DANÇA

 

 

Por Maria Alice Poppe¹

Detentora de um legado artístico-pedagógico de suma importância em nosso país, a bailarina e educadora Angel Vianna (1928-) desenvolve uma abordagem metodológica que intensifica dança e pensamento alinhando o corpo à matéria criativa de forma pioneira no Brasil. Talvez seja difícil distinguir figura e fundo, Angel e sua filosofia contagiam-se reciprocamente no decorrer dos últimos 65 anos em uma forma singular de pensar o corpo na arte e na vida.

Angel Vianna inicia seu percurso junto ao marido, o coreógrafo Klauss Vianna (1928-1992) e, mais tarde, ao filho do casal, Rainer Vianna (1959-1995). De forma integrada, o trio é responsável pela criação de um pensamento-movimento baseado no processo investigativo do corpo com a dança e para além dela, inserindo-o em outros campos de estudo e expressão como o teatro, a educação e a clínica. Essa investigação pressupõe os ossos e as articulações como operadoras do movimento, a ênfase no espaço articular, a percepção das articulações como dobraduras, o direcionamento do movimento pela estrutura do esqueleto, os apoios e a utilização da pele como meio ao mesmo tempo receptor-disparador-propositor de troca e expansão do corpo no espaço. Ao contrário de uma matéria inanimada, inerte, subordinada à ação protagonista da musculatura, o esqueleto torna-se arquitetura móvel, instância do pensamento-movimento cujo eixo constitui-se pelo complexo sistema de alavancas e apoios. Angel, Klauss e Rainer Vianna inauguram modos de reflexão acerca do movimento com os quais o bailarino possa ser capaz de, mais do que repetir passos, concebê-los na medida em que os fabrica. Isso se traduz na criação de espaços e contornos que vão além da perspectiva de aprendizado de forma instituída, agenciando o corpo e seus limites pela condição particular de cada um. Os “Vianna” preconizam o processo individual no aprendizado, flertando com a vacância do movimento como ação de descoberta, o que se resume na seguinte frase, dita e redita muitas vezes por eles: “Não decore os passos, aprenda o caminho”. Esses são alguns dos princípios que fundam o pensamento dos “Vianna” e que nos últimos 25 anos vêm sendo propagados por Angel, após a morte de Klauss em 1992 e de Rainer, em 1995.

A metodologia de Angel Vianna vem se desenvolvendo pela estruturação de um corpo firme e poroso a fim de elaborar um pensamento em dança que, mesmo disseminado em outras áreas, afirma uma abordagem metodológica singular cujo sentido é dado pelo corpo e suas percepções. O corpo é o grande filósofo, como Angel mesma diz, e assim a bailarina não teme o desconhecido reiterando a diferença como presença, seja na arte, na saúde ou na educação. O corpo aí já não é mais instrumento da dança, ele é a própria dança. O olhar fala dos ouvidos, da pele, do não dito. O toque emana a vibração de uma pesquisa do movimento dançado cujo rigor está na necessidade do gesto se pronunciar como se fosse a primeira vez.

A Escola no Rio de Janeiro foi fundada em parceria com seu filho Rainer Vianna e sua nora Neide Neves em 1983, o então Espaço Novo: Centro de Estudos do Movimento e Artes, atual Escola e Faculdade Angel Vianna. Na época consistia em cursos livres ministrados por eles e outros professores com caráter amplo e experimental. Em seguida, Angel funda o curso Técnico para Bailarinos Contemporâneos, formando gerações e gerações de artistas da dança. Em 1994, Angel Vianna cria o Curso Técnico em Recuperação Motora através da Dança, que atualmente integra uma das Pós-Graduações oferecidas pela Escola. Em 2001, inaugura a Faculdade Angel Vianna, Bacharelado e Licenciatura em Dança, e a partir de 2007 diversas Pós-Graduações Lato-Sensu, entre elas a Metodologia Angel Vianna (MAV). A casa, que abriga tantas formações pertencentes ao legado, não se configura em uma arquitetura comum, sendo um espaço que se expande de muitas maneiras, no físico e no imaginário. Ela simboliza também uma poética a qual nomeio de casa-corpo de Angel. Casa-corpo foi o termo possível capaz de aglutinar o corpo e o pensamento da mestra à sua casa, que abriga ­– nada mais nada menos – o ambiente pedagógico do legado da Família Vianna.

Como a casa-corpo de Angel Vianna, seu pensamento também expressa a maleabilidade de uma estrutura sempre a trabalhar. Assim, não há distinção entre a dança de Angel, suas aulas ou suas conversas espontâneas. Anteriormente composta apenas por 3 ambientes pedagógicos, em 1986, expande-se incluindo mais um, até que, em 2000 é inaugurada a famosa Sala E, o maior espaço para aulas e trabalhos corporais. O crescimento se deu verticalmente e, contornada por muitas escadas, a estrutura da escola transporta nossos corpos para incansáveis suspensões e também nos ensina a desequilibrar, a cair, sem temer o peso da queda, seja objetiva ou metaforicamente. Como casa-corpo ela se abre para fora mas não perde o seu centro. Trata-se de uma geometria fluida e em direta relação com a dimensão temporal. A arquitetura torna-se aberta às pulsações das transformações processadas no espaço. Uma casa que se estrutura enquanto um espaço imaginariamente feito somente de janelas que se abrem para o mundo, que apontam para fora dela mesma sem, contudo, perder sua intimidade. “Vamos para a Angel?” – assim nos referimos quando vamos para lá, uma espécie de entidade amalgamada que une a figura de Angel Vianna ao corpo da casa e do legado. Essa estrutura móvel, elástica e sem pontas vem abrigando um vasto número de artistas e pedagogos cariocas ao longo desses 37 anos. Um polo em fermentação constante.

Angel Vianna expressa uma capacidade de enraizamento simultâneo ao deslizamento, em sua dança, em sua vida, na forma como aplica o complexo circuito de ensino-aprendizagem, conforme definido pela teórica de dança Helena Katz. O simbolismo desse duplo movimento, de enraizar e de deslizar, produz a natureza singular de seu pensamento-movimento, caracterizado por uma espacialidade fluida e maleável, que pressupõe a parceria com o solo, a sensibilização à ação da gravidade, a operação do corpo que apoia e pesa em concomitância ao espraiamento próprio do deslize. Uma ação que contesta a primazia da fundação, da fundamentação da dança, por um lado, pela codificação e, por outro, pela hierarquia na relação ensino- aprendizagem, aspectos que em geral aniquilam o estado necessário ao corpo em processo criativo. Há lá, portanto, uma construção técnica e motora do corpo que se vincula diretamente à criação. Esse propósito aproxima o trabalho da Familia Vianna, especialmente na perspectiva de Angel, à abordagem proposta por métodos da educação somática. Essa ótica dissolve as fronteiras entre tutor e aprendiz, e, sobretudo, os quesitos autoexcludentes de ensino e aprendizagem, pois não há mais um modelo a seguir. Os modelos são criados na experiência da percepção a cada dia. O processo de aprendizagem se dá como assimilação de algo construído no diálogo entre quem ensina e quem faz e, portanto, quem se situa na posição de tutor também aprende com quem faz. Desse modo, a apreensão simboliza uma pedagogia estruturada pelo conhecimento que está sempre a construir, nunca como algo já dado. Uma Filosofia do Corpo que habita o caminho em lugar dos passos outrora decorados.  E, como na casa-corpo de Angel, uma qualidade que dobra, desdobra, gira, torce, pesa, cai, levanta, empurra, sobe, flutua, espana, salta – uma espécie de peso leve que se desloca nos sopros do tempo e está aberta ao vento de outros gestos, em outros tempos, de muitos tempos.


¹ Bailarina e Colaboradora em processos de criação. Doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO. Mestre em Artes Visuais pela UFRJ. Licenciada em Dança pela Faculdade Angel Vianna. Professora Departamento de Arte Corporal da UFRJ coordenadora do Projeto de Pesquisa LINHA. www.alicepoppe.com