OLHARES

 

 

Palimpsesto
pa.limp.ses.to
pɐlĩˈpseʃtu
nome masculino
1. papiro ou pergaminho que contém vestígios de um texto manuscrito anterior, que foi raspado ou apagado para permitir a reutilização do material e a posterior sobreposição de um novo escrito.
(Fonte: Infopedia)

 

Na minha adolescência minha irmã Izabela sempre me contou sobre uma prova no Colégio Pedro II em que ela pegou ranço desta palavra porque ela não sabia do que se tratava e a questão que tinha o palimpsesto comprometeu sua nota de alguma maneira. Ao contar essa história ela me explicou o que significava a palavra. Eu viajei com essa informação de algo anterior ao papel que, na falta de material se reaproveitava e que a cada nova escrita se desgastava a superfície do texto ali anteriormente presente, perdendo-se a memória do que estava escrito antes.

Imagino que em se tratando de escola e busca por educação pelos status que o currículo deveria oferecer a todo cidadão que o almeja, o papel do “papel” seja fundamental pelo que se escreve nele. O status inclusive para jovens pobres que almejam algo mais do que o destino certo dos não pobres. Fazer a última escrita definitiva nesse Palimpsesto e validá-lo como sua memória e existência na história.

Durante a campanha dos grandes eventos na “cidade maravilhosa”, me recordo da ampla oferta de vagas de emprego para jovens atuarem na Copa do Mundo e nas Olimpíadas. Os dois eventos foram palco dos bastidores das piores transformações sociopolíticas brasileiras, uma luta travada nas ruas e nos palanques que nos afeta até este momento, mas sem esperanças de acabar tão cedo.

Após o último turista deste calendário esportivo embarcar de volta para casa, voltamos paulatinamente duas décadas ao tempo em que decisões não contavam com fairplay do oponente, num jogo em que ser o oponente não é vantagem, pois são dois polos de onde não deveria haver briga. Mas há uma boa parcela da população alheia a essa luta, que sonha vagamente com uma vaga nesse lugar. Fazer parte dos momentos de decisão é escrever sua existência na história.

A disputa de vagas nas assembleias do poder nos últimos anos foi acirrada como sempre, mas com ferramentas de comunicação possantes, como nunca se vira antes.

Enquanto na última década aumentou a visibilidade de placas de “vendo” nas janelas, mais do que as bandeiras do país ou times de futebol, as vagas do empregador informal se tornaram números a serem ostentados nos relatórios de governo. Daí penso que sempre a diferença entre a formalidade e a informalidade foi o tal do papel. E uma população que não tem acesso a pagamentos de ajuda do governo, ou socorro na saúde por não ter certidão de nascimento, nem é informal, não existe para o Estado.

Quando as lutas eram outras, com outros países, e em nossas fronteiras, se prometia aos escravizados e aos seus “donos” um papel para cada um para ir ao front. Aos escravos se prometia a alforria, liberdade do cativeiro em forma de carta. Aos senhores das fazendas, muitos para escapar de se tornar um “Voluntário da Pátria” pelo Exército ou Guarda Nacional, se ofereciam patentes que podiam chegar a tenente-coronel ou coronel, a partir de suas posses, em especial lotes de escravos, que eram “oferecidos” à nação. O “coroné” é um quase xará do vírus que nos assombra, e que até hoje nomeia os latifundiários. Aos voluntários da pátria restou até hoje o anonimato, em relação ao volume de pessoas pretas que foram para as frentes de batalha, forçados pela promessa de um papel, e que jamais voltaram. Quando voltaram, mesmo conseguindo o “tal papel”, não conseguiram condições com “essa tal liberdade” conquistada.

Desde pequeno, enquanto homem preto de zona sul, sei o meu papel, e o quanto sempre foi fundamental tê-lo no bolso. Nunca saí para comprar pão na esquina sem documentos. Como a “lei da vadiagem” sempre permaneceu como uma prática para detenção de pessoas pretas, mesmo que não tenham a ginga da capoeira ou a prática do carteado, os documentos no bolso me foram ensinados como um “redutor de danos”, ou ao menos, no meu entendimento, uma forma de identificação para “o caso de avisar à família sobre algo”.

Os papéis mudam dependendo da vaga que se procura, mas há vagas que o poder já definiu para as pessoas. Tudo o que foi escrito até agora neste texto é para entender qual a qualidade do papel que buscamos, para escapar a este papel preconcebido. O currículo por exemplo, seria a qualidade de documento que poderia me tirar desse lugar, mas o cidadão preto com título de mestre, para ir comprar o pão, precisa “no mínimo” do RG e do não estranhamento dos olhares sobre a sua máscara de proteção. O autor pode parecer neurótico, mas a relação entre papéis e vagas não é tão vago ou superficial. A “carta magna brasileira” deveria ser o documento base que me daria o respaldo para não precisar “dar carteirada” para sair de casa e viver “como um cidadão”.

O isolamento social vem mudando a textura do papel da desigualdade social. Talvez por ser de classe média, apesar do corpo doutrinado à constante identificação, o meu endereço me causa um nível de stress menor do que os mais jovens. Esses jovens, com possibilidades de conquistas de papéis qualificados para guardar no bolso, e disputar melhores vagas do que disputei em tempos difíceis, mas cujos CEPs os distanciam do sucesso. É um caminho de volta para a tão sonhada liberdade muito maior que a dos voluntários da pátria, mesmo que tenham transporte público e estejam no centro dos acontecimentos. Para estes jovens o sonho é certo, a esperança existe, mas o papel do Estado é definir quem vai cumprir os principais papéis na sociedade. Século XX e “os coroné” ocupam vagas no poder, ocupam vagas nas ruas, ocupam os melhores cargos, ocupam as fardas, como antes. Não há vagas nas maiores patentes para estes jovens, mas há nos postos que terão que lidar com seus iguais como oponentes em lutas. Um combate sem motivo aparente. E quando olhamos o “serviço” e o “público-alvo”, para o “coroné”, tanto faz estar com o papel no bolso ou não. Até porque quem atira, raramente tem papel no bolso, ou qualquer identificação.

Mesmo sem sair de casa para comprar pão, ou para não se expor ao vírus, a doença chamada racismo qualifica o papel do invasor e cancela o CPF de um jovem. Essa doença mata mais por ano do que o Corona Vírus. A ordem do Coroné, como afirmou o pai de uma recente vítima, mata toda uma família, em sua composição harmoniosa, e no sonho coletivo manifestado na criança. Cancelar o CPF, essa gíria genocida tão exaltada por uma parcela da população, vem sendo o novo palimpsesto.

Há vagas no céu para os anjos que não se infectaram, com certeza. Assim como do céu os drones dos telejornais apresentam o espetáculo mórbido das covas rasas abertas, de novos cemitérios e “contêineres frigoríficos” inaugurados com mais presteza que os hospitais de campanha.

A pergunta que fica é: com tanta oferta dessas vagas no momento, vamos aceitar essa informalidade para preenchê-las?

“Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer.” (Conceição Evaristo)


Esse texto contou com a contribuição na revisão crítica de Tayná Arruda