram suas comunidades. São pessoas incomodadas com o discurso violento de misoginia e racismo em suas igrejas, que já não aguentam mais ouvir que vão para o inferno por serem negras e negros, mulheres, lgbtqia+ ou de diversos outros grupos. E deixar uma igreja significa, muitas vezes, deixar seu grupo de amigos, familiares, todas as suas referências de convívio social que ali estão. Deixar uma igreja é um processo de luto porque parte de você deixa de existir quando você sai desse convívio que é intenso. Por isso surgem as chamadas Igrejas de Garagem, são reuniões informais, principalmente de jovens que querem viver a fé, mas em um processo emancipatório. Temos grupos como os CristoVersivos, do Rio de Janeiro, que é um grupo de cristãs e cristãos, de diversas igrejas e diferentes denominações e comunidades que se unem para formar um contraponto a essa concepção hegemônica de igreja e de cristianismo.

– O bolsonarismo e seus atores se valem de maneira recorrente da Bíblia para defender posturas racistas e discriminatórias. A Bíblia é um livro preconceituoso?

– A Bíblia é um livro de história negra que foi lido no ocidente a partir de uma hermenêutica branca. Essa maneira como foi lido consegue apresentar um Jesus Cristo que é contrário ao próprio Jesus Cristo. Jesus foi um homem negro, periférico, pobre e que sempre esteve ao lado dos que sofrem, sempre foi contra a violência e a favor das mulheres e de todas as minorias. Não é possível associar nada do cristianismo ao fascismo, não é possível ser cristão e apoiar Jair Bolsonaro e tudo que ele representa.

– A Igreja Batista de Nazareth tem feito lives com candidatos a vereadores da cidade de Salvador. O senhor acha que essa atitude poderia ser lida como mais uma atitude de intervenção da igreja nas eleições municipais?

– Não se trata de intervenção porque não apoiamos um ou outro candidato, o que fazemos é convidar todos os candidatos do campo progressista para conversar com a comunidade. É uma atitude para fortalecer e marcar a necessidade de afastar as igrejas evangélicas do fascismo, racismo, de todas as formas de intolerância, enfim, de tudo que esse governo atual representa.

A Igreja do Pastor Joel em ato pro Brumadinho. Foto Pastor Joel Zeff, acervo pessoal


Para saber mais:

Igreja Batista Nazareth: https://www.facebook.com/igrejabatistanazareth/
Cristoversivos: https://www.facebook.com/Cristoversivs/
Conic: https://www.facebook.com/conselhonacionaldeigrejas/
Frente Dos Evangélicos Pelo Estado De Direito: https://www.facebook.com/frentedeevangelicos/