ARTE EDUCAÇÃO

 

 

Por Bia Petrus*

Ao longo dos últimos cinco anos pesquiso e atuo em projetos que se articulam entre o artístico, o político e o educativo. Observo as mais diversas experiências, mas com especial interesse naquelas que têm em comum o ato de transbordar os limites físicos dos espaços onde surgem e se dirigirem às ruas da cidade. Por isso começo apresentando Veríssimo Junior, “um cara que resolveu pular o muro da escola em 2003”, como ele mesmo nos contou. Professor de teatro da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, ele diz que por pressão dos alunos de artes cênicas, que queriam mais quando a aula acabava, estendeu por sua conta a carga horária e levou a experiência do teatro para fora da escola. “Assim nasceu o Teatro da Laje, que consiste justamente em fazer a disputa simbólica, a disputa das representações, a disputa das narrativas sobre o conjunto de favelas da Penha e sobre a Vila Cruzeiro”. Veríssimo trabalhou dezoito anos na Vila Cruzeiro, favela localizada no bairro da Penha, periferia da cidade do Rio de Janeiro. Ele descreve que durante esse tempo assistiu a uma mudança muito visível dos alunos, “que aos poucos passaram de camelôs ou ‘burro-sem-rabo’ a estudantes da UERJ” – primeira universidade do Brasil a criar um sistema de cotas para o vestibular, em meados dos anos 2000.

É desse tempo também que se percebe outra importante mudança no que se refere à produção de arte e cultura nas favelas, pois até então os projetos artísticos das comunidades tinham que se disfarçar de projeto social para encontrar espaço nos financiamentos. De lá para cá, muitos grupos com padrões estéticos oriundos das favelas emergiram e assim um teatro vivo voltou à cena da cidade. Dramaturgias nascidas nos territórios das comunidades são, segundo ele, a representação desejada e, com orgulho, conseguem apoio para “projetos de arte” que não precisam mais se apresentar com caráter assistencialista, reparador ou disciplinador, mas simplesmente artísticos. Veríssimo nos apresentou o projeto:

“O Teatro da Laje é um grupo de teatro e uma escola de teatro. A comunidade se orgulha de ver, em forma de arte, quanto tem de drama, de tragédia e de potência na Vila Cruzeiro. Tirar a Vila Cruzeiro apenas das páginas de polícia e colocar também nas páginas culturais era um dos desafios.”

Veríssimo, professor e diretor do grupo Teatro da Laje.

O Teatro da Laje era um dos muitos grupos nascidos dentro de escolas da rede municipal sob direção de um professor-diretor. Conheci Veríssimo quando, à convite do artista Cadu, fui uma das colaboradoras no desenvolvimento do MÍNIMO, material que criamos durante a RASP (Residência Artística Setor Público que proporciona a imersão de artistas visuais em órgãos públicos brasileiros).

Experiência com grupo de professores realizada durante a RASP.

O MÍNIMO é um conjunto de objetos/dispositivos criados para estimular o surgimento de dramaturgias a partir de sua livre manipulação, que detém um aspecto aberto em sua concepção, podendo ser modificado livremente. Foi criado com o intuito de promover interação em diversos níveis e escalas de contato: nós e professore(a)s; professore(a)s e professore(a)s; professore(a)s e aluno(a)s. O(a)s professore(a)s – das áreas de artes de toda a rede municipal de ensino – se inscreviam voluntariamente para experiências com o artista residente, a partir de um convite da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Tínhamos a tarefa de deslocá-los da realidade das salas de aula para outro lugar de onde novas formas de agir poderiam emergir. Nos primeiros encontros algumas afirmações pareciam querer dizer que estávamos no caminho errado e que desconhecíamos a realidade das escolas. Alguns demonstraram certa resistência a interagir com algo que parecia desconectado da situação de estresse vivida nas escolas municipais. Turmas de 40 alunos em contextos de violência urbana poderiam ser afetadas por essa experiência lenta e, por vezes, delicada? Cadu é um artista que move a paisagem com delicadeza, respeito e espanto. Nós, como grupo, precisávamos nos conectar com sua obra para nos movermos.

Cadu é artista plástico e professor pesquisador do Departamento de Artes e Design da PUC-Rio. Sua prática é marcada por uma abordagem transdisciplinar em que convivem performances, instalações, desenhos, pinturas, objetos, esculturas, vídeos e fotografias, influenciados por temas ligados à sistemas, repetição, jogos, tempo e circularidade. Suas obras celebram a relação entre o homem e a natureza, o racional e o instintivo, o caos e o rigor. Suas falas durante as experiências colocavam o(a)s professore(a)s diante de pensamentos poéticos desafiadores, que tensionavam a situação estabelecida e provocavam deslocamentos de diversas naturezas.

“No meu processo de trabalho individual é natural procurar um tipo de percepção e de velocidade mais lenta, que eu aprecio, e quando estou nesses processos de residência faço isso na interação com o grupo.” Cadu

Para começar o trabalho, antes de tudo, tínhamos que provocar um deslocamento da nossa própria percepção do que é ser funcionário público. Mais especificamente, no caso desse trabalho, do que é ser professor no sistema público. Nosso desafio era conseguir fazer um trabalho lento que interessasse e mobilizasse professore(a)s que enfrentam um dia a dia complexo e estressante à frente de turmas de escolas em contextos de emergência, aparentemente muito longe das expressões artísticas. Cadu esperava que nossa proposta funcionasse como um oásis de recarregamento e desencabulamento. Queria provocar no(a)s professore(a)s a lembrança dos motivos pelos quais haviam se engajado, em algum momento da vida, com a criação artística.

Assim, procurávamos trabalhar para que ele(a)s pudessem encontrar alguma coisa na experiência com o artista que pudesse reverberar na sua atitude cotidiana e, consequentemente, na sala de aula. Precisávamos fazê-lo(a)s acreditar que valeria a pena abrir um parêntese na rotina a fim de encontrar algo no seu processo de autoria como professor(a) que criasse um desequilíbrio capaz de abrir brechas, levando-o(a)s a ver novos horizontes. Mas seria possível que o(a)s professore(a)s performassem frente a situação de esgotamento que viviam? Sabendo que por trás desse dia a dia difícil existia nele(a)s uma força criativa e inovadora – ainda que esta se encontrasse meio desmaiada –, pudemos comprovar uma coisa que já suspeitávamos. A gente não ia gerar nenhuma modificação a partir de uma mesa de trabalho. Precisávamos criar um campo de afetos.

Esta era a tarefa.

Experiência com professores e o grupo Jovens Urbanos realizada durante a RASP.

“É daí que nasce a cena. É do jogo da materialidade com a cena. É da fricção que vem a ficção!”, disse Veríssimo. Com essa afirmação, feita no calor e animação de um ensaio do Teatro da Laje na Arena Dicró – presenciado por nós na fase inicial de aproximação do projeto com a Secretaria e com o professor de teatro –, nos foi dada a chave para o problema. Confeccionamos então um conjunto de objetos simples que criavam algum nível de interferência no corpo e eram totalmente capazes de ser reproduzidos dentro da realidade escolar. Os materiais escolhidos levaram em consideração a simplicidade, o baixo custo, a agilidade de confecção e a possibilidade de replicação. A intenção foi criar brandas próteses para restrições de movimento ou alterações da forma corporal, que provocassem comportamentos de abertura individuais e coletivas.

“Isso incorpora algo que é fundamental nos processos de criação que é um estado de errância, aonde a gente não sabe bem o que está fazendo, mas conforme vai desenvolvendo vai entendendo que esse trilhar derivado dele mesmo vai instaurando um sistema e desse sistema começam a nascer certas fricções que vão dar em trabalho.” Cadu

Experiência com professores e o grupo Jovens Urbanos realizada durante a RASP.

A ferramenta foi utilizada em nossos encontros com o(a)s professore(a)s, como provocadora de tentativas e erros que pudessem gerar expressões e gestos sem se preocupar com o resultado. Após o período de encontros e a partir do retorno que nos foi dado, entendemos que a experiência teve excelente recepção por parte dos que participaram, e que além de afetar diretamente as práticas do(a)s professore(a)s, serviu também para aumentar o nível de engajamento, divulgação e colaboração entre os grupos de teatro que já existiam espontaneamente dentro das escolas e divulgar o festival. Sendo assim, esse projeto mereceu avaliações e reflexões posteriores à residência e se desdobrou em uma plataforma colaborativa com o novo nome de “O Festejo” . O objetivo é dar visibilidade e potencializar a comunicação dos grupos de dramaturgia formados nas escolas públicas do Rio de Janeiro, tornando público o trabalho desenvolvido por cada uma dessas iniciativas. O portal é uma parceria entre o República.org e a Secretaria Municipal de Educação.

Experiência com professores e o grupo Jovens Urbanos realizada durante a RASP


* Arquiteta. mestre em Artes Visuais, investiga as implicações da arte no campo social em sua pesquisa de doutorado. biapetrus@gmail.com