Brasil de Fato

O aumento do período de contribuição para os trabalhadores mais velhos não liberará vagas para os que estão ingressando

Florence Poznanski*

Um ano após as manifestações dos coletes amarelos que tiveram repercussão mundial, a França conhece nova grande mobilização nacional. O primeiro dia de greve aconteceu no dia 5 de dezembro. Cerca de 1 milhão de pessoas foram às ruas para rechaçar o projeto de reforma da Previdência do governo de Emmanuel Macron. A greve foi massiva e teve a mesma magnitude de em 1995, quando o então governo de Jacques Chirac teve que recuar após 3 semanas de bloqueio, retirando seu projeto de lei que previa uma reforma da Previdência e do funcionalismo público.

O ministério da educação nacional avaliou que cerca da metade dos professores do ensino básico aderiram à greve. O setor de transporte também entrou massivamente na mobilização. Nove das 14 linhas de metrô de Paris não funcionaram e a rede nacional de trens regionais e nacionais funcionou com um nível médio de 10% a 15% de sua frequência normal.

Além desses setores tradicionalmente mais mobilizados, também aderiram de maneira mais inédita setores do ramo privado, como o setor da produção  do comércio. No dia 5 de dezembro o comércio teve uma baixa de 30% em média da sua atividade. Desde então o movimento continua e entrou na sua segunda semana de mobilização. Apesar de 76% dos franceses acharem que uma reforma do sistema de aposentadoria é necessária, também são 64% os que não confiam no governo para fazê-lo e apoiam a greve geral.

Até a última quarta feira, ainda pouco se sabia sobre as verdadeiras medidas propostas pelo governo. A greve foi convocada de maneira preventiva para mandar um recado ao Executivo e influenciar no teor da proposta final. As grandes linhas da reforma foram apresentadas no dia 11 e convenceram alguns sindicatos tradicionalmente mais conciliantes com o governo a aderirem também ao protesto.

Como funciona a aposentadoria na França?

Como no Brasil, o sistema de aposentadoria funciona no princípio da repartição e da solidariedade coletiva, como um fundo universal que recebe as contribuições de todos os trabalhadores para ser redistribuído aos aposentados.

É parte do sistema nacional de seguridade social que foi uma das principais conquistas do povo francês desde o fim da segunda guerra mundial. Ela foi pensada pelo Conselho Nacional da Resistência, uma instância que reunia a maior parte dos movimentos que resistiram contra a ocupação nazista durante a guerra e que apresentou em 1944 um programa de governo para restruturar o país. Nele, a seguridade social foi pensada como um fundo específico de contribuições salariais e patronais para proteger os trabalhadores dos riscos sociais – como acidente do trabalho, saúde, saúde da família e aposentadoria.

Inicialmente, a seguridade social era autogestionada pelos próprios trabalhadores a partir de caixas regionais. Mas sua gestão foi aos poucos estatizada.

Não é a primeira vez que uma reforma acontece na Previdência francesa. Inicialmente, o Conselho Nacional da Resistência previa uma aposentadoria aos 60 anos calculada em base a 75% da média dos 10 melhores anos trabalhados. Entre os anos 80 até hoje, ela evoluiu no sentido de aumentar o período obrigatório de trabalho e reduzir o valor da aposentadoria.

Hoje, como no Brasil, há a possibilidade de se aposentar por idade (a partir de 62 anos e até 67 anos com pensão integral) ou por tempo de contribuição (172 trimestres ou 43 anos). Mas o valor da aposentadoria passou a ser calculado com base a 50% da média dos 25 melhores anos trabalhados.

Mais tempo de contribuição e menos pensão

A reforma da Previdência foi um dos principais eixos da campanha eleitoral de Emmanuel Macron em 2017. Ele defendeu, principalmente, que o atual sistema é muito complexo porque inclui cerca de 40 modalidades de regimes diferentes de acordo com os diferentes setores profissionais. Por isso, ele pretende acabar com essas especificidades, oriundas de acordos coletivos negociados pelos sindicatos de cada ramo, para homogeneizá-los.

A reforma também altera o sistema de calculo da aposentadoria. Em vez de se basear numa média dos 25 melhores anos de salário, os trabalhadores acumulariam pontos ao longo de toda a carreira (inclusive os períodos de desemprego) que seriam convertidos ao final em dinheiro, de acordo com o valor do ponto. Isso é uma das preocupações dos sindicatos, que temem que a revalorização do ponto ao longo dos anos não seja favorável aos trabalhadores.

Além disso o primeiro-ministro Edouard Philippe anunciou que o trabalho após os 62 anos seria incentivado com uma baixa na aposentadoria para os que se retiram antes dos 64 anos. Uma maneira indireta de dizer que a idade miníma passa agora de 62 para 64 anos. Mas, para tentar conter o descontentamento, ele garantiu que a implementação da reforma seria muito gradual e iniciaria só a partir de 2037 para os aposentados nascidos depois de 1975. A chamada “cláusula do avô”, que nada mais busca esvaziar o movimento.

O desemprego dos jovens e a precarização da sociedade

Se todos os sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos se opõem à reforma, não há ainda um acordo para uma contraproposta. Independentemente disso, algumas realidades têm consenso e mostram que a reforma não está resolvendo os verdadeiros problemas da sociedade.

Segundo o ex-fiscal do trabalho e politico francês Gérard Filoche, “um trabalhador a cada dois, alcança os 62 anos em situação de desemprego, doença ou outra inaptidão”. De fato, segundo dados estatísticos nacionais, o nível da esperança de vida em saúde na França está estagnando em torno de 62,5 anos para os homens e 64,5 para as mulheres, levemente abaixo da média europeia. Isso não deixa de ser uma média se comparado ao modo que a esperança de vida cai ainda mais para as profissões mais precárias.

A situação de desemprego dos jovens também é crítica e o aumento do período de contribuição para os trabalhadores mais velhos não liberará vagas de emprego para os que estão ingressando. De maneira geral, percebe-se também uma precarização do trabalho e uma redução dos níveis dos salários, que impacta diretamente no nível das contribuições acumuladas pela Previdência e ao final o valor da aposentadoria. “Ao contrário do que está acontecendo, um aumento dos salários e uma redução da jornada de trabalho ajudariam muito para preservar o equilíbrio da Previdência social”, acrescenta Gérard Filoche.

A porta aberta para capitalização

A França ainda é um dos poucos países no mundo que resiste ao modelo de capitalização individual privado. Sem fazer menção a este modelo na apresentação da reforma, é possível perceber que o governo não está impedindo sua introdução. De fato, matematicamente cada trabalhador terá que buscar soluções compensatórias no mercado dos seguros privados para conter a redução anunciada de sua pensão.

Em junho deste ano, a Lei Pacte entrou em vigor na França com o objetivo de facilitar esse tipo de poupança individual complementar para os trabalhadores. A empresa norte-americana Blackrock, líder mundial na gestão de ativos, está de olho na abertura do mercado das pensões francesas aos produtos de capitalização individual privados. Ela chegou a parabenizar o governo francês por essa medida. Desde o início do governo Macron, a empresa também se beneficiou de vários encontros de alto nível com ministros e o próprio presidente nos últimos meses.

*Francesa, residente no Brasil, mestre em Ciência Política e comunicadora. É membro da direção nacional do partido de esquerda Francia Insumisa.

 

 

 

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