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Capítulo V. Jerônimo

Ainda estamos no outono e lá fora, o vento sopra manso, anunciando que em poucos dias dará lugar ao inverno. O sol brilha no meio do céu, mostrando o seu poder diante de uma humanidade completamente amedrontada. As mortes seguem firmes, se multiplicando a cada dia, aumentando o terror no meu quarto, que se finge de seguro. Fico imaginando coisas, enquanto meus dedos deslizam assombrosos pelas teclas do computador.

Penso, que poderíamos aprender um pouco mais com o sol, que nunca demonstra medo, nem nos dias em que as tempestades dominam o céu e o jogam na mais profunda escuridão. Isso sim é ser resiliente. Todos dias, nasce ao leste e distribuiu raios de luz brandos que tomam os vales, as grandes montanhas, lagos, cachoeiras e o mar. Casa-se harmoniosamente com o oceano e se difunde em azul profundo pela imensidão perdida no horizonte. Aos poucos vai se impondo, se tornando mais quente, poderoso e viril, castigando as areais nos desertos, a caatinga, os sertões, estorricando cada pedaço de terra desprovido de sombra e, assim, vai seguindo sua saga de rei dos astros, que alimenta e castiga seus súditos. À medida, em que a tarde avança vai se revelando menos combativo e arredio. Já brinca com as nuvens, se escondendo e voltando a dar o ar da graça. Mas, é quando a noite chega é que ele revela a sua verdadeira fortaleza. É na sua ausência que se torna ainda maior, pois no crepúsculo deita-se enamorado da lua e completamente anônimo a faz brilhar, seduzindo milhões de amantes mundo a fora. E dando aos poetas a inspiração para seduzir musas indecisas.

Ah, a poesia!!! Quem dera todo homem pudesse experimentar o gosto indecifrável que fica na boca ao transformar imagens, sentimentos, perfumes, dores em palavras e vê-las se acasalando e dando novos sentidos à vida – com rimas ou sem, não importa –, apenas a percepção do fluxo seguindo as artérias e desencadeando um pulsar enamorado nos corações de quem ousa amar.

Ah, mas o amor, assim como o sol, está a mil anos luz da humanidade. Pela janela escuto o barulho de tiros e bombas e ao fundo o hino brasileiro. As massas estão ganhando as ruas depois de meses de confinamento e ataques à democracia. No mundo todo há movimentos de protestos nas ruas, independente do perigo de contaminação. Esticaram demais a corda e, no Brasil e Estados Unidos, populações estão transformando os cenários vazios das ruas em áreas de combate… de resistência ao fascismo, que volta a atacar democracias em diversos pontos do planeta.

Como diria meu pai – “ o buraco é mais embaixo”–, e, realmente, tenho que concordar com ele, as estruturas do sistema estão ameaçadas e uma nova Ordem Mundial está a caminho. Muitos pensam que é mais uma teoria da conspiração, mas quando analisamos as entrelinhas dos fatos é possível perceber que o poder central, que dita as normas de mercado, colapsou e ainda não inventaram nenhuma fórmula para substituí-lo e portanto, a ordem é continuar esticando a corda ao máximo possível, ganhando tempo até que seja implantado o novo sistema, que garanta a manutenção dos privilégios aos grupos dominantes – mesmo que para isso, milhões de vidas sejam sacrificadas.

O assassinato de um homem negro nos Estados Unidos acendeu o estopim de uma bomba que o próprio sistema queria. Em meio a uma pandemia, milhões de pessoas aglomeradas em protesto. Imagina o resultado disso no sistema de saúde americano, que já contabilizou centenas de milhares de mortes, estando em quarentena. E o mesmo acontece no Brasil, com a resposta da população, aos ataques à democracia, capitaneados pelo governo. O fascismo é obscuro na sua essência e nas estratégias e táticas para alcançar seus objetivos.

Eu me pergunto constantemente, quais as escolhas que a sociedade pode ter, e não se deixar levar pelo ímpeto, pela ira e morder a isca? Escolhas?

Homens pretos continuam e vão continuar sendo assassinados nas ruas, assim como índios vão ser exterminados, pois a lógica da sociedade de mercado é oferecer aos indivíduos a ilusão do poder de decisão, de escolha, mas isso tudo é estratégia para dividir as massas e continuar no controle.

Viram o meu corpo na rua
cansado de tanta batalha
Viagens espremido no trem
sonambulo de toda estação

Sempre com olhos cerrados
focados nos letreiros que passam
promessas de um mundo de fadas
a quem conseguir alcançar

São só fantasias, meninos
a vida é feita de cacos
mulheres cinzas de tintas
homens enforcados com laços

Manhã chegou novamente
é banho, café e marmita
o mesmo trem que espreme
o mesmo povo sem viço.

E devaneio em cima de devaneio, eu vou matando o tempo, enquanto o vírus trabalha lá fora, ceifando vidas e revelando a falta de empatia de nossos homens públicos que elegeram o mercado como o essencial e roubam de toda a sociedade o direito de se manter viva. Roubam, corrompem, lucram… a pandemia virou um grande negócio. E o lucro é a sua alma, a grande tara dos poderosos.

Já não estou mais em meu quarto. O pensamento me jogou num outro tempo. Estou na beira de um rio com vários amigos a festejar. Juntamos alguns tijolos, uma grelha e carvão e improvisamos uma festa. Carne e cerveja. Todos ali só queriam se divertir.

Enquanto a carne assava, os copos se esvaziavam. Num dado momento comecei a escutar sons de atabaques, mas não conseguia identificar de onde vinha a música.

Perguntei aos amigos sobre o som e eles riram e tiraramm sarro da minha cara, pois ninguém ouvia nada, só mesmo os nossos ruídos e risos, além do barulho do rio.

O som não saía dos meus ouvidos. E aquilo começou a me incomodar. Até que o marido de uma amiga veio até a mim e falou : – Eles estão lhe chamando. Vá atende-los.

Tinha acabado de conhecer esse homem, que apesar de ser marido de uma grande amiga, nós nunca havíamos sido apresentados. Olhei para ele desconfiado e perguntei: – Quem está me chamando?

Ele riu e me disse para segui-lo. Seu nome era Jerônimo e devia ter uns dois metros de altura.

Nos afastamos do grupo de amigos e fui encaminhado por ele para o meio da mata. Atravessamos uma ponte de madeira e pegamos uma pequena trilha. Avançamos mata a dentro até que, numa pequena clareira, ele parou e me apontou um tronco de uma árvore que havia sido cortada recentemente. Me mandou sentar e esperar.

– Daqui a pouco tudo ficará mais claro para você. Disse isso e foi embora me deixando sozinho no meio da mata.

O sol estava se pondo e um vento frio bateu em meu corpo me arrepiando inteiro. Meus olhos vislumbraram várias formas na silhueta das árvores. Todas se moviam, tinham boca, braços, pernas e bailavam num ritmo manso e cheio de graça.

A alquimia estava ali… o rio, a mata, o céu azul, nuvens que passavam apressadas, pássaros que me observavam de longe, e as gargalhadas distantes dos meus amigos.

Fechei meus olhos e deixei meu corpo escorregar para o chão e me mantive em profundo silêncio em conexão com tudo que estava em minha volta.

Devo ter permanecido naquele lugar por mais de três horas, pois quando abri os olhos, já era noite e o céu estava tomado de estrelas e uma lua nova, que mais parecia um fio de prata enfeitando o cosmo, pairava bem acima da minha cabeça.

Me levantei e fui aos poucos deixando os olhos absorverem as novas imagens que se faziam desenhar sem a luz do sol. As silhuetas das árvores agora, pareciam pessoas, ancestrais e sussurravam sons para mim. Os atabaques soaram com mais força e vibração… pareciam que estavam dentro da minha cabeça.

Levei um susto quando uma mão tocou meus ombros firmemente. Me virei e dei de cara com Jerônimo. Mas nesse momento, ele estava completamente diferente. Suas roupas eram mínimas e em sua cabeça um cocar cheio de penas com diversas cores emolduravam aquele homem de semblantes fortes e pele vermelha.

Seus olhos eram cheios de mansidão. Me tomou em seus braços e deu um sopro em minha testa e me disse: –Vá!! Seus amigos lhe esperam.

Fiz uma reverencia e caminhei pela mata tentando achar o caminho de volta. Segui a luz que meus amigos acenderam na beira do rio. Atravessei a ponte e fui me direcionando para perto do fogo, pois meu corpo estava gelado.

Enquanto aquecia em silencio senti alguém se aproximar. Era jerônimo novamente. Me abraçou e disse com voz carinhosa: – Que bom que você voltou!

Meus amigos nem perceberam minha ausência. Só ele, Jerônimo, desde o primeiro momento, acompanhou minha viagem ao mundo de Pena Branca.

Eu tava no meio da mata
Escutei atabaque tocar
Era Oxosse convidando os caboclos para dançar

Mãe Oxum, toda faceira
Se vestiu de cachoeira, para todos alegrar.

Irocô, a mais frondosa
Não parou de balançar
Ossaim, todo de verde
Batucava sem parar

Lá na moita de bambu
Se escondia Omulu,
Disfarçando a vontade de
Dançar e festejar

Preto veio lá no toco
Não quis se misturar
Mas nos olhos, a alegria
Não parava de brotar

Foi assim, a noite toda,
A lua nova, veio inteira
Com Ogum a patrulhar

Seu Xangô lá na pedreira
Mandou o fogo iluminar
Os pajés com seus cachimbos
Não pararam de cantar

Os Erês tão inocentes, misturavam o aluá
Até eu entrei na roda,
Meu caboclo fui chamar
Me chegou o boiadeiro, o senhor do meu Gongá

Levantei minha bandeira
Demarquei o meu lugar
Quem quiser entrar na roda
Tem que ter balancear.


*  A história, dividida em capítulos, não segue uma linearidade de tempo que se constrói seguindo a lógica de um relógio, mas se insere acerca de um período imensurável de uma quarentena, durante uma pandemia mundial. As crônicas são narradas na primeira pessoa, mas usam personagens e lembranças do narrador para criar um ambiente de comunicação entre vários mundos em diversos tempos.
Só o que for possível conta com as ilustrações da artista plástica, Fernanda Nóbrega, numa técnica mista de carvão e nanquim.
O conjunto de 12 capítulos será disponibilizado aos leitores de Pressenza ao longo de alguns meses. A cada 15 dias será publicado um capítulo com uma ilustração. Acesse nesse link os capítulos já publicados.