Por Renata Souza/Ururau

Brasil: grande parte da população é formada por pessoas pretas ou miscigenadas. Arrisco a dizer que o número de pessoas pretas aumentaria, se o racismo não fosse tão cruel em nossa sociedade. Não dá para culpar os negros não identificáveis, pois ser preto no Brasil não é nem um pouco agradável, esse marcador social da diferença, a cor da pele, tem um longo histórico de descaso e violência.

Os homens negros morrem mais, vítimas das mais variadas formas de violência e têm os piores postos de emprego. As mulheres negras são as que ocupam também as piores atividades laborais, as menos remuneradas, de menor status social.

Somos as maiores vítimas da violência doméstica e as que menos casam formalmente ou têm relacionamentos estáveis (Não há obrigatoriedade das pessoas em casar, porém o casamento é uma instituição valorizado em nossa sociedade, e quem não casa, com sua identidade demarcada,  pode nos dizer muitas coisas, inclusive sobre racismo).

O modelo de relacionamento inaugurado no período colonial, serve de parâmetro para o nosso “Admirável Mundo Novo”. Freyre em sua consagrada obra  “Casa Grande e Senzala” narra o modelo de sociedade forjada no Brasil colonial e que ainda é subsídio para a estrutura social atual, o negro como o pilar do trabalho braçal. Tanto o homem quanto a mulher negra eram vistos meramente como um corpo de serviço.

A mulher negra não servia só na cozinha, a cama do senhor era uma atividade extra. O estupro era uma realidade tão cruel quanto o uso dos filhos desse crime como a renovação do estoque de mão de obra. Sendo assim, o senhor colonial montou sua própria pirâmide hierárquica e colocou a mulher negra, no que diz respeito aos relacionamentos ou uniões civis, como o elemento que não está dentro de qualquer classificação.

Freyre nos mostra um ditado popular muito comum nesse período, “A branca para casar, a mulata para fornicar e preta para trabalhar”. O ditado nos dá um parâmetro de como se consolidou os lugares sociais de determinadas mulheres na hierarquia social e afetiva.

No desenvolvimento das atividades laborais a mulher negra figurava no topo da pirâmide social da sociedade colonial. Era dela a responsabilidade  de limpar, cuidar, servir, criar e até mesmo amamentar os filhos dos senhores e senhoras escravocratas.

As relações de poder criaram a naturalização do preconceito contra as mulheres negras, (contra a população negra como um todo, mas quero fazer aqui um recorte de gênero.) a começar pelo preconceito estético. A beleza da mulher negra não é reconhecida. O cabelo da mulher negra é fonte de chacotas e a base de enriquecimento da indústria cosmética que lucra com a imposição do padrão europeu do cabelo liso, considerado o mais bonito e sinônimo de higiene, cuidado e asseio pessoal.

A supremacia branca ditou exclusivamente por muitos anos o que era belo ou não. Gerou uma padronização e insegurança na mulher negra sobre sua autoimagem. Autoimagem estilhaçada no que, hoje, chamamos Brasil.

Um projeto eurocêntrico com objetivos bem claros de dominação e trata a população negra como coisa. Mesmo com a abolição da escravidão, as marcas do período são latentes e ainda fazem vítimas fatais.

Em nome do projeto, somos especialistas em rituais verdadeiros de dor e sofrimento. Os rituais usam produtos químicos ou  instrumentos mecânicos, conhecidos respectivamente como alisantes ou a versão atualizada do pente quente: a chapinha. Dentre as várias demandas da identidade da mulher negra, o cabelo sempre teve um lugar de destaque. Sempre foi motivo de sofrimento. Ao menos, é a minha experiência como mulher negra.

Hoje, com o avançar das lutas por igualdade de condições, há uma reação daqueles e daquelas, historicamente, ocupantes de lugares privilegiados e que nunca sofreram discriminação e preconceito por cor de pele ou de gênero.

Os que nunca tiveram sua humanidade negada por conta das características físicas ou foram escravizados e humilhados por mais de 300 anos. Os que nunca foram perguntados na porta do seu novo emprego se “eram da limpeza”. (nada contra ser da limpeza, mas parece que preto só pode ser da limpeza) Os que nunca foram parados na blitz por ser preto. Os que nunca ouviram: “Ela é bonita, mas é negra”.

Somos censurados quando uma situação visivelmente racista nos acontece e sempre ouvimos: “Pega leve, você vê racismo em tudo, só foi uma brincadeira”. O filho provavelmente nunca foi seguido nos corredores, porque uma senhora viu um “neguinho”, uma criança de sete anos de uniforme, subindo correndo as escadas do prédio do seu trabalho. Você, provavelmente, nunca deixou de ser apresentado para família de sua nova namorada ou namorado, porque a família dela(e) não aceitariam o relacionamento.

Talvez você nunca tenha ouvido o seu/sua crush dizer que você é recalcada (o) quando ele(a) decide assumir publicamente um relacionamento com uma pessoa branca, depois de romper um relacionamento de meses ou até mesmo anos, as escondidas, com uma mulher ou homem negro. Talvez você nunca tenha ouvido seu paciente lhe dizer que não queria seu atendimento pelo simples fato de você ser negro, ou como costumam dizer aqui no Brasil, para não ofender, né! “Pessoa de cor”.

Talvez você seja contra as cotas para negros no vestibular e no concurso público. Talvez você nunca tenha ido para uma entrevista de emprego e a vaga é automaticamente preenchida quando ele constata que você é negro. Ou um contrato de trabalho, que foi todo feito por e-mail, tenha sido cancelado quando há o encontro presencial, mas se denunciamos, é vitimismo.

Talvez você nunca se relacionou afetivamente com pessoas negras porque cresceu ouvindo que “Preto quando não caga na entrada, caga na saída.” E ai, com tantos fatos e dados, somos acusados de identitarismo, vitimismo, mimimi, dramáticos, chatos, recalcados e até invejosos. Tanto os movimentos negros quanto os movimentos feministas negros, reivindicam o seu lugar de discurso, de historicidade, de fala.

A nossa perspectiva, nossas experiências e a nossa voz foram historicamente silenciadas e quando resolvemos não mais nos calarmos ou deixarmos o outro falar por nós as acusações vem de todos os lados.

Talvez você nunca tenha vivenciado uma situação igual as apontadas acima por dois motivos bem simples: Você é branco (a) ou você já viveu e não conseguiu identificar que estava sendo vítima do racismo à brasileira! Como disse a filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro, em seu livro “Quem tem medo do feminismo negro?” “Sim, o Brasil é racista, e o ódio contra a população negra existe desde que o primeiro navio negreiro aqui chegou.” Só por isso…

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