Analisar o cenário espanhol pode trazer lições para uma esquerda brasileira que vem se mostrando errática no que diz respeito à conformação ou não de uma frente ampla

Victor Farinelli

A primária presidencial em nosso país vizinho terminou com 16 pontos percentuais de diferença a favor do peronista Alberto Fernández, e algumas pesquisas recentes chegam a mostrá-lo com até 20 pontos a mais de intenção de voto do que o atual presidente Mauricio Macri, que ainda por cima possui rejeição acima dos 60%, o que inviabiliza qualquer sonho de virada.

Contudo, e inclusive se tomamos o exemplo argentino como parâmetro, é injusto acusar a esquerda brasileira, já que durante os três primeiros anos do macrismo, e mesmo com o país degringolando, os setores de centro e de esquerda tampouco conseguiram estabelecer essa aliança estratégica, que só surgiu em maio de 2019 graças a dois fatores essenciais.

O primeiro fator foi que todos os desastres sociais gerados pelo macrismo levaram a uma situação insustentável, mas que era defendida vergonhosamente pelos grandes meios de comunicação (o que explica o fato de Macri ainda ter mais de 30% dos votos). Essa defesa midiática do desastre macrista despertou um temor primeiro das centrais sindicais, preocupados pelos possíveis efeitos que mais quatro anos de Macri poderiam causar, e que fizeram um rápido mea culpa – apoiaram o empresário em 2015 e agora voltaram a abraçar o kirchnerismo.

Mas claro que a grande jogada, que possibilitou que essa união entre setores que passaram anos divididos por diferenças menores, mas aparentemente inconciliáveis, foi a da candidata natural do kirchnerismo (setor mais à esquerda dentro do amplo espaço do peronismo, que possui até vertentes de direita), que não é outra senão a própria Cristina Kirchner. Ela abriu mão da liderança da chapa em nome de uma figura mais conciliadora e moderada, como Alberto Fernández, conhecido como “um construtor de consensos”.

Foi graças à liderança de Alberto Fernández que Sérgio Massa, líder da Frente Renovadora – uma espécie de centrão dentro do peronismo, onde figuras entravam e saíam conforme era conveniente não ser claramente de esquerda ou de direita –, aceitou abrir mão de sua candidatura presidencial de não mais de 10% para ser parte da grande coalizão do peronismo unido, encabeçando a lista dos candidatos à Câmara de Deputados – obviamente com a promessa de que seria indicado à presidência dessa casa legislativa.

Ainda falta um mês para as eleições na Argentina. Em uma campanha eleitoral, isso é muito tempo, e em outro cenário seria suficiente para impedir qualquer triunfalismo. No caso argentino, o que dificulta pensar que Macri possa reverter sua enorme desvantagem, mesmo com o apoio dos grandes meios de comunicação, é a situação econômica insustentável na que deixou o país. Tanto é assim que sua grande estratégia eleitoral é enviar seu ministro da Economia ao FMI, implorar por um novo crédito que viabilize alguma medida de última hora, para tentar recuperar a confiança dos mais pobres e da classe média, setores fortemente afetados pelo desastre macrista.

Se analisamos com mais detalhes o que aconteceu na Argentina e na Espanha, veremos que há elementos conjunturais que meio que obrigaram a esquerda e o centro e se unirem no primeiro caso, em um projeto de recuperação de um país destroçado e que não era necessário no segundo, deixando campo aberto para as tradicionais picuinhas da esquerda falarem mais alto.

Assim, o exemplo espanhol continua sendo o mais parecido ao que acontece no Brasil, onde as diferenças menores entre PT, PSOL, PCdoB, PDT, PSB e Rede ainda falam mais alto, assim como os projetos pessoais de alguns líderes (e não me refiro especificamente a ninguém, até porque existem projetos pessoais em pelo menos três dos partidos citados).

Para que passemos a uma união dessas forças, é preciso que a conjuntura os obrigue, como aconteceu na Argentina, e também no Nordeste, fruto da necessidade de governadores que, após o Planalto transparentar sua guerra ideológica e declarar abertamente que prejudicará estados que não se alinhem, se viram na necessidade de formar um consórcio.

Muitos dos que sonham com uma frente ampla das esquerdas em 2022 se agarram no possível sucesso dessa união nordestina, em contraste com resultados socioeconômicos do projeto bolsonarista que sejam similares aos do macrismo na Argentina. Os números da economia brasileira estão sim emulando os dos primeiros anos de Macri, mas ainda é cedo para dizer que a evolução dessa queda chegará a níveis mais insustentáveis, como os do final do governo de FHC, já nos próximos dois anos e meio.

Ademais, como foi dito acima, mesmo esse desastre macrista foi devidamente contemporizado pela grande mídia local, superando todos os limites da hipocrisia, e não é difícil imaginar que ocorrerá o mesmo no Brasil, inclusive com a ajuda de meios como Globo e Folha de São Paulo, que tentam se dissociar da imagem de troglodita de Jair Bolsonaro, mas continuam apoiando fortemente suas políticas econômicas, e certamente defenderão seus resultados.

Portanto, para que a esquerda possa aproveitar esse possível cenário daqui a três anos, teria que não só superar suas divergências pequenas, como também estar disposta a enfrentar o relato da mídia como fizeram os argentinos, e contar com uma disposição de construção de unidade como a que tiveram os governadores nordestinos. Talvez seja necessário aparecer um grande “construtor de consensos”, como o argentino Fernández. Pessoalmente, o perfil que vejo mais capaz de exercer esse papel no Brasil é o do governador maranhense Flávio Dino.

Ainda falta muito até 2022 e no caminho ainda teremos eleições municipais, talvez até a possibilidade de puxadas de tapete internas nesse balaio de gatos que é o bolsonarismo, mas que também condicionariam as diferentes reações na esquerda, que continua seguindo a receita do quase vexame espanhol a nível nacional, e a do quase sucesso argentino apenas no Nordeste.

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