DANÇA

 

 

No último dia 30 de agosto tive o prazer de assistir à estreia da obra filmográfica Pro Futuro Quilombo, de Calixto Neto[1]. O filme foi exibido como parte da programação Choreographies of a Split Country[2] organizada e mediada por Nayse Lopez, integrante do evento How To Be Together? Conversations on International Exchange and Collaborations in the Performing Arts[3], uma conferência digital de três dias na qual “renomados artistas e trabalhadores da cultura de todo o mundo trocaram e compartilharam suas experiências, ideias e visões baseadas na atual situação de pandemia”, assim afirmava o site do evento.

No caso de Choreographies of a Split Country, a programação reunia a exibição do curta About Questions, Shames and Scars, de Alice Ripoll + Cia REC, à estreia de Pro Futuro Quilombo, obras comissionadas pelo projeto Brazil Highjacked (Brasil Sequestrado) em parceria com outros dois festivais[4], seguida por conversa com ambos os artistas. Iniciativa dos curadores independentes Eduardo Bonito e Isabel Ferreira, Brasil Sequestrado é um programa artístico que busca “dar visibilidade ao projeto de destruição da cultura e do pensamento contemporâneo em curso no Brasil; (…) gerar contextos de debate sobre essa situação e, ao mesmo tempo, apoiar a exibição de obras de artistas brasileiros gravemente prejudicados pela crise democrática e econômica que assola o país”, afirma o site do evento. A plataforma vale a visitação por manter disponível online a programação.

Em criação tão simples quanto contundente, Calixto performa uma espécie de filme-carta endereçado ao futuro. Sentado todo o tempo em plano-sequência frontal, lê a missiva que escrevera sem grandes arroubos de dor ou paixão, o que contrasta de modo certeiro com as graves questões abordadas. Sua presença delgada, sob sol terno embalado por leve brisa, faz frente (nos dois sentidos do termo) à densa parede de portentosos cortes de troncos de árvore empilhados ao fundo.

Não performa ali nenhuma utopia. Não é desse futuro que se trata. A postura dos braços e da coluna não segura pesada bandeira, apenas sustenta o elegante esforço de reter folhas de papel com uma mão, enquanto a outra cede levemente ao lado do corpo ou sobre as pernas. Cria-se naquela ambiência-cinema, um lugar outro no lugar; abre-se fresta temporal no espaço para que o ontem e o amanhã sejam compossíveis, uma heterotopia, portanto. Há uma certeza seca, quase austera, que não vê qualquer dicotomia de ancestralidade e contemporaneidade. “Entre esquerda e direita, nós continuamos pretos”, diz uma de suas frases.

Dentre outros temas, traz, na carta, a narrativa colonial sobre o momento do embarque na nau-tumba portuguesa das pessoas capturadas a serem futuramente escravizadas. Compelidas a girar em torno de um baobá sem olharem para trás, performavam ali um gesto compulsório de abandono do solo e da referencialidade africanos. Mesma narrativa que, por razões análogas, acabou imputando ao fascinante e imponente baobá, a pecha de “árvore do esquecimento”.

Calixto de(s)colonializa tal narrativa quando encerra seu belo contra-discurso filmográfico, único lugar de corte do então plano-sequência, caminhando em torno de portentosa árvore. A noção política de re-enactment (Lepecki, 2010)[5] aplica-se aqui, pois o intérprete-criador não somente reencena a caminhada de outrora: ele reverte o sentido do movimento, andando para trás. Aproxima-se do porvir tal como o povo andino Aymará ou os Maoris da Nova Zelândia cujas representações de passado e futuro são contrárias às nossas. Para ambas as culturas, o passado que conseguimos ver está à frente e o futuro, pela lógica oposta complementar, está atrás. Caminhando de costas, Calixto vê o futuro com olhos dorsais. É sua versão marcha à ré de resistência. É sua contra-narrativa.

Não posso furtar-me de correlacionar este acontecimento aos tantos outros que animaram minha duas primeiras colunas aqui em Pressenza, nisso que, agora, assim espero, seja a última banda de um tríptico. A primeira versava sobre as inevitáveis correlações entre a hegemonia da destreza e a suposta excepcionalidade da sinistreza com suas correspondentes nas posições de direita e esquerda políticas. A seguinte apresentava e comentava os trabalhos de Elilson e de Nuno Ramos + Teatro da Vertigem, todos andando para trás mas resistindo, em suas respectivas Massa Ré e Marcha à Ré.

Ultimamente tenho observado com curiosidade a recorrência de artistas do corpo empenhado(a)s nas obras, procedimentos, intervenções, performances etc. em andarem de marcha à ré. Não vejo nisso mera coincidência. Suponho tratar-se ali de fabulações críticas e, portanto, políticas de tempo (cronia) e lugar (topia) coetâneos. Frente à distopia (anti-utopia ou utopia negativa) que saltou da ficção para as páginas desta difícil atualidade que vivemos, tais artistas parecem querer compor heterotopias, as que inevitavelmente arrastam para si, heterocronias, como afirmava o autor do conceito, Michel Foucault (2013)[6].

Diferindo da utopia (o não-lugar/lugar-inencontrável), mas também de outras noções congêneres como eutopia (bom-lugar ou feliz-lugar); udetopia (lugar-de-nenhum-tempo); retrotopia (progresso como volta ao lugar-passado), as heterotopias apareceriam para nós como um fora-do-lugar-no-lugar, ou uma diferença de lugar no lugar, espécie de  “contraespaços” (p.20, grifo do autor). Caso esteja correta no entendimento da correlação que supõe o próprio Foucault, as inextricáveis heterocronias apareceriam, assim, como um fora-do-tempo-no-tempo, ou uma diferença de tempo no tempo, o que em português levaria a um trocadilho interessante, espécie de “contratempos”.

O que fazem essas obras, procedimentos, intervenções, performances senão instituir contratempos no tempo supostamente reinante? Diferente da noção de avanço em sua imparável fé no progresso, vigente no capitalismo de outrora, vigora hoje, na guinada autoritária das democracias contemporâneas, certo gosto pela refabulação do passado à la 1984 de George Orwell. Para compreendê-la, talvez seja útil nos determos um pouco na retrotopia aqui já mencionada.

Trata-se do preciso conceito de Zygmunt Bauman que intitula seu derradeiro livro publicado postumamente (2017)[7]. Segundo o diagnóstico, vigora no presente das nações capitalistas ocidentais certa sensação social de absoluta desilusão e temor com relação ao futuro. As utopias não fazem mais sentido uma vez que o porvir não guarda mais a promessa de um mundo melhor. Vive-se numa espécie de eterno presente, tão insuportável quanto inquietante: há mais perguntas do que respostas; excesso de problemas sem soluções à vista. O presente é complexo por demais; o futuro, excessivamente incerto. Busca-se então o tal mundo melhor não mais no futuro a ser construído, mas nas ideias e ideais de um outrora mitificado ao qual deve-se regressar para seguir avançando (retrotopia). Nacionalismos exacerbados; fechamento de fronteiras; vontade e violência acima da razão e do direito; elogio do líder de conexão mítica com seu povo; globalização como conspiração; democracia como defeito do capitalismo; e uma intrigante fixação no combate à pederastia e à sodomia (termos usados por essa gente) são lemas que encontram solo fértil neste contexto. O passado como foi, o que merece ser contado, ou seja o passado como deveria ter sido, não se tornaria essa mixórdia liberal na qual estamos metidos.

A lúcida análise de Bauman acerca de um tal delírio contumaz encontra eco nos fatos. Basta olharmos a campanha de Donald Trump na corrida presidencial de 2016 com seu slogan MAGA (Make America Great Again). Movimento análogo ao de Marine Le Pen apenas um ano depois, reclamando como programa de futuro governo, o retorno à França dos velhos tempos, livre de imigrantes e do multiculturalismo – um passado tão ficcional quanto oportuno. Mas é Vladimir Pútin quem está antes deles na vanguarda, digamos, retaguardante deste movimento, quando escolhe o ideólogo fascista Ivan Ilyin (1883-1954) como guia, arrancando-o dos escombros da história de onde nunca deveria ter saído.

Pútin vê-se enquanto predestinado das teorias contra-revolucionárias ao mal bolchevique produzidas pelo suposto filósofo nas décadas de 1920/1930 como orientação para governantes russos que chegassem ao poder depois do fim da União Soviética. A figura do redentor (spasitelnii), sim enviado por Deus, sai das páginas de Ilyin para a Rússia pós-glasnost/perestroika na figura do Vladimir contemporâneo designado a restaurar a inocência pré-moderna dos idos de 988, quando um xará seu (o herói Volodímir ou Valdemar, grafia antiga de Vladimir) converteu-se ao cristianismo e reuniu para sempre as terras da Rússia, da Bielorrússia e da Ucrânia[8]. Sim, a alucinação retrotópica não tem limites! Trágico, quando encontra o aparelho de Estado para exercer-se como tal.

Necessário dizer que isso não se resume à qualquer excentricidade russa, mas encontra correspondentes aqui no nosso país distópico-retrotópico do presente. Deixarei de comentar o vídeo publicado pelo primeiro secretário especial de Cultura do Brasil do desgoverno Bolsonaro aludindo a Goebbels, justamente pelo fato do ensejo ali contido não ter ficado no passado nem ter sido superado com a sua deposição. No cargo atualmente, o (péssimo) ator Mario Frias estrelou no último dia 3/9 o episódio-piloto da websérie Um Povo Heróico produzida pela Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom). Nele, o ator encontra a única novela capaz de protagonizar, fina flor da canastrice, da cafonice e, por que não, da calhordice nacional.

A ambientação lúgubre de interior de museu por onde o secretário perambula observando documentos da história oficial nacional estende-se ao plano americano que domina boa parte da encenação. Sua postura sentada de viés à leitura do quadro, abdômen relaxado e corpo apoiado seguramente nos braços de imponente poltrona de couro, combina com o olhar que tenta profundidade aliando-se às pausas melodramáticas de sua fala. Frias anuncia, mesmo que confusamente, as linhas gerais da série que virá. Nela, uma suposta história esquecida do Brasil precisa ser contada “de maneira simples e acessível a nossa visão”.

Calixto Neto em Samba do Crioulo Doido

O texto da Secom que acompanha a postagem do video fala por si: “O Brasil tem História. Uma História com verdadeiros líderes, respeitados intelectuais e grandes heróis nacionais. Alguns, conhecidos; muitos, ignorados. Uma História tão bela e grandiosa quanto desprezada e vilipendiada por anos de destruição da identidade nacional. (…) O Brasil tem identidade. Uma identidade nacional erigida com amor ao próximo e à pátria, com devoção, sacrifício e bondade. Com Fé, Esperança e Caridade.” Texto e vídeo preparam de modo confesso o 7 de setembro próximo, no qual o despresidente da República faria pronunciamento ao vivo afirmando a data de 1822 como marco do início da construção da identidade nacional unificada pela “miscigenação entre índios, brancos e negros” a partir da qual “religiões, crenças, comportamentos e visões [foram] assimilados e respeitados”, e “o Brasil desenvolveu o senso de tolerância. Os diferentes [tornaram-se] iguais”.

Em discurso tipicamente retrotópico, Bolsonaro arranca o mito da democracia racial de seu contexto sócio-político genuíno de nascimento (o Estado Novo) “esticando a baladeira”[9] da história para trás. Em louvor à independência (que ele lê como insubmissão), refaz também a narrativa da década de 1960 com a luta dos brasileiros contra o comunismo, homenageando a ditadura sem entretanto mencioná-la, aquela cujo “erro foi torturar e não matar”, conforme declarou em entrevista a Jovem Pan (2016) quando ainda não era presidente e, portanto, podia falar o que bem quisesse. Secom, Frias e o Messias brasileiro mais parecem estar fazendo um samba do branco doido em sua narrativa retrotópica.

Completamente up to data, políticos como Trump, Pútin e Bolsonaro protagonizam uma dramaturgia social que avança andando para trás. Pois é justamente neste lugar-tempo retrotópico que artistas como Elilson, Nuno Ramos + Teatro da Vertigem e Calixto Neto vão performar, cada qual a seu modo, uma marcha à ré. Institutem contra-narrativas à narrativa sócio-política reinante que, como tal, é tão normalizada quanto desaparecida. Provocam um deslocamento do lugar no lugar mesmo, um fora do tempo no tempo mesmo. Fabricam, heterotopias, portanto, aquelas que necessariamente arrastam consigo heterocronias. Nos contraespaços/contratempos, fazem gaguejar e tropeçar, o fluxo de realidade que se acredita insuspeito.

No caso de Calixto, que não nos iluda a sua doçura seca no filme. Ele é o mesmo artista que, em 2018, criou oh! rage, título que faz corruptela bilíngue entre a “ira” do inglês e a “orage”, “trovoada” ou “tempestade com trovões”, do francês. Para a peça, inspira-se livremente no livro da indiana Gayatri Spivak, “Pode o subalterno falar?” (2010)[10]. Mesma obra e autora do conceito othering, que descreve os processos pelos quais o discurso colonialista (dominante e estrutural) produz seus outros. Calixto afirma em entrevista: “O corpo negro vem cheio de clichês, mas meu trabalho é justamente no lugar da desconstrução desses clichês. Como se eu passasse um marca-texto embaixo dos clichês para dizer ‘olha, esses clichês existem, e eles precisam ser desfeitos’”. Por isso mesmo, pareceu ser o intérprete-criador mais adequado para protagonizar, em 2020, a remontagem do histórico solo de Luiz de Abreu, Samba do Crioulo Doido, de 2004. Na peça, Luiz/Calixto parecem performar o outramento[11] de Spivak no palco mesmo de seu processo, o palco teatral e sua quase inerente espetacularização. Compõem, assim, uma contra-narrativa da captura do corpo negro pela cultura hegemônica hetero e euronormativa. Mas isso é papo para um outro texto onde poderei deter-me minuciosamente na peça e na remontagem, à altura de sua genialidade.

A ira/trovoada de Calixto faz coro a outres negros/negras que propalam nada mais nada menos que a destruição da ordem mundial vigente tendo sido ela utópica, seja hoje distópica ou retrotópica. “Que se exploda!”, assim dizem. Ainda melhor: que seja explodida com Bolsonaro, com Trump, com Pútin, com tudo. Juntam-se à orage de Ailton Krenak que encara desafiadoramente a pessoa que o entrevista dizendo: “Nós estamos em guerra. Não sei porque você tá me olhando com essa cara tão simpática. O seu mundo e o meu mundo estão em guerra”, declaração sampleada na genial obra audio-visual Faça uma Ação Revolucionária – (AR) cuja assistência eu recomendo veementemente. Acredito tratar-se de um coletivo periférico cearense cujo programa de revolução interdita a personalização de autoria e cujo instagram fluxomarginal tem como subtítulo: “arte em legítima defesa”. Como diz(em) no título de outra obra também contundente: “Em tempos de guerra, não durma”. #ficaadica.


[1] Performer, bailarino e coreógrafo, Calixto Neto afirma gostar de pensar o campo de criação como lugar de interseção entre noções de identidade, representações do corpo (negro) e descolonização. É formado em Artes Cênicas (UFPE) e Mestre em dança pelo Centre Chorégraphique National de Montpellier (França). Integrou companhias como a Escambo e o Grupo Experimental, em Recife, posteriormente participando por sete anos da Lia Rodrigues Companhia de Danças (2007/2013) no Rio de Janeiro. Fora do país, colaborou com os coreógrafos Claudio Bernardo, Volmir Cordeiro e Gerard & Kelly, dentre outros.
[2] Coreografias de um país dividido.
[3] Como estar juntos? Conversas sobre intercâmbio internacional e colaboração em artes cênicas, conferência digital promovida por dois festivais europeus: ZTS | Zucher Teather Spektakel (Suíça) e Tanz im August | Internationales Festival Berlin (Alemanha).
[4] ZTS | Zucher Teather Spektakel (Suíça) e Tanz im August | Internationales Festival Berlin (Alemanha).
[5] LEPECKI, André. The Body as Archive: Will to Re-Enact and the Afterlives of Dances. Disponível em https://doi.org/10.1017/S0149767700001029.
[6] Foucault, Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 Edições, 2013.
[7] BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
[8] Dados presentes no livro SNYDER, Thimothy. Na contramão da liberdade: a guinada autoritária nas democracias contemporâneas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, todos fartamente documentados pelo autor.
[9] Expressão cearense para “forçar a barra”
[10] Spivak, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Belo Horizonte: UFMG, 2010
[11] Tradução do termo da autora indiana encontrada no texto MORALES, Renata S.; RAMIRO, Juliana F. Gênero, raça e outramento em A question of power.