Por Fran Alavina

Umbanda e Candomblé sofrem inúmeros – e violentos – ataques. Fanatismos e discursos hipócritas de tolerância, estimulados por algumas igrejas, agravam barbárie. Direito de existir não basta: toda sacralidade deve ser respeitada

Por que há pessoas de fé que não reconhecem o sagrado do outro? De fato, esta pergunta poderia ser uma simples questão de filosofia da religião, porém se trata de algo maior que uma simples especulação teórica: é uma questão de fato, sentida na pele por nós, povo do axé.

Os efeitos da intolerância deixaram de se alojar nos discursos e agora tentam fazer morada nos nossos corpos, logo o corpo, que é justamente para nós o lugar, por excelência, da manifestação de nossa fé. Já nos cinco primeiros meses desse ano, os casos de intolerância religiosa no Brasil contra o povo de Umbanda e Candomblé estão se igualando aos do ano passado. Por quê? Tal fenômeno não é uma mera coincidência do presente, mas algo que deita raízes no discurso da tolerância, ou melhor, da falsa tolerância.

De fato, uma análise do histórico dos ataques aos povos de terreiro revela que o aumento da intensidade aos alvos favoritos se fortalece em uma tendência difusa que considera a Umbanda e o Candomblé como simples “seitas”, ou no máximo tradições culturais, negando-lhes a identidade de Religião. Tanto é assim que os mesmos grupos que praticam os ataques não o fazem contra outras religiões não cristãs. Os alvos preferenciais não são templos budistas, ou mesquitas islâmicas, mas, na imensa maioria dos casos, os terreiros. Uma desproporcionalidade que deixa claro que contra a Umbanda e o Candomblé há uma negação de qualquer aspecto de dignidade do sagrado.

Negar a identidade religiosa é dizer, em outros termos, que não se reconhece sagrado algum. Não há possibilidade de existência de consciência religiosa sem reconhecimento do sagrado. É a noção de sagrado que norteia toda e qualquer afetividade constituída por uma fé. Logo, se a partir de um ponto de vista de uma determinada religião, em outra não se identifica qualquer sacralidade, não pode haver respeitabilidade igualitária. Dessa maneira, não se está, portanto, diante de uma outra religião.

Vistas a partir de um ponto de vista “folclórico”, a Umbanda e o Candomblé são tomados como manifestações menores, apresentadas sempre como exotismo, como se estivessem na diferença abissal entre o digno e o indigno; o respeitável e o ridículo. Desse modo, querem fazer ver como esdrúxulas e esquisitas as nossas práticas, criando para nós a figura de uma fé estranhada, e com características irracionais, como se fôssemos agentes de algo bárbaro e rude, portanto, indigno. Até pouco tempo atrás era comum se ouvir a frase eivada de preconceito: “chuta que é macumba!”. Além de expressar uma violência escancarada, o sentido desta frase é traçar uma clara linha de divisão entre aquilo que pode ser tolerado e o que deve ser “chutado”. As práticas discursivas já davam mostras das intenções de seus agentes, que agora passam do discurso à prática.

Nesta mentalidade religiosa perturbada, que, de um lado, separa todas as outras religiões, e, de outro, coloca a Umbanda e o Candomblé, se nega a dignidade do nosso sagrado. Não é que o nosso sagrado seja apenas menor, para eles nosso sagrado é um não sagrado, tanto que o uso da força contra os terreiros não é encarado como uma profanação, porém como invasão justa a um lugar qualquer, desprovido de qualquer respeitabilidade advinda de uma sacralidade comum.

Daí o silêncio da maioria das lideranças e dos praticantes de fé cristã. Como não enxergam dignidade em nosso sagrado, os ataques contra nós nunca são vistos com os mesmos olhos, caso fossem contra outras religiões, dignas para eles desse termo, ou seja, tidas em mesmo pé de igualdade. O que não estariam fazendo os bispos, padres e pastores se este mesmo número de ataques fossem contras suas igrejas e templos? Certamente que estaríamos muito próximos, disso dá mostras a própria história, de uma nova “guerra santa”.

Porém, não se comovem, pois não enxergam qualquer laço de proximidade. O silêncio é o consentimento expresso da falsa tolerância, repudia-se os ataques em uma “nota oficial”, quase sempre culpabilizando os indivíduos que realizam os ataques. Mas a culpa seria apenas destes, caracterizados pelos seus próprios irmãos de fé como “fanáticos”? Evidentemente que não, se apenas se tratasse de culpabilidade individual, os casos tenderiam a diminuir e não aumentar.

De fato, aqueles de mesma fé dos que praticam os ataques nunca se perguntam quais elementos de sua mentalidade e prática religiosa permitem e fomentam este tipo de fé agressiva, pois violentadora. Por isso, quando apenas culpabilizam os indivíduos ditos “fanáticos”, deixam aberta a porta para que novos casos desse tipo aconteçam; e, enquanto isso, continuaremos a sofrer em nossos próprios corpos pelos erros de outros? Está na hora daqueles que se dizem homens e mulheres de fé reconhecerem ou a hipocrisia de sua falsa tolerância, ou assumirem abertamente que sua fé conduz e produz, ainda que não saibam por quais meios, práticas violentas.

Um cristão deve se perguntar, antes de apenas lamentar, sincera ou fingidamente, porque alguém, que professa a mesma fé que ele, é capaz de torturar e ferir em nome de um credo comum. Se afirmam que aqueles a quem chamam de “fanáticos” não são dignos de serem chamados de cristãos, que se perguntem também por que seus “fanáticos” irmãos de fé, ao contrário deles, se consideram bons cristãos. A resposta não deve vir de nós, que sofremos violências diárias, mas dos lugares de onde saem os que as praticam.

Podemos fazer com justiça estes questionamentos, por não atacarmos, nem profanamos templos ou igrejas de outras religiões, e nem retribuirmos os ataques com mais ataques do mesmo tipo. E por que não fazemos? Porque há uma diferença de natureza que constitui um dos paliares identitários de nossa fé: não somos religiões exclusivistas. Religiões exclusivistas fingem se tolerar, pois cada uma reclama para si o monopólio da verdade. Cada uma vê na outra o erro, a falsa fé, que poderá ser debelado através da conversão. Portanto, enquanto se vêem em disputa, tendem a se suportarem nos limites de uma concorrência que pode ser amigável, ou não.

Desse modo, entre profissões de fé exclusivistas, não há discurso mais hipócrita que o discurso da tolerância, pois as diferentes práticas de fé se suportam, enquanto concorrem entre si, enquanto uma vê na outra os futuros novos fiéis. Tolerar e competir para profissões de fé exclusivistas é a mesma coisa. Dessa maneira, aquelas práticas de fé que não seguem o modelo exclusivista devem ser tidas como não religiões, pois não expressam, nem se moldam pelo modelo concorrencial. Neste, só se identifica sacralidade, por mais paradoxal que pareça, naqueles que professam um sagrado único. São como adversários que se reconhecem por usarem as mesmas armas.

Ocorre que não professamos o monopólio da verdade, nem a existência de uma fé única excludente. Não se trata, portanto, para nós de uma simples questão de tolerância, mas de reconhecimento da dignidade do nosso sagrado. Se reconhecemos a dignidade do sagrado dos outros, por que não reconhecem a dignidade do nosso? Não queremos ser apenas tolerados, pois não apenas toleramos, não fazemos da nossa fé a expressão de um jogo concorrencial: reconhecemos a dignidade do sagrado que há em toda forma de fé, a sacralidade de toda religiosidade.

O discurso da tolerância é pouco, conduz à hipocrisia e tem se mostrado ineficaz, pois se tolerar é consentir para concorrer, permitir a existência das diferenças não é o mesmo que reconhecer a igualdade de dignidade dos diferentes. É um critério ético que só se pode exigir algo na mesma medida em que também se pode oferecer aquilo que é exigido, por isso, que se reconheça a dignidade de nosso sagrado, e não se continue a repetir hipocritamente que nos toleram. Não basta tolerar! Isso pode servir para as religiões exclusivistas, não para nós.

A conversão não é nossa meta. Não faz nenhum sentido para nós uma fé que se queira universal: única e mesma para todos. Reconhecemos que a prática da fé é um chamado que fala no silêncio e no mais profundo de um indivíduo, não é uma mera convicção litúrgica que se adere em culto exterior, porém expressão daquilo que há de mais autêntico na vida interior.

Tantos são os indivíduos, tantas e diferentes são as práticas de fé. Tão digno é o sagrado para nós, que não o reconhecemos apenas sob uma única forma, tão digno ele é para nós, que o reconhecemos em todas as formas de fé, sem discriminá-las entre verdadeiras e falsas, dignas ou indignas.

Mesmo sob ataques, permanecemos firmes, não porque sejamos mais verdadeiros que outros, mas porque nossa fé também é digna e sagrada: nem mais, nem menos que as outras!

Axé!

Kaô kabecilê Xangô

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