CINEMA

 

 

Por Michele Campos¹

Qual o papel do cinema brasileiro contemporâneo e quais as suas formas de sobrevivência em tempos de pandemia global e determinação de distanciamento social? Como seguir produzindo filmes de relevância cultural e política em um contexto em que estão cada vez mais escassos investimentos em arte,  salas de cinema se encontram fechadas e festivais e mostras seguem suspensas pensando na segurança da população?

Para analisar estas e outras questões, foi realizada uma entrevista com Daniel Queiroz, diretor e fundador da Embaúba Filmes, distribuidora especializada em cinema brasileiro de Belo Horizonte.  Queiroz trabalhou no Cine Humberto Mauro e no Cine 104, redutos do cinema de arte e resistência da capital mineira, no Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte, no Festival de Brasília, entre outros. Há cerca de dois anos ingressou na área de distribuição,ao perceber que havia um grande volume de filmes brasileiros sendo lançados e uma carência de distribuidoras.

Seu primeiro lançamento, “Arábia”, de Affonso Uchôa e João Dumans, venceu 5 prêmios no festival de Brasília (2017) e foi exibido em mais de 50 festivais dentro e fora do Brasil. Outros títulos de sucesso vieram na sequência como “Chuva é Cantoria na Aldeia do Mortos”, de João Salaviza e Renée Nader Messar; “Inferninho”, de Guto Parente e Pedro Diógenes, “No Coração do Mundo”, de Gabriel Martins e Maurílio Martins e “Foro Íntimo”, de Ricardo Mehedff.

Com o fechamento repentino dos cinemas devido à pandemia, a distribuidora precisou cancelar o lançamento de dois filmes programado para o dia 19 de março. “Seria um lançamento diferente do usual, porque normalmente média-metragem não entram em cartaz. Então reunimos dois médias juntos, para viabilizar o lançamento em salas de cinema, o ‘Vaga Carne’ (da premiada atriz, diretora e dramaturga Grace Passô e de Ricardo Alves Jr) e o ‘Sete Anos em Maio’ (de Affonso Uchôa) , com cerca de 40 minutos cada.”

Daniel Queiroz, diretor e fundador da Embaúba Filmes. Foto arquivo pessoal.

“Sete anos em Maio”  tem um contrato com Canal Brasil, que determinava que a produtora trabalharia o filme nos cinemas e depois ele seria lançado na Internet pelo canal. Através de negociações, o Canal Brasil topou a mudança do lançamento para o site da Embaúba. Foi feito o lançamento simultâneo dos filmes, mas sem a obrigatoriedade de alugar os dois. “O que fazia sentido no cinema, viabilizando uma sessão comercial, para Internet isso deixou de ser necessário”, avaliou Queiroz.

Os longa-metragens do catálogo do Embaúba podem ser alugados por 2 dólares cada. Com os lançamentos dos médias-metragens, este valor foi reduzido para 1 dólar por locação, tanto pela duração menor dos filmes, como também pela vontade de incentivar os aluguéis.

Sobre o valor cobrado na moeda norte-americana, Daniel avalia  que “é meio antipático isso, mas foi o que permitiu à Embaúba ter um serviço de locação de vídeos pela Internet foi a plataforma Vimeo, muito utilizada para enviar links para festivais e para a circulação pra curadores”. O Vimeo é atualmente a maior plataforma de de vídeo profissional do mundo, mas não tem a possibilidade de cobrança do serviço em reais. Além disso, o pagamento é feito somente por meio de crédito ou paypal. Para Daniel, seria ótimo se o serviço permitisse locações através de boleto bancário ou cartão de débito, democratizando o acesso.

Já o filme “Vaga Carne” está disponível gratuitamente também no site da SPcine Play, única plataforma pública de streaming do Brasil, que exibe conteúdos exclusivos da programação cultural da cidade de São Paulo, além de raridades de cineastas clássicos do cinema brasileiro. O filme já atingiu mais de duas mil visualizações na plataforma pública, enquanto no site da Embaúba foram cerca de 200 locações.

Novos hábitos de consumo de cinema

Para Daniel, o retorno financeiro ao final deste ciclo é ainda uma incógnita, e provavelmente vai ser muito menor do que o obtido pelas salas de cinema.

“Esse mundo é meio novo pra todo mundo.Normalmente as pessoas estão acostumadas a uma plataforma só. Eu assino Netflix eu vejo os filmes que estão disponibilizados ali. Eu acho Netflix um serviço super importante para atingir um público grande e chegar a mais gente. Mas tem uma restrição de conteúdo. Eu, como usuário, tenho dificuldades para achar filmes para assistir, são poucos os títulos que me interessam”.

Para ele, vai se diferenciar nesse mercado quem efetivamente conseguir um número maior de locações, através de grandes plataformas, com mais divulgação e consequentemente um número maior de acessos. “Mas espero que tenha espaço também para plataformas menores como a Embaúba, que tem uma dúzia de títulos, mas que você não vai conseguir encontrar facilmente em outros locais”, avalia.

Novas perspectivas de retorno financeiro

No mês de abril, todo o conteúdo da Embaúba foi disponibilizado gratuitamente ao público.  Segundo Daniel, ouve um estímulo através de postagens em redes sociais para que as pessoas que pudessem pagar, contribuíssem para a cadeia de cinema independente. A surpresa foi que o número de aluguéis foi significativamente maior no período que em que o catálogo estava gratuito.

A iniciativa teve boa cobertura midiática, além de grande número de visualizações gratuitas. “Eu fico pensando como vai ser esse mundo futuro, como a gente vai lidar com conteúdos na internet. Eu acho que vamos ter algumas coisas acontecendo em paralelo. Eu fico vendo instituições que podem comprar o conteúdo por um valor fechado para disponibilizá-lo gratuitamente. É o caso do Itaú Cultural, por exemplo, que oferece uma remuneração fixa pro filme para incluí-lo na programação online gratuitamente”.

Para Daniel, é preciso considerar também a variável econômica atual, já que as pessoas estão tentando gastar o mínimo possível. “Às vezes é uma coisa de hábito, ou mesmo uma questão de saber fazer. Eu pego como exemplo minha mãe e minha tia, que são cinéfilas e frequentam cinema uma vez por semana. Quando se fala em alugar um filme pela Internet, há uma dificuldade tecnológica, nem é financeira, é de entrar no site, criar um login, existe o medo de roubo ao inserir os dados do cartão… É um mundo novo para quem não tem esse hábito. A geração que assiste filme pelo computador talvez  seja a geração do torrent, que quer baixar gratuitamente, esperando o filme cair num site de compartilhamento de arquivos”.

Queiroz acredita que a tendência futura é de valorização do aluguel e de sua importância para as produções independentes. “Uma coisa é você baixar uma megaprodução de Hollywood, comercial, de milhões de dólares. Outra coisa é um filme que foi feito na raça, com um diretor pagando coisas do próprio bolso, com um orçamento mínimo, ou até sem orcamento. São realidades muito distintas. Quando penso na Embaúba tenhos dois objetivos concretos: ampliar a circulação dos filmes, contribuindo para que possam ser mais vistos;  e entender como esses filmes podem trazer algum retorno financeiro”.

Sobre  o cinema mineiro

Para diversos críticos de cinema, as produções mineiras tem uma força reconhecida não só no Brasil mas no mundo. Segundo Queiroz, de alguns anos pra cá, houve uma crescente na produção, tanto em quantidade quanto em qualidade. “O que eu sinto é que tinha muita gente boa, mas tinha uma dificuldade muito grande pela questão financeira”, avalia.

“Recuando no tempo, os filmes eram feitos ou finalizados em película para que circulassem nos cinemas. Com a facilidade do digital, caiu muito o custo de produção e também começaram a ter mais efetivos pro cinema em Minas Gerais”. Ele ressalta a importância do projeto Filme Minas, edital lançado em 2007. À partir daí, começou uma constância de editais e possibilidades de financiamento. Surgiram incentivos nacionais mais sólidos, como editais da Ancine com cotas de regionalização, com a participação da Prefeitura e o Estado. Os filmes começaram a rodar, ganhar muitos prêmios, serem reconhecidos em circuitos de festivais dentro e fora do Brasil.

“Uma característica do cinema mineiro é não ter sido feito pensando em mercado, talvez por estarmos distante do eixo Rio-São Paulo, em que estas questões estavam mais presentes. O nosso cinema é muito autoral, no sentido do autor, do artista, que tem sua ideia e quer expressá-la. O cinema daqui tem uma característica artística muito forte. Claro não é só em Minas, mas acho que aqui é mais presente. Talvez também tenha significado esses filmes não terem uma circulação tão ampla, com grandes bilheterias, mas sim um reconhecimento crítico gigantesco”.

Projetos futuros

Assim como existe a independência para a produção de filmes, a distribuidora busca também a independência também para a exibição online. “Muitas vezes se o Netflix não quis comprar meu filme, ou outra plataforma grande não o quis, meu filme não vai ter vida na Internet, ou ficar restrito a algum site, ou perdido em catálogos?”, desafia.

Para tentar solucionar estas questões, Daniel vem trabalhando numa plataforma maior, de aluguel de filmes do cinema brasileiro contemporâneo de várias distribuidoras, que irá se chamar Embaúba Play. O projeto é desenvolvido com o apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, com planos de lançamento até o final do ano. “Esse é para mim um projeto prioritário, em que estou tentando encontrar um espaço na Internet que não dependa de terceiros.  A ideia é ser uma plataforma especializada em títulos de cinema, em que vai existir um recorte, uma curadoria por detrás”.

Daniel considera sagrado o espaço do cinema, com suas regras e rituais. “Espero que a gente possa superar essa questão da pandemia, voltar a ter uma vida social e a frequentar cinemas. Seria muito triste que os filmes tivessem que existir só em outros espaços que não a tela grande do cinema. No final das contas são experiências muito distinta, você assistir um filme em casa ou no cinema, o mesmo filme se transforma”.

Segundo Queiroz, o cinema pode ficar muito prejudicado em tempos de pandemia. “Pode ser que as pessoas tenham medo, não queiram frequentar cinema por um bom tempo, e a Internet passe a ser mais importante… Por um lado, temos esse desejo de voltar a trabalhar os lançamentos no cinema, mas por outro lado, temos esse plano concreto de entender melhor o  funcionamento dos filmes na Internet e explorar cada vez mais esse mercado”.


https://embaubafilmes.com.br/ | https://www.spcineplay.com.br/

¹ Michele Campos é mineira, Jornalista e Turismóloga, e atua como analista de mídias sociais.