Por Zoe PC/Brasil de Fato e Peoples Dispatch 

Manifestações em todo o país questionam medida recém aprovada e considerada “fundamentalmente discriminatória” pela ONU

Na última semana, as ruas da Índia estremeceram com grandes manifestações contra a Emenda à Lei de Cidadania (CAA, na sigla em inglês), que fixa critérios para reconhecimento de cidadania indiana a estrangeiros com base na identidade religiosa.

Os críticos à medida afirmam que os critérios aprofundam as divisões religiosas entre a população, violam a Constituição e tentam promover uma redefinição do conceito de cidadania na Índia.

Diversos setores da população – incluindo partidos de esquerda e do centro, movimentos populares, organizações estudantis, da sociedade civil e muçulmanos –estão participando do levante.

O Estado tem respondido com repressão aos protestos multitudinários. Em apenas uma semana, milhares de pessoas foram detidas, centenas ficaram feridas e foram registradas ao menos 13 mortos.

Em várias regiões e cidades o governo implementou a Seção 114, uma figura jurídica herdada das leis coloniais britânicas – a Índia permaneceu sob domínio da Inglaterra até 1950 – que proíbe a reunião de mais de quatro pessoas no mesmo local. O governo também suspendeu serviços de telefonia e internet em regiões onde os protestos foram mais contundentes, e logrou efetivamente impedir a comunicação sobre o que estava acontecendo.

Apesar da repressão, o povo continua nas ruas desafiando o governo do partido hindu-nacionalista Bharatiya Janata (BJP, segundo a sigla em inglês), que, desde começou o segundo mandato, intensificou os ataques contra as minorias e a classe trabalhadora.

O que é a Emenda à Lei de Cidadania?

A Lei de Cidadania foi implementada há 64 anos e a Emenda aprovada pelo BJP passou por anos de construção. A medida abre a possibilidade de que estrangeiros do Paquistão, Afeganistão e Bangladesh que tenham sofrido perseguição religiosa em seus países, antes considerados “migrantes ilegais”,  solicitem a cidadania indiana.

A Emenda, entretanto, limita os pedidos a praticantes das religiões hindú, sikh, budista, jain, parsi e cristã. Os muçulmanos foram excluídos.

O texto foi apresentado pelo ministro do Interior Amit Shah, do BJP, ao Congresso no dia 9 de dezembro. A aprovação na Câmara Baixa – a Índia adota um sistema legislativo bicameral semelhante ao brasileiro – ocorreu no mesmo dia. Dois dias depois, a medida foi aprovada na Câmara Alta e, no terceiro dia, o presidente Ram Nath Kovind sancionou a Emenda.

Opositores afirmam que o critério de conceder cidadania com base em identidades religiosas viola a Constituição, que garante direitos fundamentais independentemente de casta, religião ou sexo. Em algumas regiões, os governos estatais declararam que não implementariam a Emenda alegando sua inconstitucionalidade.

“Nós só respondemos aos ideais da Constituição da Índia, não à ideologia fundamentalista do RSS-BJP”, declarou o governador do estado de Kerala. O RSS, mencionado pelo governador, é o Rashtriya Swayamsevak Sangh, um movimento fascista de massas que atua junto ao BJP.

Muçulmanos perseguidos

O principal questionamento à medida é por conta de quem ela deixa de fora. A Emenda exclui a comunidade muçulmana, que é grande parte da população migrante na Índia, e mantém essa comunidade numerosa na ilegalidade.

O argumento do BJP é que a lei é uma medida humanitária, e nos três países vizinhos contemplados pela medida, a comunidade muçulmana não é perseguida. Ao contrário do que diz o governo indiano, é notória a perseguição aos muçulmanos Ahmadis, no Paquistão, e Hazaras, no Afeganistão.

Além disso, os Rohingyas, de Myanmar, são uma comunidade muçulmana que, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), estão em risco de genocídio. Essa comunidade também está de fora da nova legislação.

De acordo com a ONU, os Rohingyas são vítimas de desalojo, extorsão, detenção arbitrária, trabalho forçado, violência sexual e massacres. Por conta dessa realidade, 700 mil muçulmanos dessa comunidade foram obrigados a abandonar Myanmar e fugiram para países vizinhos, incluindo Bangladesh e Índia. Estima-se que estejam vivendo na Índia, pelo menos 40 mil Rohinqyas.

Da mesma forma, os refugiados do Sri Lanka tampouco foram contemplados. Por conta da grave guerra civil que assola o país, dezenas de milhares de pessoas de fugiram do Sri Lanka para a Índia. Há cerca de 65 mil refugiados do país vivendo em acampamentos desde a década de 1990 que seguem com estado migratório indefinido e que, agora, correm risco de serem deportados.

E o Registro Nacional de Cidadãos?

Para entender melhor o contexto em que se aplica a Emenda à Lei de Cidadania, é preciso compreender o funcionamento do Registro Nacional de Cidadãos (NRC, na sigla em inglês). O NRC é um mecanismo que verifica a cidadania dos cidadãos da Índia e que remove aqueles que não podem com provar um estado legal.

Até hoje, o NRC foi implementado somente no estado de Assam, no nordeste indiano, e 1,9 milhões de pessoas foram excluídas do registro oficial de cidadãos e enviados a centros de detenção, incluindo pessoas hindus e muçulmanos.

O governo do BJP anunciou repetidas vezes que vai aplicar o NRC em todo o país. Os resultados do NRC em Assam permitem prever que milhões de pessoas ainda serão excluídas do registro oficial nos outros estados, correndo risco de detenção e deportação.

Nesse sentido, a oposição na Índia afirma que a Emenda é uma jogada do governo para assegurar que as pessoas hindus que não foram contadas como cidadãos pelo NRC poderão acessar a cidadania. Faz parte do projeto fundamental do BJP de consolidar a Índia como um país hindu e de excluir as minorias, particularmente a comunidade muçulmana.

Protestos na capital indiana foram convocados inicialmente por professores e estudantes universitários (Foto: Surangya/ Peoples Dispatch)

Rechaço das ruas

A Emenda à Lei de Cidadania despertou grande reprovação de diversos setores dentro e fora da Índia. Desde que foi apresentado no parlamento no dia 9 de dezembro, as mobilizações pela revogação da medida são diárias.

No começo, os protestos se concentraram na região nordeste do país, que historicamente receberam os principais fluxos migratórios dos países vizinhos. Em resposta, o governo enviou a repressão militar e bloqueou as telecomunicações na região.

Depois da aprovação da Emenda, estudantes e professores das principais universidades muçulmanas, a Universidade Jamia Millia Islamia, na capital Nova Delhi e Universidade Aligarh Muslim, em Aligarh, se uniram às manifestações.

No terceiro dia de protestos, domingo (15), a polícia reprimiu a mobilização das universidades. Vídeos circularam mostrando estudantes presos e desmaiados nos banheiros e na biblioteca da Universidade Jamia Millia enquanto a polícia atirava bombas de gás lacrimogênio e agredia com cassetetes. Só em Jamia, mais de 50 estudantes foram presos.

A brutal repressão serviu para despertar outros setores da população. No dia 19, os principais partidos da esquerda indiana, como o Partido Comunista da Índia (Marxista), o Partido Comunista da Índia (Marxista-Leninista), e o Bloco Toda Índia em Frente convocaram uma mobilização nacional contra a lei e contra a repressão policial. Nesse dia, centenas de milhares de pessoas protestaram em dezenas de cidades. Outra vez houve grande repressão oficial.

A nível internacional, o Alto Comissariado da ONU pelos Direitos Humanos denunciou a Emenda e a classificou como “fundamentalmente discriminatória”.

Os protestos massivos já completam uma semana, e o momento é de crescimento da mobilização. O governo do BJP, no entanto, não dá sinais de que vá retroceder.

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