Na entrevista final da série “As facetas do genocídio”, falamos com Adréia Couto. Andréia é bacharel em letras pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e em jornalismo pela Universidade Paulista (UNIP), mestre em comunicação social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), doutora em engenharia agrícola pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e pós-doutora pela Universidade Federal de Uberlândia e pela EMBRAPA. Ela, entre 2004 e 2006, cruzou Ruanda, estudando as causas e consequências do genocídio ocorrido no país em 1994 e escutando depoimentos de pessoas que sobreviveram ao massacre. Nesta entrevista, a professora universitária e jornalista discute os desdobramentos históricos que levaram o país da região dos grandes lagos africanos a ser vítima do último genocídio do século XX.

Felipe Honorato: Como foi o processo de ocupação, por parte do colonialismo europeu, da atual Ruanda?

Andréia Couto: Após um curto espaço de tempo de ocupação alemã, os belgas chegaram um Ruanda no início do século XX. É importante notar que com eles foram também missionários religiosos, católicos em sua maioria, que tiveram um papel fundamental no processo de dominação da população local. Logo no início da colonização, foram estabelecidas as bases para uma estrutura religiosa, educacional, e médica, privilegiando a etnia Tutsi, numericamente inferior, que passou a ocupar cargos na administração, teve acesso à educação e aos melhores postos de trabalho, em detrimento à população Hutu, relegados a cidadãos de segunda categoria. A opção belga pelos Tutsis, desde o início, terá desdobramentos futuros após a independência e na explosão do genocídio. Em Nyanza, a chamada cidade imperial, foi criada a Escola para os filhos dos chefes, que recebia somente Tutsis. Essa escolha étnica para receber privilégios não se deu de forma despropositada. Desde o início, os belgas perceberam as diferenças entre as duas etnias e como a população local tratava essa questão. Embora houvesse uma distinção histórica entre Tutsis e Hutus, eles sempre lidaram de maneira natural com essa estrutura, em que os Tutsis eram os pastores e possuidores de gado, considerado uma riqueza, e os Hutus, agricultores.

Ao perceber essa estrutura social em que cada etnia ocupava um lugar determinado em Ruanda, o colonizador reforçou as diferenças, tratando de colocar uns contra os outros no intuito de tirar proveito da situação para melhor governar, utilizando esse jogo de poder como instrumento de dominação. Para a população Tutsi, alçada à posição privilegiada, o esquema colonial foi aceito de bom grado, enquanto a população Hutu começou a nutrir ressentimentos em relação à situação, fomentando o ódio contra os Tutsis.

FH: Como funcionava o sistema de etnização aplicado pelos belgas em Ruanda-Urundi e quais foram as consequências dele na situação colonial?

AC: Como foi falado acima, os belgas alçaram a população Tutsi à posição privilegiada. Além da questão do jogo da dominação – dividir para dominar, há um outro elemento que fez com que a população Tutsi fosse escolhida como a detentora dos privilégios. Estando a colonização dos territórios africanos mergulhada em pleno desenvolvimento das ideias antropológicas racistas que dominavam a Europa desde o final do século XIX, a etnia Tutsi era vista como descendente de povos semitas e originária de povos nobres. O europeu utiliza a compleição física dos Tutsis para reforçar essa ideia: eram longilíneos, de nariz afilado, porte altivo, bem ao gosto dos instrumentos de análise que punham os africanos baixos, de nariz e lábios grossos, como sendo os opostos fenotipicamente do ideal europeu de homem civilizado preconizado na época. Essa oposição acintosa entre as duas etnias esteve na gênese do genocídio que ocorreria décadas mais tarde.

FH: Após a independência de Ruanda e do Burundi, as consequências desta etnização foram resolvidas?

AC: De certa maneira, com o fim do genocídio, o governo interino tentou equalizar essas diferenças. O governo que assumiu após o genocídio foi composto por um presidente Hutu, inicialmente, com uma composição étnica equilibrada. Quando Paul Kagame, Tutsi, assume o poder como presidente, adota o discurso “Ruanda para os ruandeses”, numa tentativa de livrar o país do jogo de oposições étnicas, ao não falar mais em Tutsis e Hutus e sim, em Ruandeses. No entanto, observações da situação pós genocídio e mais recentes, mostram algumas posturas do governo ruandês que contradizem essa posição.

Há relatos, por exemplo, após o genocídio, de incursões ruandesas nos campos de refugiados na fronteira da RDC para atacar a população Hutu. O governo sempre negou.

Nas duas vezes em que estive em Ruanda, e nas viagens pelo país, o discurso étnico parecia não existir mais e mesmo para uma estrangeira, diferenciar as duas etnias pelo fenótipo era algo quase impossível. O que encontrei foram vários memoriais espalhados nas diversas cidades que visitei relatando os horrores do genocídio, ou seja, Ruanda trabalha para que esse episódio não seja apagado da história, conclamando a população a uma vida sem diferenças étnicas.

FH: Porque se diz que, neste período pós-colonial, o Burundi foi um espelho invertido de Ruanda?

AC: O período que antecede o genocídio mostra um panorama político e social cada vez mais dramático na região dos Grandes Lagos, uma vez que os conflitos internos de Ruanda acabam atingindo os países vizinhos, como Uganda, Tanzânia (Tanganica, na época), Zaire (atual RDC) e Burundi, que passam a receber um grande contingente de refugiados que atravessam suas fronteiras. Alguns conflitos internos no Burundi, como o de outubro de 1993 (alguns meses antes da eclosão do genocídio ruandês, portanto), o golpe de Estado perpetrado por um batalhão formado majoritariamente por soldados Tutsis (os Tutsis do Burundi), sob o comando militar de um Tutsi, François Ngeze, contra o presidente Hutu democraticamente eleito, Melchior Nadadaye, no qual ele e o vice-presidente da Assembleia Nacional, Gilles Bimazubute, e alguns de seus colaboradores, perdem a vida. A reação, imediata, foi o início de um massacre de famílias Tutsis, organizado sob as ordens do Frodebu (Frente pela Democracia do Burundi), deixando milhares de vítimas (100 mil, segundo a Cruz Vermelha). Após o golpe, cerca de 300 mil refugiados seguiram em direção a Ruanda, tornando o clima ainda mais tenso na região, mergulhando o Burundi também em direção a um massacre étnico. O reflexo do golpe e na sequência, do massacre Tutsi no Burundi acirra a desconfiança pela Frente Patriótica Ruandesa, analisada como próxima ao exército do Burundi (majoritariamente Tutsi) no meio Hutu ruandês.

FH: Qual era o contexto pré-genocídio em Ruanda, que fez com que o ódio étnico, novamente, se elevasse, quem foi Juvénal Habyarima e qual foi seu papel e o de sua esposa, Agathe Habyarimana, para que a situação escalasse a este nível de tensão?

AC: O que ocorreu em Ruanda em 1994 não pode ser compreendido sem uma grande contextualização, o que não é possível dizer de forma muito resumida, sob pena de incorrer em uma falta de compreensão. Em linhas gerais podemos dizer que o ódio étnico foi gestado desde o instante em que os belgas colocaram os pés em Ruanda, no entanto há uma série de fatores que foram se desenrolando ao longo de décadas que formaram o xadrez político e social que desencadeou o genocídio.

O ódio étnico, a partir da polarização perpetrada pelo colonizador, estava latente entre a população, e só fez aumentar com o passar do tempo. Ao longo da colonização, várias matanças ocorreram entre as duas etnias, em Ruanda e Burundi, até que, no início da década de 1990, a situação começou a dar mostras de que uma grande tragédia estava por vir. Alguns fatores deram pistas dos acontecimentos futuros: a Frente Patriótica Ruandesa (não há espaço aqui para falar sobre seu surgimento, mas, de maneira sucinta, trata-se de um exército formada por soldados muito bem treinados, em grande parte por Tutsis que nasceram no exílio e viviam às bordas entre Ruanda e Uganda. Entre eles estava Paul Kagame, grande estrategista e que viria a ser o presidente de Ruanda após o genocídio. A FPR já fazia incursões em Ruanda desde o início da década e havia já um desgaste entre o governo de Habyarimana e a FPR, após dois anos de guerra. Assim, nesse período, começam as negociações de paz entre o governo de Habyarimana e a FPR e uma tentativa de entendimento para um cessar fogo, e em 1993, tem início, em Arusha, na Tanzânia, os tratados de paz entre as duas partes, após dois anos de guerra.

Foi o então presidente ugandês, Museveni, quem pediu o envio de um contingente de boinas azuis à Força de Paz da ONU justamente para guardar a fronteira entre os dois países, uma vez que as forças rebeldes, como era conhecida a FPR estava alocada na divisa, ao norte.

É nesse contexto que chega a Ruanda, em agosto de 1993, a Minuar – Missão das Nações Unidas para Assistência a Ruanda – sob o comando do general canadense Dallaire, no intuito de analisar a viabilidade de ser estabelecida uma força de paz no país. Enquanto isso, uma delegação ruandesa vai a Nova Iorque em setembro de 1993 para pressionar a ONU a enviar uma força de paz para Ruanda. À frente da FPR estava Patrick Mazimbaka, enquanto que o governo interino foi representado por Anastace Gasana.

Ou seja, o genocídio já se prenunciava, os pedidos para uma força de paz estavam sendo feitos, tudo levava a crer que algo de muito grave aconteceria. A partir desse encontro, o então Subsecretário-Geral para as Operações de Manutenção da Paz da ONU, Kofi Annan, passa à ação e envia cerca de 2.300 soldados belgas como parte integrante do contingente da Minuar.

Outro fator importante que deve ser analisado foi o papel da mídia ruandesa, que histericamente transmitia mensagens racistas contra os Tutsis. A rádio nacional racista RTML (Rádio-Televisão Livre das Mil Colinas) fazia uma campanha acirrada contra o que denominava “o perigo da dominação Tutsi”. De fato, a propaganda racista contra a população Tutsi vinha acontecendo desde a década de 1960, mas foi no início dos anos 1990 que tomou proporções assustadoras, em um clima que prenunciava já um estado de guerra, enquanto a população era exposta à incitação ao ódio dos Hutus contra os Tutsis através de letras de músicas racistas e provocativas, referindo-se aos Tutsis como “baratas”. Em um artigo intitulado Mídia e propaganda racista: como os mass media constroem a imagem da realidade social – uma leitura do genocídio de Ruanda (Revista Extraprensa, v. 1, n. 6. S.P.: USP, jun 2010), analiso o papel da mídia ruandesa e seu papel na escalada de violência que culminou no genocídio em 1994.

Nesse clima de violência, as milícias simpatizantes ao presidente Habyarimana, os Interahamwe, estavam descontroladas e a perseguição aos Tutsis cada vez maior, sem que as forças de paz da ONU pudessem controlá-las (a Minuar, em abril de 1994, às vésperas da eclosão do genocídio, contava com um efetivo de 2000 homens, reduzido em seguida a 250).

FH: Logo que as matanças começaram a ocorrer em Ruanda, qual foi a postura das potências internacionais e das Nações Unidas ante as notícias que vinham da África Central?

AC: Às vésperas do início do genocídio, as matanças perpetradas pelas milícias simpatizantes ao presidente Habyarimana estavam descontroladas, atingindo um nível inimaginável. O general Dallaire já havia sinalizado sobre o aumento descontrolado da violência e suas terríveis consequências, mas tanto os Estados Unidos quanto França, Bélgica e Inglaterra preferiram ignorar o aviso e somente de forma muito tardia se interpuseram diante do governo genocidário e a população civil acuada. A comunidade internacional vergonhosamente fechou os olhos ao drama ruandês, deixando a população à sua própria sorte, nada fazendo para frear a violência e evitar a matança frenética que estava por vir. A França, particularmente, protagonizou um dos episódios mais vergonhosos de sua história, ao enviar uma tropa de soldados para retirar a população francesa – e somente ela – presa no Hotel Mil Colinas, junto com centenas de Tutsis acuados. Os ruandeses assistem estarrecidos a retirada dos europeus, enquanto são deixados praticamente para morrer nas mãos dos Interahamwe

FH: Quanto tempo durou o genocídio e quais são as estatísticas dessa tragédia (números de vítimas, número de ruandeses que se refugiaram em outros países…) ?

AC: O genocídio propriamente dito, ou seja, o ataque descontrolado e feroz das milícias Hutu sobre a população Tutsi teve início no dia 6 de abril de 1994, quando o avião de Habyarimana, presidente de Ruanda, é abatido, quando se preparava para aterrissar no aeroporto de Kanombe, Kigali, voltando de uma reunião política em Dar-es-Salan, na Tanzânia. No avião abatido (até hoje não se sabe ao certo sobre a origem do míssil que o derrubou) além do presidente de Ruanda, morreram o então recentemente eleito presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, e alguns ministros. Pouco mais de 30 minutos após a queda do avião presidencial, por volta das 21 horas, a guarda presidencial começa a parar os carros nos quarteirões de Kimihurura e Kicyiru. Os policiais, de forma ameaçadora, fazem sair todos os passageiros dos veículos com brutalidade, pedindo carteiras de identidade e retirando dos veículos aqueles cuja identificação mostrava a origem étnica Tutsi.

Os assassinatos em série que tomam conta de Ruanda, enquanto os estrangeiros e o corpo diplomático são evacuados do país em operações rápidas e eficientes, ao mesmo tempo em que a população Tutsi se vê acuada à espera da morte.

No espaço de poucas horas após a queda do avião presidencial, grupos da etnia Hutu, armados de facões, começam a matança da outra etnia, os Tutsis, com um furor incontrolável, a uma velocidade impressionante: não havia lugar seguro para onde os Tutsi pudessem se esconder. Muitos buscaram refúgio nas igrejas Católicas, imaginadas como abrigo seguro, que no final se transformaram em uma terrível armadilha. Milhares de Tutsis abrigados nesses lugares foram queimados vivos lá dentro, enquanto do lado de fora uma multidão ensandecida gritava palavras de ordem.

Os números são estarrecedores: cerca de 800 mil pessoas mortas, entre Tutsis e Hutus moderados, nos meses entre abril, início do genocídio, a julho, mês em que tomou posse o governo provisório, segundo dados oficiais; se forem calculadas as vítimas nos meses seguintes, a cifra praticamente dobra. Segundo as organizações humanitárias, o número ultrapassa a cifra de um milhão de mortos, além de mais de três milhões de refugiados para fora do país, sem contar as epidemias, como cólera, meningites, disenteria, AIDS, ameaçando dizimar os mais frágeis entre a população de Ruanda e a dos campos de refugiados superpovoados. Nesses lugares, contabilizou-se milhares de mortos, seja por assassinados, por fome, ou por doenças. Nos deslocamentos em direção aos campos de refugiados nas fronteiras com os países vizinhos, outros milhares pereceram. Entre os mortos do genocídio, contabilizou-se mais de 300 mil crianças assassinadas e milhares de órfãos, além de outras milhares que se perderam de seus familiares; a elas somam-se ainda milhares de crianças mutiladas e milhares de estupros.

Entre o êxodo ruandês de 1994 e a ressurgimento do genocídio em 2003, “estima-se que quatro milhões de seres humanos pereceram na República Democrática do Congo e na região dos Grandes Lagos. Esses dados, fruto de longa pesquisa, estão contidos no meu livro O país das mil colinas.

FH: Por que se fala que a França teve uma atuação um tanto quanto questionável na crise em Ruanda?

AC: . Como afirmou o general Dallaire em seu livro J’ai serré la main du diable (2003, ainda sem tradução para o português), “o genocídio de Ruanda é imputado aos ruandeses”, a França teve sua parcela de culpa, “uma vez que se manifestou muito tarde e terminou por proteger os autores do genocídio, desestabilizando a região de maneira permanente”. O general pergunta: “o que havia de fato, por trás da ONU e de certos governos, como a França”, que mantiveram uma atitude de mera observação até que toda a repercussão na mídia tornasse claro para o mundo o que estava se passando em Ruanda? O governo François Mitterrand insistia em defender o governo genocidário de Habyarimana por afirmar ter sido ele eleito democraticamente e, portanto, ser um governo legítimo.

FH: Houve algum tipo de punição contra as pessoas que comandaram o genocídio em Ruanda?

AC: Sim. Após a instituição do “governo de união nacional” (sendo Pasteur Bizimungu proclamado presidente de Ruanda para o período de 1994 a 2000 e Paul Kagame ministro da Defesa – mais tarde eleito presidente, gestão 2000 a 2006 – ele está no poder ainda hoje), uma das sequências foi dar uma resposta à população, não só ruandesa, como internacional sobre a punição dos perpetradores do genocídio.

Estando o sistema judiciário ruandês em ruínas, é instituído pelo Conselho de Segurança da ONU (resolução 977, 1995) o Tribunal Penal Internacional para Ruanda – TPIR, alocado em Arusha, na Tanzânia, servindo para julgar as violações graves dos direitos humanos.

Enquanto o TPIR trabalhava em relação aos julgamentos mais graves, internamente Ruanda tratava de restabelecer seu sistema judiciário. Em agosto de 1996, a Assembleia Nacional de Ruanda aprovou a Lei Orgânica nº 8, estabelecendo quatro categorias para os crimes relacionados ao genocídio, dos crimes mais graves aos menos graves, assim descritos por Paula, (Genocídio e Tribunal Penal Internacional para Ruanda. S.P.: USP, 2011, p. 130):

1 – a) aqueles que estiveram envolvidos diretamente, no sentido de idealizar e tornar possível o genocídio, julgados por crime contra a humanidade; b) os que atuaram em setores administrativos ou políticos, bem como no exército ou em ordens religiosas, milícias ou encorajaram os crimes; c) os ditos assassinos de fato que cometeram atrocidades com crueldade e tiveram destaque no genocídio; d) os que cometeram violencia sexual; 2 – os que, através de atos criminosos, levaram ao cometimento de homicídio doloso ou lesão corporal seguida de morte; 3 – os culpados de sérios ataques contram outras pessoas; 4 – pessoas culpadas por crimes contra o patrimônio”.

No entanto, uma série de desafios e inconsistências passou a tomar conta do sistema judiciário ruandês, que ainda se encontrava em fase de reestabelecimento e não dava conta do volume gigantesco de processos e pessoas aprisionadas aguardando julgamento em prisões abarrotadas. Os dados a seguir estão em uma artigo que escrevi em parceria com um colega antropólogo:

Até 2004, apenas 6.500 pessoas tinham sido julgadas, 120 mil permaneciam nas prisões e outras centenas de milhares ainda seriam formalmente acusadas. Alguns autores afirmam que, no ritmo em que andavam os processos, seriam necessários mais de cem anos para que os tribunais ruandeses concluíssem seu trabalho e a maioria dos prisioneiros morreria antes de seu julgamento, levando em consideração que a expectativa média de vida em Ruanda era de 45 anos. Um sentimento de desilusão passa a dominar aqueles que tinham esperança de justiça, principalmente os sobreviventes e os parentes das vítimas. O projeto de reconciliação nacional, no qual a justiça era um valor inegociável, estava em risco” (Couto e Souza, O Tambor e a Toga: Os Tribunais Gacaca de Ruanda. Campinas, Alínea, 2015, pp. 189-190).

Uma tentativa de fazer valer a justiça foi a restauração de um antigo sistema enraizado na cultura ruandesa desde tempos imemoriais: os tribunais Gacaca. Os anciãos escolhidos pela comunidade locais para resolver conflitos e litígios a partir de uma perspectiva reconciliatória, sem prever a aplicação de uma pena prisional, mas sim preconizava uma justiça reparadora, prevendo uma compensação para a pessoa lesada. Parte importante do ritual era o pedido de desculpas. Para que o Gacaca pudesse ser utilizado nessa ocasião, passou por um processo de modernização e a eles foram atribuídas as competências acima mencionadas nos níveis 2, 3 e 4, desafogando assim o sistema jurídico ruandês tradicional, que pôde concentra-se nos casos mais graves.

FH: Você esteve no país após o genocídio. Como o ruandês, em geral, lida com as memórias desta tragédia?

AC: Como relatei acima, o genocídio foi um acontecimente ocorrido relativamente recente e ainda está na memória de muitos ruandeses. Os memoriais estão em toda parte para lembrá-los do ocorrido. A cada ano, em abril, realizam cerimônias para as quais são convidadas personalidades do mundo todo e a programação da mídia repassa a tragédia ocorrida. As crianças que sobreviveram ao terror hoje são adultos e tentam lidar com esse episódio aniquilante em suas vidas. No entanto, não deixam de falar, de relatar seus dramas pessoais. O que pude observar é que muitos se refugiaram na religião como forma de lidar com essa situação extrema.

PP: Você escreveu um livro sobre essa sua experiência em Ruanda. Conte o nome da obra e fale um pouco do que o leitor encontra nela.

AC: O livro O país das Mil Colinas – o último genocídio do século XX (Curitiba: Appris, 2013) relata, na forma de livro-reportagem, o genocídio ruandês. Para que o leitor compreenda de forma clara o que foi esse episódio tão avassalador, deve voltar ao período em que o sistema colonial se instala na região dos Grandes Lagos, pois o caso de Ruanda não pode ser analisado isoladamente. Há uma gama de situações políticas que envolve os países vizinhos, alguns com uma configuração etnica muito semelhante a Ruanda, como o Burundi, mas além disso, deve compreender a extensa teia de acontecimentos que tomaram conta da região ao longo do século XX, que envolvem massacres étnicos de grandes proporções, antes da eclosão do genocídio. A compreensão da situação política de Uganda, por exemplo, antes do genocídio, assim como a do Burundi é fundamental para entender o desdobramento dos fatos, assim como as consequências, após o genocídio, da Guerra dos Grandes Lagos. Sim, porque o drama ruandês não termina com a instauração do “governo de união nacional” e a deposição do governo genocidário. Muitos acontecimentos se desenvolveram após esse episódio evolvendo Ruanda e, principalmente, a República Democrática do Congo. É uma história com muitos detalhes e implicações, na política, economia, exploração de bens naturais, milícias.

FH: Para concluir a entrevista, gostaria de lhe fazer uma pergunta que será replicada a todos os entrevistados desta série de entrevistas: há grupos que defendem que, hoje, há um genocídio da população negra em curso no Brasil. Você concorda com isso? Se sua resposta for positiva, destaque pontos em que o genocídio da população negra no Brasil se aproxima do genocídio ocorrido em Ruanda. Muito Obrigado!

AC: Há tempos movimentos sociais e organismos internacionais denunciam, principalmente no cenário do Rio de Janeiro, um massacre “invisível” contra a população negra, tanto por parte da polícia como por parte de milícias. Após o mais recente episódio de assassinato de uma criança no Rio, o da menina Ágata, voltaram à cena os dados estatísticos sobre a polícia que mata e que mata essencialmente negros, homens e jovens. É claro que esse extemínio não ocorre apenas no Rio de Janeiro, mas devido à configuração específica que envolve vários atores sociais na região, como policia, milícia, traficantes, a mídia – a chamada “grande mídia” – acaba dando maior visibilidade a esse lugar. Mas a violência e extermínio dessa população está em São Paulo, Pernambuco, Pará, no Brasil afora. Além disso, vivemos hoje um momento muito propício à disseminação da violência, com a defesa pelo acesso às armas, o discurso racista, homofóbico e sexista que se instalou no país não só desde a chegada ao poder do atual governo como antes, mesmo durante o golpe que depôs a presinte Dilma Rousseff. Vivemos um momento de retrocesso inimaginável há pouco mais de três anos, em que o governo tem procurado sistematicamente desmontar todas as conquistas dos anos recentes pós ditadura, atacando a Educação, a universidade pública, a ciência, o conhecimento. O discurso chulo de membros do governo, principalmente daqueles ligados diretamene à Educação, mostra o horror que têm sobre aqueles que pensam e questionam. É natural que em um ambiente fascista, a violência predomine, principalmente em meio à população socialmente mais fragilizada. Que o extermínio da população negra existe, é fato. No entanto, não creio ser possível fazer uma comparação da situação brasileira com o genocídio ruandês. O que motivou a matança que deixou praticamente um milhão de mortos e três meses em Ruanda teve raízes específicas e desdobramentos muito característicos.