LIVRO

 

 

Capitulo IV. O caminho dos Anjos

Mais um dia. Já perdi a conta de quanto tempo estou confinado nesse apartamento. Para ser sincero, nem sei que dia do mês é hoje, nem se é sábado, domingo, segunda  ou outra feira qualquer. A única coisa que vejo é a janela do meu quarto escancarada e a cortina esvoaçada bailando em minha frente. Levanto-me da cama carregando quilos e mais quilos de preguiça, ansiedade e medo. Me debruço no parapeito e observo a chuva que cai lentamente e molha a cúpula do cinema, que dá de fundos para o apartamento.

Ah, o cinema – que saudades de uma aglomeração de cinéfilos silenciosos que se encontram na penumbra para viver outras vidas. O barulho das embalagens das balas, do chocolate, o croc da pipoca e as tosses pigarreando educadamente. O mergulho na fantasia, o choro, o riso, o fim , as letras subindo devagar na grande tela e os expectadores levantando um a um, enquanto eu me afundo na cadeira para prolongar, aquele mundo que acabei de ver , ainda dentro de mim.

Nesse momento de confinamento, a fantasia é ir do quarto para sala, da sala para cozinha, uma passada na varanda, o cuidado com as plantas que já assinalam o outono nas folhas amareladas e caídas no vaso.

Tudo parece um pesadelo. As notícias que chegam pelas telas da televisão, do celular acirram ainda mais a vontade de voltar para a cama, aproveitar o frio e me embolar nos cobertores e dormir. Dormir para sonhar e abrir as portas, ganhar a rua, viajar…

Estou em frente ao museu da República, no bairro do Catete. Já passa da meia noite e o carro que viria me buscar para o plantão de fim de semana na rádio, ainda não chegou. Tento falar com o motorista, mas o telefone chama e ninguém atende. Sento-me no gelo baiano, acendo um cigarro e começo a viajar na fumaça. Ainda tenho tempo, pois só preciso começar a produzir o noticiário a partir das duas da manhã. Observo o entorno e vejo um bar aberto na esquina, alguns garotos do outro lado da rua e umas poucas pessoas no ponto de ônibus.

Ela chegou como na fumaça do cigarro e, de pronto me pediu para acender sua cigarrilha. Me fitava nos olhos e começou a conversar. Era bonita, uma cor morena e a boca vermelha marcada de batom. Os olhos também estavam bem delineados de pintura e exalava um perfume doce e um leve hálito de álcool, parecia  champanhe.

Passou sua mão na minha e me pediu para ler o meu destino. De pronto recusei, pois estava com pouco tempo e a qualquer momento meu motorista chegaria e eu teria que ir embora sem conhecer o final da história. Disse isso rindo. Ela me olhou com uma seriedade, quase serena, riu para mim e disse que meu motorista não iria chegar tão cedo, pois o carro havia quebrado.

Pegou minhas mãos, exalou uma baforada do seu hálito de champanhe sobre elas  e começou a sorrir. Olhava -me com um certo carinho e balançava a cabeça como que não concordando com o que via ou lia em minhas mãos.

Um homem da tatuagem, um telefone vermelho, um encontro com Gorbachov e o contato com o anticristo”. Tudo isso, assim, na lata. O meu destino pelas minhas mãos ou pela boca daquela mulher, prometia muitas emoções.

O tempo passou e acabei cruzando com vários homens de tatuagens, comprei um telefone vermelho, não encontrei Gorbachov ainda, e já fiz contato com o anticristo de vários seres humanos, inclusive com o meu.

Meu motorista chegou e eu me despedi, deixando um cigarro, e segui para a redação. Nesse dia, acabei dobrando o turno de trabalho e anunciei a morte de Ayrton Senna, ainda na pista do Grande Premio de San Marino, depois de um choque violento na curva do Tamburello.

Saí da redação por volta de uma hora da tarde e segui para casa. Passei em frente ao Museu da República e lá estava ela, a dama da noite, fumando o seu cigarro e lendo a mão de outro viajante. Senti vontade de me aproximar para ouvir o que ela dizia, mas fiquei com medo de descobrir que aquela mão continha os mesmos segredos da minha, segui meu caminho e fui para casa dormir.

Não sei nem porquê esse pensamento me veio em meio a essa pandemia. Essa lembrança tinha sumido por completo da minha mente, mas essa noite sonhei com essa moça. No sonho, eu caminhava por uma estrada cheia de árvores e ao longe avistava várias casas num branco iluminado pelo sol. Quanto mais eu caminhava, mas deslumbrante ficava o cenário, até que comecei a ver vários anjos que me cumprimentavam com os olhos e me incentivavam a continuar subindo aquele caminho. A paisagem ia se modificando e várias pedras tomavam o lugar das árvores e lá estava ela, sentada à beira de uma caverna. Os anjos estavam todos nus e com asas alvas balançando ao vento. Todos com sexo ereto me chamando para continuar a subir. A moça, no entanto, estava à beira da caverna e chorava copiosamente. Parei diante dela e ofereci meu ombro. Ela me abraçou e me convidou a entrar. Fiquei em dúvida. Os anjos gritaram para mim não parar, mas as lágrimas daquela mulher, que parecia sofrer em demasiado, me cativou e acabei entrando na gruta onde ela vivia.

Tudo era muito opaco, mas, do fundo da caverna, uma luz intensa me chamou a atenção e fui me dirigindo até ela. A luz refletia a água que caía abundantemente, formando um rio que seguia na direção oposta. Tirei minha roupa e mergulhei naquele leito. A mulher se despiu e entrou na água faceiramente e nadou em minha direção. Todos os anjos já estavam dentro da caverna e me observavam e davam sinais para que eu saísse da água. A mulher me abraçou e, agora, sorrindo me ofereceu seu corpo e me atraiu para o fundo do rio.

Já estava a possuindo, quando vários anjos e seus sexos eretos, mergulharam na água, fazendo um verdadeiro balé de bolhas e ondas. Se juntaram ao meu redor e puxaram meu corpo e me lançaram à superfície. Assustado, olhei para o meu corpo e vi a ereção do meu sexo e asas brancas em minhas costas. Voei em direção ao teto da caverna e vi a mulher chorando e os anjos a deflorando. Chorei. Acordei de súbito e senti as lágrimas me fugindo dos olhos.

A natureza grita
no assovio do tempo,
homens, mulheres e crianças
fingem não escutar

A natureza clama
no balanço das folhas
homens, mulheres e crianças
fingem não enxergar

A natureza briga
cobras engolem pássaros
homens, mulheres e crianças
teimam em copiar

A natureza vive
nas ondas que molham as pedras
nas sementes levadas ao vento
na terra que nos consome
no jogo eterno de deus
no riso frouxo dos bêbados
na quilha das embarcações

E a gente segue assim…desbravando


*  A história, dividida em capítulos, não segue uma linearidade de tempo que se constrói seguindo a lógica de um relógio, mas se insere acerca de um período imensurável de uma quarentena, durante uma pandemia mundial. As crônicas são narradas na primeira pessoa, mas usam personagens e lembranças do narrador para criar um ambiente de comunicação entre vários mundos em diversos tempos.
Só o que for possível conta com as ilustrações da artista plástica, Fernanda Nóbrega, numa técnica mista de carvão e nanquim.
O conjunto de 12 capítulos será disponibilizado aos leitores de Pressenza ao longo de alguns meses. A cada 15 dias será publicado um capítulo com uma ilustração. Acesse nesse link os capítulos já publicados.