RELATO

 

 

Por Alfredo Soares*

Guardião: aquele que se prostra na entrada e não deixa ninguém passar sem sua autorização. 

Coube a tio Jorginho guardar nossas tradições. Desde cedo ouvia Mãe Maria, a vó materna, dizer que não iria vender as terras da família, pois se tratava de uma herança pros seus filhos.

Vó Maria ou Mãe Maria era Maria da Penha. Uma negra com a altivez dos Haussás -negros muçulmanos que dominavam a matemática – sua determinação a fazia líder do seu grupo.

Enquanto não lhe faltou saúde, comandou seu clã e impôs suas decisões.

Tio Jorginho é, o zelador daquele pedaço de chão negro dos Leite Sabino. Nunca quis sair de lá nem pra passear ou morar fora. Os irmãos foram. Ele não se deixou seduzir pelas luzes da cidade. Sua alegria é receber irmãos e sobrinhos, filhos e netos naquele solo sagrado mantido por ele e Lúcia.

Da terra conhece tudo. Sabe o tempo de plantar e colher. Conhece e vigia o quinhão de cada irmão. Faz conta de cabeça com rapidez e acerto. Tange o pequeno rebanho como um pastor sem pressa de chegar.

Sua casa é nosso refúgio. Aos domingos vamos pra lá com a intenção de vê-lo e repor nossas energias. Rimos sentados na mureta que circunda a varanda que recebe o vento nordeste, refrescando  a tarde e a memória. Na cozinha, Lucia prepara algo sempre delicioso. É tudo simples e cativante. De lá saímos com algo que a terra esteja gerando no momento. Pra eles esse é o melhor presente que podemos levar. E, de fato é. Alimenta mais a alma do que o estômago. Mata a fome de afeto.

Trazemos de volta pra nossas casas o mesmo que vó Maria plantava e dava de comer aos filhos. Não tem coisa melhor. Tem horas que acho que ela e vô Norival estão ali, juntos de nós, dando risadas com as lembranças dos filhos repassadas aos netos. Reconectamos o tempo e o espaço. Repetimos velhos hábitos como se novos fossem.

Jorginho mora no nosso quilombo de resistência da divisa. No relevo mais alto. Próximo a magueira da manga mais doce. De lá consegue ver todos que se aproximam, sem se assustar.

Jorge é da capadócia, do Daomé e de São Diogo. Recebe todos com alegria sincera e nos dá a mão pra beijar. Nos abençoa.

Nossa terra está em cima da divisa de Campos e São Francisco. Ali está riscada a linha que nos costura. Jorge, o guardião, fincou sua lança naquele chão e nos faz retornar ao leito que nos gerou.  O princípio de tudo. Nosso umbigo ancestral. Como se soubesse que quem esquece de onde veio não vai a lugar algum.

Salve Jorge!


*  Jornalista, radialista, escritor. Teresopolitano radicalizado em Campos/RJ. Instagram: alfredosoares49